
Neste pequeno volume encerram-se dois livros. Dois títulos, duas histórias, duas séries de desenhos, dois gestos geminados.
Marriette Tosel dá-nos O Armário Psicótico e Boas Maneiras. Ambas as narrativas tratam de segredos de família, feitos daquele pó mesquinho que se varre para debaixo do armário e se promete vir a limpar seriamente mais tarde mas que se adia sempre e, depois, quando ganha vida própria e autonomia, vinga-se sobre a limpeza moral pública que se desejava visível no verniz social. Mas o que se guarda desse modo estala quando menos se espera. Boas Maneiras segue a mesma linha mas torna-se uma espécie de pequeno manual de educação que mostra como o desejo de educação dos pais, quando criado sobre os pecados e as mesquinhices dos adultos e a sua cegueira para com as liberdades possíveis, criam não belos filhos, mas monstrinhos. Podem até ser geniais na sua monstruosidade, mas monstros à mesma, o que não é bom para todos. Ou para ninguém, no fundo. (Mais)

Estes livros têm duas dimensões, ambas de “badalhoquice” moral. A primeira, já vimos, é o segredo, que mancha de dentro para fora, como o rubor no rosto, mas que também tem outras expressões. A segunda é um erotismo, no sentido de movimento pelo sexo, mas mais açaimado que livremente expresso e que, por esse constrangimento, também estalará em pequenas perversões, em crueldades diárias mas que, segundo reza a percepção policial, são “normais” (a “loucura da normalidade”, de Gruen, de certo modo).
Sobretudo graças à presença do erotismo, ou da sexualidade mesmo, há uma primeira presença de tradição nestes livros. A de Pierre Louÿs: o erotismo sexual não existe nos dois livros de Tosel de uma forma directa, nem voluptuosa e desiderativa, como nas ilustrações de Georges Pichard para Trois Filles de Leur Mére, mas também não tomba nos abismos de Bruno Schulz, no limiar da abjecção, no desequilíbrio de um dos elementos do casal, que se entrega ao domínio do outro. Há, bem pelo contrário, um equilíbrio – entre o Sr. e a Sra. Smith em O Armário Psicótico, e entre o casal de Boas Maneiras. Mas um apagamento, também. Não se pode falar na assunção de um fetichismo, como ocorre, por exemplo, na obra Uma luva de Max Klinger; o objecto toma todo o espaço do palco, torna-se o passageiro sujeito de cada cena, para logo ser substituído por outro. Há, portanto, uma objectificação, mas ela é total, não serve de espelho ou vaso para trazer a presença do que se deseja, quando na sua ausência.
Em O Armário Psicótico, apesar de termos uma voz narradora, a personagem principal é o próprio armário – o tal espaço para onde eram atirados os trastes, os “segredos inconfessáveis”. Tal como em The Curious Sofa, de E. Gorey, uma peça de mobília torna-se a consciência, o Grilo (que-não-deveria-ser) Falante desta família de bem. Os segredos, que ganham forma de “goma espessa” (a neblina da súbita confissão, que nos cega) e de “estranhas criaturas com poderes ainda mais estranhos” (os monstros da razão), darão lugar ao que parecem ser provérbios morais (amorais, melhor dizendo) e a profecias dos homens a vir (que não entendemos, e sê-lo-á necessário?, se do passado, se do presente ou se do futuro desta família Smith).

Ainda com Louÿs, recordemo-nos que este escreveu o Manual de Civilidade para Meninas (editado entre nós pela Fenda, numa tradução de Júlio Henriques). É raro que os desejos dos pais se reflectem realmente nos filhos. As mais das vezes, as suficientes diferenças de prismas entre uns e outros fazem com que o trânsito que se desejava atravesse um qualquer desvio e acabe de um modo bem diferente do que aquele projectado pelos progenitores e educadores. Podemos chamar a isso livre-arbítrio, liberdade, essência humana. O livro de Louÿs é um sincero e franco desvio desses desejos, através do humor obsceno. É claro que o livre-arbítrio, isto é, o pequeno intervalo que nos é dado como vida, a medida que nos cabe, é empregue por estas personagens para a mentira, o logro, a devassidão, talvez mesmo a estupidez. Que regressará, na forma de punição. Marriette Tosel será como que uma herdeira da Condessa de Ségur que tenha lido muito cedo Louÿs, passando por Klinger, Ernst, Gorey, e até Topor: há aqui, na superfície, um aparato de pequeno manual de educação, de moralismo, mas o veículo leva a uma paragem bem diferente da que se esperaria.
Não há, também, movimento algum. Além de corroborar a ideia avançada atrás, a da objectificação dos sentimentos retratados, suscita uma outra obrigação ao olhar. O acto de leitura – que implica um movimento dextro dos dedos, uma combinação com os olhos, um acordo entre leitor e livro – faz com que surja um movimento, mas há ainda uma outra dimensão de movimentos, que tem a ver com os intervalos criados pelas próprias imagens, na sua separação, sobretudo naquelas imagens que “ilustram” o que chamei de provérbios, ou aquelas que ilustram os objectos de desejo, o chapéu-assador-de-castanhas, as cuecas-casa-de-cuco, os óculos-fechadura (não se podem chamá-los de “objectos impossíveis”, como ocorre em relação à obra de Escher: não são impossíveis!, são possíveis, e a sua possibilidade é essa mesma: a de existirem enquanto desenhos).
Há uma outra pequena dobra em O Armário Psicótico: a presença, no espaço de representação, no plano de composição, de algo que serve de sinal ao próprio artista. Por duas vezes surge a imagem de um homem, visto de costas, com um chapéu, cortado pelos ombros. Na primeira vez, a parte de trás da cabeça do homem-artista tem o buraco de uma fechadura, e o chapéu está todo furado como se fosse um assador de castanhas. Diz o texto: “O público espreitou a cabeça do pintor e as ideias figuram-lhe pelo chapéu de coco”. A segunda, apresentaria a mesma figura, mas em vez do homem vemos uma estrutura como se de um bengaleiro de chapéus se tratasse, de casaco e uma estrutura, uma armação, em forma de chapéu. “O pintor, incompreendido, vendeu a cabeça numa casa de penhores”. Estas duas presenças encontram-se no seio das “profecias” de O Armário. De novo, perguntamo-nos se se tratará de um futuro, realmente, ou já de um passado, como no conto de Dickens. Pode ser também uma rasteira, à la Magritte (com o qual estes dois desenhos têm uma irmandade de sombra iconológica). Ambos os comentários têm a ver com a fuga do artista a determinados tipos de interpretação das obras de arte, sobretudo aquelas precisamente deterministas, que se pautam pela biografia, o psicologismo de algibeira, as soluções fáceis de solução (e remeto de imediato para a nota sobre os heterónimos deste texto). Podemos falar, portanto, de “O retrato do artista (duas vezes) enquanto caixa de sapatos”. Uma mera medida de transporte, abandonada como cartão velho e com um cheiro suspeito. As “ideias” roubadas ao artista, como se um artista tivesse “ideias”! Não tem, nunca as teve, as ideias não lhe são pertença. Ou que o artista possui são as suas ferramentas de trabalho, o seu esforço, deixado atrás, na terra, enquanto obra, e esta deve valer no seu sentido holístico. Se se lhe retira a suposta “ideia”, fica um saco murcho.
Logo, a ideia não é traduzir as psicoses mal escondidas no armário, nem acatar as boas maneiras, mas aceitar que a “goma espessa” nos caia no colo e, com ela, moldar novas formas. É para isso que serve o desenho narrativo, não para determinar formas cristalizadas. Com ou sem açúcar, que é coisa que na obra de Tosel (e seus pares), nem sombra.
Uma nota final sobre a questão dos heterónimos: Esta é uma dimensão do trabalho de T.M. que deve ser levada a sério. Posso estar enganado, mas a esmagadora maioria das vezes em que surgem notícias sobre os seus livros, sempre sob um heterónimo, o articulista ou jornalista faz questão de imediatamente revelar o nome do autor. Essa informação, o “verdadeiro nome”, não se encontra em nenhum momento dos livros, é sempre uma informação extra-textual. Qual a razão por esse desvendamento? Em primeiro lugar, é uma questão de exposição de poder e de vaidade. O articulista tem uma informação que o leitor (médio, vulgar, desprevenido) não tem. O revelá-la dá-lhe um poder, o de “especialista”, de “profissional”, de “pertencente à elite”. O trabalho do crítico é bem diverso: é o de interrogar a obra. As vicissitudes e circunstâncias da vida real de um homem, que é por força da sua natureza autor de uma obra heteronómica, não faz parte desse discurso, é palha pessoal, matéria de intimidade, a qual está fora das questões críticas.

Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta do livro.
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