Jules Feiffer, como se sabe, foi assistente de Will Eisner durante o final dos anos 40. Muitas vezes isso é apontado como um factor de aprendizagem, mas sempre se sublinhando o quanto Feiffer aprendeu sob o domínio do mestre, sem no entanto o ultrapassar. O problema desta visão, porém, está em querer instaurar o modelo de Eisner – narrativas causais fechadas e organizadas classicamente, a assunção de uma moral clara e resolvida, mesmo que sob pressões negativas, a centralidade de uma personagem sobre os acontecimentos que se moldam em seu torno – como superior. É mais aceite, sem dúvida, e mais legível por um número maior de leitores, que procuram um certo grau de entretenimento, de prazer em testemunhar uma história que se passe fora das suas vidas, de serem confrontados com uma crise, mais ou menos profunda (menos em The Spirit, mais nas obras tardias de Eisner), mas que tem uma previsível resolução. Contudo, Feiffer rapidamente empregou a capacidade de narrativizar imagens para outros propósitos, bem mais acutilantes no que diz respeito à agudez política e psicológica susceptíveis de serem tratadas numa comic strip ou book.
Quer nos projectos infantis de Feiffer, como Bark, George, quer os adultos, como Tantrum, quer até no film animado Munro, o autor procura explorar os recantos mais pessoais dos desejos e pulsões das suas personagens, através de situações absurdas, e o resultado do embate entre esses mesmos desejos com as expectativas sociais, os papéis que se desejam ver cumpridos na sociedade. Esse resultado é, as mais das vezes, um cómico e breve desastre, para gáudio dos leitores mas desespero dos interlocutores dos protagonistas. O status quo pode até vir a ser reposto, mas ficará sempre um resquício de distanciamento cínico no fim do relato... Não um cinismo de superioridade e displicência, mas a de uma tomada de distância que permite um olhar mais completo e sem rasuras do comportamento humano.
E é precisamente esse distanciamento cínico com que Explainers se pauta. Apesar de retomar o título de uma antologia previamente publicada, na continuidade da publicação da obra integral de Feiffer, a Fantagraphics promete quatro volumes nos quais reunirá a totalidade da tira de banda desenhada que o autor produziu para o único jornal verdadeiramente independente da sua época (na América bipartidária mas unilateral, esta voz da intelligentsia beatnik era única, de facto) The Village Voice. Este primeiro volume reúne os dez primeiros anos (1956-66, mais um tijolo!). Seguramente que outras colecções se seguirão, já que Feiffer continua a trabalhar em várias publicações, quase todas “intelectuais” (The New Yorker, American Prospect, ah... Playboy).
Esta tira marca historicamente o verdadeiro início de tiras continuadas de conteúdo político e adulto. É verdade que a continuidade (isto é, da narrativa) não está presente aqui, como esteve antes em tiras clássicas como Steve Canyon, ou em séries futuras mais políticas como Doonesbury. É verdade que a realidade política havia encontrado espaço nas tiras cómicas com, o caso mais comentado, Pogo, de Walt Kelly, mas onde em Pogo a política se servia da fábula, da rábula e da analogia, em Explainers ela assume o papel preponderante e sem disfarces. É certo que a psicologia adulta havia já encontrado uma forma de ser explorada em Peanuts, de Shulz, mas onde aí ela serve de matéria de humor disfarçado e rapidamente redimido pela candura das personagens, na tira de Feiffer as armadilhas da psique humana surgem em todo o seu esplendor, seja este brilhante ou tenebroso.
Feiffer não estava só, e isso é bem explícito no texto de introdução de Gary Groth, no qual se encontram várias intervenções do próprio Feiffer. Por exemplo, em relação ao seu estilo artístico, o de um desenho solto e quase de esboço, caligráfico, Feiffer sabia que não era um nome conhecido e que quaisquer comparações o colocariam na sombra dos mais famosos Thurber, Steig ou o incontornável e inefável Steinberg. Desta tríade, Feiffer aproximar-se-ia dos dois primeiros em termos da introdução do absurdo no quotidiano como forma de sublinhar o quão absurdo o quotidiano já o é, mas ao terceiro parece dever a maior exploração das liberdades inerentes ao próprio traço. Voltando a Eisner, repare-se como a expressividade das personagens deste último atinge por vezes um histriónico paroxismo raiando o ridículo (a famosa adaptação do monólogo de Hamlet), ao passo que Feiffer segue precisamente as lições mais tardias do mestre na depuração do mínimo traço da expressão corporal ou facial para transmitir alterações radicais das suas personagens. Groth nota como as primeiras tiras se assemelham ao estilo muito particular das animações dos anos 40 e 50 da UPA, mas rapidamente assistimos a um delinear cada vez mais ténue e fino das linhas que compõem as personagens, para se atingir aquele patamar a que chamei “caligráfico” (e repare-se a forma como ecoam na perfeição o trabalho maravilhoso das letras desenhadas pelo autor, como se houvesse continuidade efectiva da mão que desenha e da que escreve). Em muitos casos, a personagem ou personagens da tira move-se um mínimo, enchendo o peito, inclinando-se ligeiramente para a frente, torcendo o sorriso, baixando os ombros: mas esse mínimo movimento aparente reflecte uma transformação radical de humor na mesma personagem.
Feiffer cria uma espécie de tipologia de seres humanos, existindo personagens recorrentes: a menina que lê histórias de fada/histórias políticas ao pequeno irmão, a bailarina contemporânea das estações, a mulher sensível mas calculista, a mulher das flores, o jovem homem de humores diversos, ora pacato ora atacado por todo o tipo de neuroses e perseguições, sobretudo da companhia de telefones, Bernard Mergendeiler (ei-lo aqui ao lado), o sósia de Marlon Brando, Huey, entre outros (aliás, com David Kamp, na sua crítica na Book Review do The New York Times, aprendo que seria o material dessas duas personagens que seria empregue no guião do filme Carnal Knowledge, de 1971, realizado por Mike Nichols e protagonizado por Jack Nicholson e Art Garfunkel; aliás, há mesmo uma tira em que ambos estão presentes, ainda que do outro lado da linha de telefone de uma personagem feminina; porém, Kamp admite que as personagens da comic strip são mais relevantes hoje do que as do filme). Elas não criam quaisquer tipo de telenovelas ou arcos narrativos sustentados, mas aspectos, retratos, fragmentos, das personalidades existentes no mundo. E não há realidade que não seja abordada por Feiffer, das relações mais pessoais e íntimas entre os sexos à mais internacional das políticas externas dos Estados Unidos, passando pelas oposições ideológicas entre Democratas e Republicanos e estes dois e outras posições mais radicais (socialistas, não-conformistas, rebeldes), os papéis dos militares, dos jornalistas e dos economistas, explorando as ansiedades dos pais e os desejos dos filhos, invertendo a rebeldia do outrora na conformidade do presente, ou descobrindo a inércia nos seus contemporâneos onde se esperaria uma reacção nova, não esquecendo todos os conflitos mais prementes da época, da oposição às intervenções militaristas (Cuba, a escalada nuclear), ao fim da segregação racial (da qual hoje somos testemunhas de uma nova conquista), ao advento do feminismo às mudanças culturais profundas que avançariam sobre a América da década de 1960.
Devo confessar que algumas das tiras são demasiado obscuras para mim, não estando familiarizado com as convulsões políticas mais pormenorizadas dos E.U.A. da época, e algumas referências culturais não serem de fácil entendimento. Porém, o humor da esmagadora maioria dos trabalhos são ainda hoje claros e pertinentes, e bastará aos leitores as mínimas adaptações à nossa própria experiência e mundo para nos apercebermos que Feiffer consegue fazer aquilo que os grandes artistas conseguem fazer, que é identificar a perenidade da estupidez, da ingenuidade e do egoísmo humanos por toda a História. O método com que muitas vezes constrói diálogos, em que cada um dos interlocutores fala para seu lado, sem parecer dar conta do que o parceiro ou parceira diz, é particularmente efectivo nesse papel, e mais ainda quando diz respeito às relações amorosas ou familiares, que permitem pela proximidade as mais absurdas das distâncias. A comunicação não parece ser, para Feiffer, o caminho do entendimento mútuo, mas apenas uma desculpa para cada um acentuar ainda mais a casmurrice própria. Sabendo que Feiffer chegou mesmo a escrever guiões para teatro e cinema (em 1961 estrearia uma peça precisamente intulada The Explainers), não será difícil encontrar em muitas destas frases material para um retrato da stand-up tragedy que compõem as nossas vidas.
KDê o resto dos livros srº Feiffer...?? caraleeo, porra,queria o resumo do livro.Um barril de risadas um vale de lagrimas.....caraleoo
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