
(Continuado daqui). Quanto ao número 5 da D & Q Showcase, apresenta-nos três histórias. Uma primeira, de Anneli Furmark, artista sueca, sobre a aventura de um casal homossexual à casa dos pais de um deles, experiência na qual se prefere esconder o amor para preparar o terreno à confissão para “mais tarde”. O que se adivinha e sobrevive dessa visita, porém, é que, como reza a canção, será sempre “mais tarde” e “mais tarde é tarde demais”. A segunda é de um autor norte-americano, T. Edward Bak, que explicita estar mais interessado na banda desenhada enquanto “veículo de processos automáticos de narrativa, para além da música caótica da memória”. Este trabalho é muito surpreendente por em primeiro lugar ser reproduzido (ou assim o parece) directamente de um diário gráfico, com todas as suas vicissitudes e acidentes, como se fosse importante, perdão, sendo importante esse suporte físico

Finalmente, segue-se a história, sem título, de Amanda Vähämaki. Visualmente, é bem diversa da anterior, pela introdução da cor. E, apetece exultar, que cor! Certo, não estamos perante uma mestria e plasmação da cor como se verifica em Mattotti ou Conefrey, nos quais a cor assume um protagonismo activo e estruturante. É verdade que a cor em Vähämaki está subsumida ao programa figurativo e narrativo, mas mesmo assim mostra uma exuberância “quente”, de patchwork, ou das pesadas camisolas de lã que algumas personagens usam para combater o frio que as envolve. Nalguns pontos, essa cor concentra-se

O que une o trabalho de escrita da autora, a nosso ver, desde Campo di Babà ao objecto pseudo-narrativo Squirels First e agora estes dois contos, é que se constitui sempre uma narrativa com um universo diegético nítido, em termos dos seus elementos, para depois se exercer sobre ele uma deslocação. Paulatina e linearmente, são apresentadas as personagens, o espaço da acção, e o seu tempo. Nenhum desses elementos se reveste de qualquer problemática em particular (metalepses, por exemplo) e todos apresentam-se sob unidade. Mais, a própria forma narrativa moldada por Vähämaki é relativamente linear e descritível sem desvios de maior, sem, literalmente, extravagâncias. Porém, e eis aqui a discernível característica do trabalho da autora, há sempre uma qualquer interferência nesses mundos, uma evasiva, um elemento disruptivo, que lhe parece natural, que não é de surpresa nem burlesca nem assombrosa para as personagens, mas que se reveste, mesmo assim, esse elemento, dizemos, de uma natureza que poderia ser caracterizada como maravilhosa, fantástica, absurda, ilógica, espantosa, desviante, estranha.

Nada é claro nem revelado, mas jamais se trata de uma falha, bem pelo contrário, fazendo-se dessa indeterminação narrativa, no seio de uma narrativa de resto clara, um valor artístico particular para estes trabalhos. Estarei errado na identificação destes elementos e querer colocá-los sob uma mesma égide, signo, até mesmo tema que atravesse a obra de Vähämaki como um baixo contínuo? Uma espécie de representação ficcional quer dos nossos desejos permanentes, cultivados desde a infância, sobrevivendo até à idade adulta, em podermos aceder a “outros mundos”, a “fantasias” e “sonhos”, “escapismos” até?, quer um certo mal-estar da sociedade contemporânea em que sentimos a existência de algo “que está mal” mas sem o poder identificar facilmente? Claro que podemos optar por chamar-lhe “crise”, “criminalidade”, “aquecimento global”, mas no fundo é apenas um mal du siècle que nos pertence por direito e herança, e a que a artista toma o pulso e traduz em figuras.
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