Fosse este pequeno opúsculo em português e o título remeteria para a primeira letra daquilo que está no centro das obras de banda desenhada aqui abordadas: o “eu”. Mas, uma vez que é espanhol, esse trocadilho perde-se. No entanto, o título não deixa de ser um jogo humorístico sobre o mergulho na própria personalidade a que a ideia de autobiografia parece convidar. No entanto, o título não deixa de ser falso, já que arregimenta muitas outras e autores que, não obstante se colocarem no centro das suas narrativas, ou pelo menos próximos do centro narrativo, não participam em nenhuma dessas características apontadas. Não é o único momento em que o livro parece falhar o seu propósito.
Como está explicitado no subtítulo deste livrinho, trata-se de uma “aproximação” e não de uma análise mais acabada. Não se trata de uma estratégia de humildade, mas de uma constatação das limitações desta obra. Tenta ser mais do que um mero arrolar de trabalhos de banda desenhada que se relacionem com o género da autobiografia, mas acaba por não apresentar quaisquer conclusões ou súmulas que sejam úteis sobre novos textos, nem sobre análises mais cuidadas de títulos individuais nem sobre panoramas que procurem linhas de força comuns entre os trabalhos.
Organizado em dez capítulos, os autores tentam garantir uma abordagem holística deste tema, ora falando de princípios gerais, ora explorando as relações do “eu” com várias instâncias colectivas (a família, a nação), ora ainda explorando as razões que compõem um Diário... Porém, não é apenas na “Cronologia apressada” que apresentam uma descrição mais rápida e superficial do que uma abordagem cuidade e crítica das especificidades e continuidades das obras referidas (e não analisadas). É natural que, face a uma lista, seja sempre possível apresentar outra, com inclusões e exclusões da responsabilidade dos autores; mas o que importa a uma lista é encontrar qual o corpus pertinente qe com ela se forma. As obras indicadas pelos autores é bastante ampla em termos geográficos, e, sendo espanhóis, incluem excelentes referências para títulos do nosso país vizinho, mas é menos conseguida no que diz respeito à cronologia (mais moderna e contemporânea) e à construção de uma coesão interna (a tal assunção de princípios). Por vezes, por exemplo, fazem confluir obras por partilharem temas comuns, temas os quais porém não são apanágio exclusivo da autobiografia (seja esta de banda desenhada ou não).
Num trabalho feito por nós, procurámos construir uma perspectiva, que não se desejava como modelar, mas pertinente no contexto desse trabalho, em que se organizavam as narrativas da memória segundo o objecto dessa mesma memória: de um eu a um eu ficcionalizado, a um eu colectivo a uma memória transfigurada. Noutros contextos, essa tipologia não funcionaria decerto. Porém, o que se sente estar em falta nesta pequena obra é uma tipologia que lhe seja própria e que permitisse aos autores uma articulação dos apontamentos a que se entregam.
É apenas no epílogo, que deveria estar na verdade no início, que os autores discorrem mais em termos gerais sobre o espaço que a banda desenhada autobiográfica criou e pode ainda criar no panorama social e criativo de toda a área. E é nele que se revela o gesto pouco equilibrado da obra: sendo os autores capazes de algum grau de reflexão (apesar de não darem conta de quaisquer leituras secundárias, quando existe já uma bibliografia significativa e indispensável num estudo desta natureza), não o provaram ser utilizável nos capítulos anteriores. Isso começa com a presença de uma citação de Fabrice Neaud, o qual discute o como um diário em banda desenhada obriga desde logo a um desdobramento (gráfico) do seu enunciador, narrador, autor e personagem (amalgamados numa só instância), que o(s) coloca(m) não num “eu” textual, mas num “ele” actancial. Os autores, quando se representam, representam-se no mesmo plano que as demais personagens, tornando-se assim idênticas a elas. Apesar desta citação, os autores não parecem utilizar esse saber em Egoístas... Falam das estratégias de maior caricaturização da parte de Sacco, J.-C. Menu, das flutuações dos estilos de desenho de Hideo Azuma e de Al Davison, da derrocada da “quarta parede” (apesar de falarem de “câmara subjectiva”) em Julie Doucet, Baudoin e Crumb, mas não identificam jamais as crises de representação de muitos destes autores, que se exploram em apagamentos, distorções, anamorfoses (sobretudo em Neaud e Baudoin, assumindo-se carácteres diferentes). Há um maior apego (e limitação) às questões de representação do que às de graphiation, que são tão, senão mais, significativas. Mais, ainda em relação a Neaud, apesar de falarem várias vezes do Journal, jamais os autores se referem ao facto de que muitas das reflexões a que os próprios se entregam serem exploradas pelo desenhista francês, no seio da própria obra (sobre o pudor, a sexualidade, o alcance do gesto autobiográfico e diarístico, a distância entre o “momento do apontamento” e o da “escrita/desenho”, o efeito de feedback que a publicação do primeiro volume teve nos seguintes, etc.). Quer dizer, o facto de não se inscreverem no debate contínuo que este tema já suscitou, ou a não utilização de uma bibliografia especializada mesmo de outras áreas para ancorar as reflexões deste livro, levam a que muitas delas sejam derivativas, incompletas e inconclusivas.
Por exemplo, referem-se a Le Photographe, mas não indicam em qualquer lugar o papel que a fotografia tem nessa obra na (re)construção e metamorfose da memória do protagonista. Plasma-se a obra de Keiji Nakazawa, Carlos Giménez e Eddie Campbell por utilizarem personagens fictícias em vez de em nome próprio, sem assinalar as diferenças profundas entre todos, nem citarem o conceito da auto-ficção (o que os faz perder de vista autores como Kevin Huizenga, Marko Turunen ou Yoshiharu Tsuge). Falam de Robert Crumb como “não parecendo ter o menor problema em se representar a si mesmo e forma directa e reiterada desde o início” sem alertarem para as máscaras várias que Crumb foi criando ao longo dos anos. Referem-se a Piero, de Baudoin, como de “um tratamento ligeiro e terno”: terno, sim; mas “ligeiro”? Jamais! E desligá-lo da obra contínua de Baudoin é um mau serviço ao autor de Nice. Maus, que é debatido em vários momentos, não é uma obra forte somente por se tratar de uma autobiografia. Aliás, é precisamente por a sua inscrição na autobiografia ser problemática que Maus se torna digna de uma atenção particular. E chegam mesmo a excluir – apesar de a citarem – a obra de P. Squarzoni, “porque esta obra, na verdade, tem pouco a ver com o modelo autobiográfico”. Ora isto leva a perguntar então qual a razão da inclusão de Seth com It’s a good life... (e não as histórias propriamente autobiográficas de Palookaville) ou das reportagens de Davodeau e Sacco? O problema não estará nesse “modelo” (que, como vimos, não é jamais construído sequer)? Quando introduzem a questão do diário, referem-se que, “por definição”, o seu destinatário é quase somente o seu autor, mas se isso já apresenta alguma falsidade em relação aos Diários literários, num diário em banda desenhada é ridículo, pois o próprio acto criativo implica um desejo, por mais abscôndito que seja, por um leitor/espectador, que implica escolhas e estratégias de enunciação próprias (até mesmo em obras outsider, como a de Henry Darger).
Algumas das sínteses que fazem das obras é bem conseguido, mesmo quando espalhadas pelos vários capítulos. Como nos casos de Debbie Dreschler, ou Angel de la Calle, Karlien de Villiers, Guy Deslile. Mas isso leva a mais desequilíbrios ainda: é como se algumas obras tivessem sido lidas com mais atenção e servido a mais apontamentos que outras, o que mina um trabalho generalista desta natureza. Identificam também muitos dos aspectos-chave da construção das memórias pessoais (ou alheias que atravessem as pessoais) nestas obras, como a fragmentação narrativa, a inclusão das reflexões sobre a linguagem da própria banda desenhada, a dissolução do “eu” na responsabilidade para com o “outro”, mas jamais estes elementos se consubstanciam em elementos de leitura metódica das obras. Numa das páginas (60), lê-se o seguinte: “Seguramente el lenguaje de las imágenes dibujadas tiene algo, una síntesis especial de distancia e implicación que permite tratar sobre los abusos sexuales y exponer este tipo de heridas abiertas a la luz de los recuerdos y la mirada ajena para ayudar a cicatrizalas”. Os autores referem-se neste passo a Gloeckner, a Dreschler, Bechdel, Olivier Ka e Alfred, mas não explicitam qual é esse “algo”, como funciona essa “síntese especial de distância e implicação”, que apenas a análise, em falta, cobriria, seguramente.
Os autores, apesar de tudo, identificam algumas das dimensões mais significativas destes trabalhos, como o facto de incutirem a “búsqueda de nuevas maneras de contar las cosas; modos que no estén mediatizados por las duras normas de la ficción” (80), mas desejava-se que explorassem a fundo essas mesmas questões afloradas apenas. Quando afirmam que “la obra autobiográfica debe mantener suficientes indicios de veracidade para permanecer fiel a su concepción”, será essa uma necessidade taxativa? Os autores referem-se a Seth (falando de “falsa autobiografia”, termo pouco feliz e aquém do já consagrado “auto-ficção”), mas não a colocam lado a lado a Blankets, de Craig Thompson (que debatem várias vezes), e o qualparticipa dessa mesma natureza. Em suma, há uma maior preocupação da parte de Gálvez e Fernández em colocarem o ónus na informação do que na poiesis própria da autobiografia em banda desenhada.
Assim, sendo um bom guia sobre o que existe, é um mapa para nos colocar frente aos marcos, mas aos quais devemos procurar outro tipo de interrogações, mais prementes.
Nota: agradecimentos a Filipe Abranches, pela oferta do livrinho.
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