Depois da longa vida do Gambuzine “creme”, eis que chega a segunda série (e longa vida, espera-se), com uma nova dieta (é praticamente três vezes mais do que a anterior). Teresa Câmara Pestana continuará o seu papel de editora de contactos internacionais e nacionais, procurando reunir gentes e trabalhos que se possam inscrever numa forma de ver e moldar o mundo. A reunião é de facto heteróclita, mas há como que um humor ou atitude relativamente homogénea em todos os trabalhos, que revela uma posição política bem vincada, de confronto com os confortos burgueses, e transformando a banda desenhada numa plataforma, senão mesmo uma arma de arremesso, de expressão de políticas alternativas para com o mundo. Se algumas delas privam dos universos dos punks, okupas, ou tribus quejandas, sem se terem de arrastar pelas mais chãs das ideias feitas – quer as da sociedade em geral sobre esses grupos quer as que esses mesmos grupos pretendem manter – outras contribuem para a derrocada dos mesmos inimigos, ainda que com estratégias diferentes. Encontraremos bandas desenhadas com uma linguagem gráfica mais amena e outras mais adstringentes, por assim dizer, umas que optam pela criação de fantasias que espelhem distraidamente a causa das coisas e outras que, se fantasia têm, é de uma violência negra e amarga.
O objectivo destas bandas desenhadas, e da atitude do Gambuzine, não é simplesmente (ou não o é de todo) “contar histórias”, “mostrar trabalho”, “fazer uma bd fixe”, mas sim abrir os olhos, riscar do mapa injustiças, alertar para merdas, rir da estupidez, enfrentar demónios, doa a quem doer. Não se procura um caminho consensual, pausado e ponderado (leia-se “bem comportado”) como, por exemplo, o de Squarzoni (que pretende argumentar e não um “efeito de choque”), mas sim a boa velha maneira do grito e do soco. Se forem gráficos, mais eficientes serão? Essa é uma questão do foro da sociologia, cuja resposta será provavelmente negativa, mas que em nada diminui a força e pertinência desses mesmos gestos. Panfletário? Sim, sem dúvida. Vazio proselitismo? Nunca.
Na caça aos gambuzinos, são as circunstâncias que ditam o tipo de caça. Das peças encontradas neste número, vejamos algumas.
João Sequeira, de quem faláramos a propósito de Metamorfina, apresenta aqui uma história curta, sem falas, retratando um episódio na vida de um homem, um acontecimento que tem tanto de cómico, como de absurdo como ainda de estranhos sentidos psicológicos (“um papagaio atrelado a um rádio portátil” é substituído por um cão com ar tumultuoso, como quem vê a substituição de meios de possível comunicação, mesmo que de apenas uma direcção, por carracundas opções de companhia).
A presença de Teresa Câmara Pestana é central, naturalmente, com peças soltas, uma história maior, em torno de experiências (biográficas? ficcionadas? importará?) na Alemanha, outras menores, com o seu estilo gráfico habitual, um belo encontro entre a caligrafia rápida do apontamento e uma acabada estilização muito clara e legível. Raul Gardunha tem uma história desenhada de um modo solto, como que de apontamento, como se as figuras tivessem a mesma consistência ou valor moral que o fumo dos rescaldos dos muitos incêndios em Portugal: a história voga em torno dos negócios e redes que, possivelmente (quer dizer, digo eu, pois Gardunha apresenta esta realidade como certa e não a neguemos), levam dos incêndios à especulação imobiliária e à indústria de papel, com que os jornais se sustentam. E, já agora, mesmo os mais alternativos fanzines. Gardunha recorda um certo tipo de humor e verve que me faz irmaná-lo com Artur Varela, das Aventuras do Dr. Manel. Poder-se-ia dizer que são herdeiros de uma atitude da caricatura política, da pirraça social, do retrato morboso de um Portugal barato (“de plástico”, como diria O’Neill), mas com uma inteligência maior aliada a uma mais mordaz presença gráfica do que, por exemplo, outras vilhenices mais usuais.
Forte como um tanque de lagartas em fogo é a primeira história da publicação, “The batallion of the Virgin Mary”, de Ulli Lust, que nos apresenta uma história de terror, aliás, do mais puro terror, porque associado à realidade mais aterradora e presente, a das crianças usadas como soldados numa mão-cheia de conflitos espalhados no mundo. Se os noticiários nos deixam indiferentes, por vezes é pela ficção ou os contos de fada assaltados deste modo que mais rapidamente nos apercebemos de crimes continuamente mantidos no mundo.
Mais positivas (em termos de humor, de óptica) estão as histórias de Axel Blotvogel, que apresenta uma história que recordará a veia do fantástico espanhol dos anos 80, mas que num contexto diferente, parece ser a possibilidade de emergir de um longo sono letárgico as possibilidades positivas das bandas desenhadas punk aqui agregadas, e a parábola fantasiosa, quase “de fadas”, de Claire Lenkova, que recordará uma versão menos tumultuosa de Anke Feuchtenberger, mas a nada mais deve esta comparação (Lenkova é uma das madres da revista Spring, de que falámos aqui já).
E há outros trabalhos, menores em vários sentidos, mas que não menos contribuem para a homogeneidade da atitude do agrupamento heterogéneo: um paradoxo que, penso, o Gambuzine mostrará ser espaço consolidado para explorar.
Nota: agradecimentos a Teresa Câmara Pestana, pelo envio da publicação. A capa é de um azul claro acinzentado, mas o meu scanner fez-me o favor de a tornar branca... Para adquirir uma cópia, inquirir aqui.
heia,fiquei orgulhosa pela critica,afinal os cozinheiros da disney näo eram täo estrelados como dizias, e a capa é cinzentinha como a crise que nos faz logo mais portugueses ,eu espero que sim ,que o gambuzine vingue ,espero que nesta nova vida que os portugueses aparecam com mais forca(ler forssa que este komputa näo tem cedilhas) com algum realismo social(em vez das famigeradas gajas boas )este país é pródigo em histórias que só nas bds se levam a sério ...por isso espero pelos trabalhos mais arrojados
ResponderEliminare pronto o aditivo que faltava era o link para que as pessoas encomendassem via postal esta gorda pequena tiragem
http://www.gambuzine.com
Gostei de ler. Estimulou o apetite. Sigo a "espéciwoman" desde tenra idade mas não tenho um único número... tenho a tendência de as oferecer, todas, pois acho que as coisas não são para ficar em prateleiras... isso é nos museus. Teresa, quero duas, compro e já sei a quem as vou enfiar.
ResponderEliminarhasta
p.s.: tens aqui uma crítica que deu gosto ler...