Num artigo de jornal que apresentava uma crítica ao último filme relacionado com o Batman, a saber, Dark Knight, de C. Nolan, o seu autor explica, a dado momento, a riqueza, complexidade, cinismo e negrura do filme como não devendo nada à banda desenhada. O que o autor provavelmente queria sublinhar era a distância deste filme recente e o pouco que ele próprio sabe da banda desenhada a que, tentativamente, se refere (muito provavelmente restringindo-se ao material que ia surgindo em Portugal pela Ebal ou a Agência Portuguesa de Revistas, ainda que tenha sido da era Dennis O’Neill e Neal Adams, ou aos mais corriqueiros e comercialóides títulos presentes, no qual cai o péssimo “arco” de Frank Miller e Jim Lee em All Star Batman & Robin), se não mesmo apenas se reportando ao avatar mais famoso de Batman, o da série de televisão dos anos 60 (de que derivam todos os artigos relativos à banda desenhada começados por “Kapow!” e “Bang!”, e os olvidáveis filmes de Joel Schumacher). Pois mesmo no seio da banda desenhada mainstream de super-heróis, sempre existiram experiências revisionistas inteessantes, perspectivas não-canónicas ao grande corpo central das empresas, desvios narrativamente interessantes (alguns dos títulos da Elseworlds), já para não nos referirmos a experiências marcantes, como o incontornável Watchmen (Moore e Gibbons) e, mais próximo desta personagem que nos importa, Arkham Asylum, de Grant Morrison e Dave McKean. Aliás, quase se poderia dizer que é sobre o pilar construído neste último título que se ergue a sombra quer das versões cinematográficas de Nolan (bebendo, claro está, de outras fontes) quer deste mesmo Joker, uma “graphic novel” original – isto é, que não foi publicada antes em formato de comic book, mas imediatamente nesta forma de livro – de Brian Azzarello (conhecido escritor da série 100 Balas) e do desenhista Lee Bermejo.
O Joker de Azzarello é muito devedor à personagem delineada por Heath Ledger, ou pelo menos aos pressupostos que levaram à opção dessa interpretação, associada a uma cada vez maior proximidade das estratégias narrativas e de escrita da banda desenhada mainstream, super-heróis incluídos mas não só, e as séries de televisão, que por sua vez bebem também de experiências contemporâneas da banda desenhada. Bastará arrolar títulos como The Authority, Girls, The Ultimates, por um lado, e Lost, Heroes, Smallville, Alias, Birds of Prey, por outro, e nomes como os de W. Ellis, B. M. Bendis, ou de J. J. Abrams para encontrar esses diálogos. J. M. Straczynski, criador quer de Babylon 5 (televisão) quer do Midnight Nation e de Supreme Power (comics), encontra-se em ambos os territórios. Outros exemplos não faltarão, sobretudo se do cinema, usualmente sob a denominação (que nada mais diz além dessa informação circunstancial) de “adaptações”: por exemplo, o facto de que o realizador de Iron Man, Jon Favreau, escreveu uma mini-série (Iron Man: Viva las Vegas, que por sua vez bebe de Tomb Raider) apenas aumenta esse trânsito. Pouco importa se neste momento se é má televisão, mau cinema e má banda desenhada. a esmagadora dos trabalhos citados atrás são competentes no sentido em que entregam o que prometem, e teríamos de os analisar isoladamente para perceber quais as suas conquistas e quais os seus falhanços. O facto de pertencerem a um círculo muito alargado de produção mainstream, comercial, não significa que sejam desprovidos de qualidades. Bem pelo contrário, muitos deles bebem de um conhecimento profundo da história interna dessas produções populares e tornam-se exercícios extremamente inteligentes de intertextualidade, revisionismo, um misto de nostalgia com iconoclastia, como a soberba série Daredevil, escrita por Bendis e desenhada por Maleev (na sua maior parte).
Há, porém, um pormenor a explicitar. “Protagonista” e “personagem principal” são sinónimos. Quase sempre. Em Joker, uma divisão impõe-se. O primeiro ponto que convém sublinhar é que o protagonista (em termos etimológicos, aquele que transporta a acção) de Joker não é o próprio, mas um dos seus novos esbirros, Johnny Frost. É dele que parte a voz narrativa, é sobre ele que aprendemos a vida anterior (a esta história) e interna (os seus desejos, medos, etc.), é a partir da sua perspectiva que se constrói a história visível, mesmo que haja momentos de desvio ou confusão (inclusive o final, pouco surpreendente, mas não menos justo nesta exploração). Vemos então que Brian Azzarello opta por dar acesso à voz interna das suas personagens, o que não deixa de ser um predicado da literatura noir. Os diálogos aparecem entre as personagens mais para providenciar uma camada de acção nas histórias, mas o que mais importa é a vida interna dessas mesmas personagens. Se em Lex Luthor: Man of Steel (outra obra desta dupla que funciona como par deste livro) há uma reviravolta em relação à distribuição da atenção, e até mesmo um novo desequilíbrio moral, entre o herói (Super-homem) e o vilão (Luthor), em Joker não há nunca a presença do herói, a não ser como nota, sombra e um ponto no final, mas não sendo ele o ponto final. E se nesse livro a própria personagem Luthor ainda permitia que se acedesse à sua perspectiva, apesar de tudo, humana, no caso de Joker essa abertura é bem mais complicada, pertencendo ao mistério e impenetrabilidade da sua loucura a sua distância.
Porque, e voltamos à questão levantada anteriormente, a personagem principal, quer dizer, aquela sobre quem recaem as atenções, o fascínio e que opera no centro da mandala visual e narrativa criada, é sem dúvida, o Joker. E o Joker deste título, para além das suas ligações à versão cinematográfica recente, é um homem de uma monstruosidade sem humor, de quem cujo riso mais nos provoca asco e medo do que simpatia. Grant Morrison havia proposto uma teoria em Arkham Asylum (com Dave McKean), a de que o Joker sofreria de um novo desvio psicológico, aparentado com as personalidades múltiplas, mas que garantia não a loucura mas a supersanidade: uma capacidade de tornar fluida a sua personalidade para resolver os problemas e adaptar-se aos ambientes rapidamente cambiantes nas sociedades pós-modernas. Arno Gruen também discute uma outra espécie de loucura, mais visível mas por isso mesmo abscôndita, soterrada na aparência da “normalidade” – nos comportamentos aceites como parte da sociedade: não falar com os filhos, bezerrar em frente da televisão, limitar as conversas ao domínio do futebol, etc. Ser-se louco ajuda a lidar com a liquidez dos valores contemporâneos. Azzarello, porém, opta por eleger uma só personalidade do Joker nesta história, em que parece de facto emergir da loucura divertida, e apenas se torna alguém “para além do bem e do mal”. A inversão dos valores que apenas o são sob a forma de chavões é aqui desconstruída, tal como havia sido feito em Lex Luthor, e tal qual 100 Balas procura fazer: no negríssimo mundo de Gotham, estar na sombra do Joker é uma forma de vitória, por mais breve que ela seja.
No seio da tradição do policial, esta separação entre a personagem que relata e que focaliza toda a narrativa e o protagonismo assumido por outra, que fascina a primeira, é algo que encontra a sua fonte, claro está, nas histórias de Sherlock Holmes, de Doyle (relatadas pelo doutor Watson). Azzarello é sobretudo conhecido pela sua escrita “policial”, mesmo que trabalhe sobre outros terrenos, como em Hellblazer (terror). E, como muitos dos escritores que têm prazos e contratos para cumprir, como Brubaker, Bendis, Millar, tanto produzem trabalhos mais conseguidos como pastelinhos de cartão, soluções interessantíssimas e promissoras de desenvolvimento e espalhanços de mau gosto. A cena em que, neste livro, o Joker se encontra com Edward Nigma, “The Riddler” (que parece uma mistura de Beck, dot-commer, chulo pula, guna tuning, e modelo masculino), e o segundo passa ao primeiro uma mala cujo interior não é revelado mas brilha como ouro não é uma homenagem ou uma citação a Pulp Fiction, mas um pastiche desastroso, um rodriguinho sem nexo, para justificar os cameos, aparições “interessantes” de personagens secundárias numa ficção, que desencadeiam uma série de associações aos fãs e connoisseurs (de novo, apanágio destas ficções e presentes no cinema, como em Iron Man e o último Hulk). No caso presente, temos o Pinguim, o Duas-Caras, a Harley Quinn, e o Killer Croc, aqui numa versão "Marsselus Wallace" que, colocando todas as personagens no interior de uma possibilidade menos fantasiosa que o normal (à la Dick Tracy, uma das fontes de Finger e Kane), faz amergir toda a usual panóplia do imaginário do crime contemporâneo nos Estados Unidos. Mas se Bendis utilizava esta estratégia e estas promessas de uma forma para criar uma apertada rede de referências que criava uma base consistente sobre a qual criou a sua saga do Demolidor, muitos dos jogos em Joker não vão além do “eye-candy”.
No entanto, o objectivo é menos pensar nos pressupostos sociopolíticos e económicos que são o fundamento destas ficções do que apresentar uma interessante variação desses mesmos elementos numa fórmula legível, aprazível e simpática para os cultores deste género (sexo e violência, drogas e violência, perseguições de carros tiroteios, loucura súbita e violência – a figura de Harley Quinn assume neste título todos os contornos sexuais costumeiros das Bond Girls).
Os momentos mais interessantes são os que retratam os momentos de tédio e de banalidade, beber um copo e descansar no sofá, chorar por uma qualquer razão ou olhar para o vazio, caminha na rua. E, está claro, a troca de frases feitas imensamente "quotable", como é normal neste círculo de referências (a cultura popular). Luthor e o Joker caminham nas suas respectivas cidades a pé, pelas ruas. E tal como os seus congéneres antagonistas, o primeiro à luz do dia com todos os ideais de um homem que procura um mundo cada vez mais livre e melhor, onde todos têm o seu espaço, o segundo nas sombras dos becos e bares nocturnos para beber até às fezes a liberdade que se conquista acotovelando o espaço dos outros.
Nota: as digitalizações não foram feitas por mim, mas mais não digo.
Olá. Belo texto, como sempre. ;)
ResponderEliminarA teoria do Grant Morrison sobre a personalidade do Joker sempre me soou mal, por acaso (e eu gosto muitíssimo do "Arkham Asylum"...). Penso que não seria preciso esse rasgo de imaginação para justificar o comportamento da personagem: um psicopata não é um louco. A psicopatia é um distúrbio da personalidade, mas não se classifica como loucura. De qualquer das formas, o conceito de uma super-sanidade tem possibilidades interessantes.
Abraço!
D.
Olá, David.
ResponderEliminarEu posso ter sido curto demais, mas nem eu nem a minha leitura do Morrison me faz ver uma leitura da psicopatia, mesmo desta personagem ficcional (não podemos jamais perder isso de vista), como sendo sinónimo de "loucura". Mas aquilo que Morrison, Gruen e muitos outros autores (Artaud, Foucault, Deleuze, Guattari, etc.) nos alertam é para a dificuldade em engendrar uma delimitação clara e sempre idêntica desse mesmo conceito. Morrison apenas é inteligente ao empregar essa ideia de super-sanidade, expressa através de múltiplas personalidades concentradas numa (algo diferente da doença mais famosa), para explicar, ao mesmo tempo, os vários avatares da personagem ao longo do tempo, vicissitude da forma como a banda desenhada mainstream norte-americana funciona, em que temos personagens atravessando décadas e décadas de estilos e modas diferentes, quadros políticos e sociais completamente diversos, etc. O "Arkham Asylum" continua a ser, para mim, no cânone do Batman, um dos seus mais acabados livros - é claro que não deveria esquecer-me do "The Killing Joke", mas Moore é mais socialista e "one-sided" do que Morrison. O que vejo é que muitos dos autores que se seguiram (Brubaker e Azarello) que desejaram explorar o Joker acabaram por optar por uma das facetas... Claro, podes apontar-me para o Morrison que agora escreve o Batman e opta por coisas bem mais mundanas e mais chãs...
Abraços!
Pedro