Como sempre e em contínuo na obra de Baudoin, descobrir-se-á neste livro uma tensão permanente entre a diferença e a repetição, instalados num ritmo de avanço e recuo na matéria que investiga, a saber, a memória. E se a maioria dos livros de Baudoin incidem sobre a sua própria memória, ou as do seu sangue, há sempre espaço para, mesmo na ficção (Travesti) ou na reportagem (o livro presente), alcançar a memória do outro e trazê-la para o interior da sua, ou colocar-se a si mesmo no interior da investigação. Qualquer autor, seja qual for o seu território, tema, matéria, técnica, estará no centro da obra que nos oferta, sem dúvida. Mas as mais das vezes encontra-se por detrás dela, oculta-se nela. Baudoin, todavia, como poucos – mas não está sozinho – cria um corpo visível do lado de cá da obra, isto é, o lado que podemos ler e analisar.
Roberto é um pequeno livro que une, digamos, duas entrevistas, para fazer erigir um mesmo tema, muito contemporâneo na França, mas com grande relevância para Portugal também, a imigração e o racismo. Uma primeira parte ronda em torno da vida de Robert, filho de um imigrante italiano. Robert é um sexagenário, e este é o momento dele tomar distância da sua vida e sopesá-la, através da rememoração, enquanto Baudoin ali está para a recolher: Robert mergulha nas raízes da sua infância, nas mãos enormes do pai, no seu trajecto um ponto social acima da vida de mineiro, a mulher bailarina, o Maio de 68, as primeiras esculturas em metal, a vida independente da filha, que irá agora visitar a Paris, vindo dos subúrbios. As vinhetas que mostram a viagem de autocarro, talvez onde Robert e Baudoin se cruzaram, não mostram apenas a paisagem vista pelo vidro mas aquelas que flutuam na memória de Robert, tantas quanto as flutuações do rosto dele, no próprio movimento da sua memória, que o transporta e transfigura.
Atrás, percebemos, “há uns jovens que riem e falam alto”. Nós continuaremos a saber de Robert, mas num momento, e após um brevíssimo intervalo, encontramos o próprio Baudoin, “monsieur le dessinateur”, a conversar com três jovens dos subúrbios, - afinal os do autocarro - todos franceses, de pais franceses, mas com raízes mais longínquas e forasteiras, que provavelmente lhe doam um peso diferente: Samir, Farid, e Roberto, filho de portugueses. Seguem-se seis página, cinco das quais com uma estrutura absolutamente idêntica: três vinhetas, com as cabeças dos amigos lado a lado, cada um tomando a palavra a e completando a frase do outro, e ondulando por sobre os temas dos seus quotidianos, desde a pressão policial em tomá-los a todos como “voyous”, a vida entre a espada e a parede, muitas vezes entre a espada e a espada, a ilusão ou o desejo sincero em viver uma vida calma, de estudantes, com os seus amigos, a dita vida “normal”...
Todavia, isso não lhes cabe. Quase sem transição, há uma série de pranchas que se repetem. Poderemos pensar tratar-se de um erro de impressão (e talvez o seja mesmo!). Mas não nos surpreenderia que se tratasse de uma estratégia propositada de Baudoin, como retomar de uma palavra encerrada num ciclo, dito vicioso, mas sem que possamos identificar a razão de se ter tornado vicioso. Ou talvez seja uma forma de dar conta de uma aproximação paulatina e de um também titubeante afastamento, como se não se desejasse deixar marcas novas ao sair. Ou talvez seja um modo retórico de entrar no coração das trevas, progressivamente mais negras, e sair delas do mesmo modo, dissipando-as, defrontando a face positiva da vida dos três jovens, todos franceses, de pais franceses.
Ao longo do livro, há como que intervenções do narrador, excursos mínimos, que na verdade são o enquadramento e o húmus do qual desponta toda a narrativa. Baudoin tenta identificar os momentos em que uma pessoa diz, ao seu filho por exemplo, que “aquela pessoa não é como nós”. As condições dessa diferenciação podem ser várias, mas as mais das vezes relacionam-se com aspectos superficiais: cor da pele, nacionalidade, origem, classe social. Aproveitando a lembrança do Maio de 68, e falando dos episódios dos carros queimados nos subúrbios de Paris, Baudoin tenta perceber as diferenças que se vieram instalar entre o descontentamento desses tempos agora tão recuados e o que se tenta expressar hoje: a grande diferença é que, hoje, é proibido protestar. É proibido protestar porque já não se pode falar de opressão económica, de políticas desfavoráveis a uma verdadeira mobilidade social, da falta de planos inteligentes e cabais de integração. Está “fora de moda”. Se as pessoas vivem num determinado estado social, por mais miserável que seja, a culpa é delas mesmas. E assim surge o ódio de si mesmo, e nele estão as sementes da discórdia, do ódio, do racismo. Baudoin quer perceber as razões que levam uma pessoa a dizer “aquela pessoa não é como nós”, e Roberto é uma possível resposta, é a sua. E, como as melhores respostas aos verdadeiros problemas, não responde, mas abre o problema.
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