Se bem que um dos episódios de NoiteLuz tenha sido anteriormente publicado na Front, o material que compõe este pequeno livro encerrado num pequeno núcleo (familiar?) de personagens encerrados no interior de um bairro encerrado numa cidade – à medida que avançamos na leitura, como quem percorre as ruas da cidade, apercebemo-nos de que escapar de um confinado espaço apenas significa desembocar numa outra clausura, apenas maior – é original. O título remete para um clube nocturno de São Paulo que age como pedra de toque e centro nevrálgico das acções de cada episódio, e de cada grupúsculo menor de personagens, um bar no qual se cruzam as vidas breves destas pessoas, onde se pode beber de um trago algo forte, trocar umas palavras inconsequentes com uma mulher, fechar negócios que quanto mais negros e sujos mais rentáveis e, por vezes, fechar toda uma vida, literalmente. “NoiteLuz” pode ainda ser visto como a clara metáfora que propõe, em que a luz nocturna ilumina as almas e os segredos das personagens: enquanto leitores, e graças à focalização do narrador, e através de estratégias de silêncios estruturados entre o pouco que as personagens resolvem dizer (“confessar”, poder-se-ia precisar) umas às outras, temos acesso, não directo, nítido, mas adivinhado, ao que pauta essas mesmas vidas. Pode ser “luz” (vemos algo a formar-se, apreendemos algo delas), mas mantém-se sempre com um ar de noite (as sombras teimam em ficar em seu torno, não se abdica de todo o sigilo, sobrevivem zonas de indeterminação). [veja-se a excelente história de uma página encontrada no site do autor, que explora precisamente esse ritmo e estrutura de não-ditos, e de promessas narrativas; a publicar num futuro Stripburger]
Por vezes, a estruturação das imagens parece apontar numa direcção, que julgaríamos mais “natural” de suceder no ambiente da noite de crime e morte de São Paulo, para, ao virar a página, descobrirmos uma qualquer alternativa, nem sempre “melhor”, e que pode mesmo se revestir de um sorriso amarelo, mas cujo fito é mostrar-nos que não podemos jamais contar com regras certeiras, que podem sempre aparecer singularidades excepcionais, obstáculos imprevistos, soluções derradeiras.
O trabalho de Marcelo d’Salete opta pela construção de personagens em posições rígidas, hieráticas, colocadas no interior de um ambiente prenhe de linhas e tramas. Vejo aqui menos uma limitação gráfica do que o encontro entre uma angústia, um peso permanente na vida das personagens. Quem não vive em São Paulo, apenas pode imaginar – ainda que tenha a ajuda da literatura, do cinema e da banda desenhada – o tipo de tensão permanente nas suas ruas, e na sua noite, interrompida apenas (breve, súbita calma, embrulhada em pânico e adrenalina) por um tiro, uma saraivada deles, a sirene de um carro-patrulha, a notícia dada por um amigo da morte de outro.
Na continuidade de muitas experiências narrativas modernas [como havia exposto a propósito de um livro de Seth], NoiteLuz é apresentado como uma série de seis curtas histórias que partilham esquinas em comum, as quais podem ser encaixadas como num puzzle: as personagens, os espaços, os acontecimentos têm pontes entre si, que poderão fazer emergir no fim uma imagem unida e coesa, um sentido unificado. Porém, d’Salete não procura aqui uma forma relativamente complicada para depois nos ofertar uma história simples, como pistas disseminadas ao longo de um tempo, num sentido suspenso, até atingirmos um súbito eureka! final. Bem pelo contrário, cada uma das narrativas é simples e autónoma, quase sem surpresas e dramatismos histriónicos, para compor uma imagem global quebrada, problemática, angustiosa. O humor de NoiteLuz é difícil de aferrolhar num só sentido. Há um “final feliz” e outro “infeliz”; há também “finais felizes-infelizes” e “infelizes-felizes”. Mas a soma deles não apresenta um resultado nítido, líquido, substancial: ou melhor, se substância há no fim, é móvel, fugidia. De novo, a angústia torna-se o signo mais perene, mas como se fosse possível haver umas abertas de felicidade e “vida normal” sob a densa nuvem que sempre paira sobre as personagens. Entre a noite que sobrevive sob qualquer luz, ou a luz que consegue irromper no seio de todas as noites, ergue-se este espaço intervalar. E é lá que Marcelo d’Salete encontrou estas personagens.
Nota: agradecimentos ao autor e à editora o envio do livro. Ao primeiro ainda, o diálogo a continuar. Para o adquirir, além do site da editora, ou lojas online brasileiras, passo a publicidade, indicando a Casa da BD [na Feira da Ladra, Lisboa].
Sem comentários:
Enviar um comentário