
Sob os auspícios da leitura de um muito recente livro do filósofo Noël Carroll, On Criticism, encontro a exposição de um pensamento teórico e programático em torno da actividade crítica estética com a qual não só me identifico como procuro activamente cumprir, apesar das muitas imperfeições e falhas (parte de uma aprendizagem e desenvolvimento sempre em curso). Não me cabe a mim analisar este livro, se bem que seja um autor que conheço bem e que procuro ler assiduamente (conjuntamente com outros autores que prezo), ajudando-me a tentar perceber qual o papel da crítica, e quais as suas funções, possibilidades e intrínseco valor. Mas abordemos alguns dos seus temas, para os poder aproveitar neste espaço. Para Carroll, e tese mais importante deste novo livro – de um nível introdutório, e não tão complexo como outros da sua lavra – é que a função principal da crítica é a avaliação. Isto é, para além da “descrição, classificação [em relação, por exemplo, a uma teoria dos géneros], contextualização, elucidação [i.e., o desvendamento de signos e/ou códigos], interpretação [sob uma miríade de disciplinas possíveis] e análise [explicação das partes e do todo]”, que é cumprida pela esmagadora maioria dos discursos que se fazem passar por críticos – sejam-no ou não, e com maior ou menor proximidade -, aquilo que faz distinguir outro tipo de discursos e um discurso propriamente crítico é o exercício de um juízo de valor. Esta última expressão nada tem a ver com a ideia de pontificado, de sentença, usualmente apresentada sob a forma de um número reduzido de “estrelas” ou “bolinhas”, devendo antes seguir um seu sentido mais profundo, da procura do valor especificamente encontrado na obra de arte a criticar (a valorizar). Como escreve Carroll, “a função primária da crítica é revelar o que é bom num trabalho. Classificá-los não é a preocupação principal do crítico”. Logo, importa menos julgar uma obra de arte pelos princípios de outra, por exemplo um livro de banda desenhada do mainstream norte-americano de super-heróis, como Joker (Azzarello e Bermejo), pela pauta do espaço criado por uma obra como a de Anke Feuchtenberger (e vice-versa), do que procurar no interior de cada qual o modo como cumprem as suas promessas, alteram o espaço anteriormente disponível e que ocupam e transformam, e revelam as suas forças. É claro que é possível, numa perspectiva mais global ou num patamar comparável (o que é difícil, parece-me), colocar uma contra a outra (“Feuchtenberger é uma artista que recria todo o espaço da banda desenhada, Joker adianta pouco à sua estrutura clássica” vs. “Joker apresenta uma curiosa variação e cruzamento de géneros, apreciável por um grande público, Feuchtenberger tem uma linguagem que encurta o leitorado”), mas de pouco adiantará para ler melhor cada uma dessas obras. E ler é o que nos importa.

Posto isto, a razão pela qual me sinto impelido a falar de duas antologias – discutivelmente parte das melhores antologias de banda desenhada no mercado contemporâneo e internacional (assim como a Glömp, a Kutikuti, a Rosetta – lenta, lenta – a Strapazin, a Canicola, entre outras -, a saber, a alemã Orang, da Reprodukt, e a D&Q Showcase, da canadiana Drawn & Quarterly, deve-se mais à presença de trabalhos da finlandesa Amanda Vähämaki que qualquer outra coisa. O que não nos impedirá de falar dos outros artistas presentes.
Amanda Vähämaki tem todas as particularidades que concorrem para a formação de um nome fundamental da banda desenhada contemporânea, a todas as instâncias. É uma artista em permanente formação, tem um cabal domínio dos instrumentos, quer técnicos (o lápis) quer estruturais (as pranchas), da banda desenhada, e procura tanto uma clareza nos propósitos das suas histórias como desvios que a tornam mergulhada numa aura de enigma (apresenta sempre histórias legíveis, narrativas, se bem que com um ambiente e uma delimitação das informações que torna os não-ditos tão significativos quando os elementos objectivamente determinados). Estes não são elementos nem suficientes nem necessários para a construção de um nome fundamental deste território, claro, mas são-no para Vähämaki. Haverá outros territórios, outras formas de o cartografar, de o delinear e de o iluminar. Todavia, esta artista tem o seu espaço próprio formando-se.
Isso não quer dizer que não possamos colocá-la junto a outros nomes. Por exemplo, a estratégia que tem em deixar visíveis o trabalho do lápis, as rasuras, a limpeza (ou melhor, a sua ausência), a repetição de linhas não-representacionais e ilógicas (numa perspectiva de um universo gráfico icónica e logicamente mimando o mundo natural), poderão fazê-la penetrar num grupo no qual se encontrarão os nomes de Thomas Gosselin, Merav Salomon, Sfar (o dos Carnets, sobretudo), Gregor Wiggert, a última Anke Feuchtenberger... Já as suas estratégias narrativas, da criação de um universo de referências limitado num espaço curto, quase familiar, no qual as restantes referências – a inscrição no mundo empírico e histórico que partilhamos – se dissolvem, e no qual um fantástico melancólico (ambas as palavras devem ser entendidas enquanto os seus exactos conceitos aplicáveis às artes literárias) ganha corpo e interfere com o mundo ficcional, poderiam irmaná-la com o seu companheiro de armas na Canicola, Andrea Bruno, mas também Gipi, Anders Nielsen, A I Wan, etc. Poderíamos, portanto, formar várias associações, combinações, famílias (lá está, “críticas”), dependendo da perspectiva do momento ou da circunstância precisa.
A antologia alemã Orang, pela mão do seu editor, Sascha Hommer, apresentou para este número um tema, “O Fim do Mundo”, e, com esse fim, os autores convidados criaram histórias originais. Todas elas exploram um hipotético fim do mundo, mas nenhum deles opta por soluções histriónicas ou que retratem os elementos que levam a esse mesmo fim do mundo. Existem pequenos acidentes que se acumulam, crises familiares crescentes, a contemplação de abismos negros, fantasmas que se revisitam, um aumento da loucura urbana, mesmo que anunciada na televisão, o alívio que vem ao se saber que a pena de morte será finalmente cumprida. Quase

De entre as quinze peças da publicação, Moki apresenta mais uma vez uma história com figuras delicodoces, mas onde paira sempre uma qualquer sombra negra de angústia, de solidão insuportável, de amor não correspondido. O artista de Hong Kong Hok Tak Yeung apresenta uma história sobre um prisioneiro nos últimos dias da prisão, presume-se que para o cumprimento da sua pena de morte. o seu trabalho de pinceladas negras carregadíssimas e “sujas” levam a uma quase dificuldade de leitura, mas ao mesmo tempo permite-se, através dos diálogos, das pequenas coisas em que se concentra, na forma como mostra no mínimo as relações entre os presentes, uma história tocante (que faz lembrar, a um só tempo, The New Sun, de Taro Yashima e Na Prisão, de Kazuichi). Verena Braun apresenta-nos uma fábula, não, uma intromissão futura, em que alguns animais passam a ocupar alguns postos de trabalho misturados com os humanos, e estabelecendo relações pessoais e amorosas tão complicadas como as dos humanos. Christian Maiwald escreve para Martina Lazin uma visita de uma jovem a um local que abandonara há muito e onde lhe é literalmente possível aceder aos fantasmas que abandonara, acentuando a distância que existe entre amigos abandonados e amigos presentes. Tommi Musturi oferta-nos mais um episódio da criatura de um só olho, Samuel, e a sua travessia do que parece ser um mundo hermético mas multímodo, e Ron Regé Jr. um outro pedaço das suas criaturinhas Disneyescas-punk em remontagens e reciclagens sonoras sem nexo aparente,

Mas falemos de Vähämaki. Se em Squirels first o lápis se encontrava utilizado, a um só tempo, densa e diafanamente (por um lado, a inscrição dos traços, das sombras, das manchas, por outro, as rasuras, os “fantasmas de figuração”, ou as mesmas sombras e manchas vistas de um outro ângulo, as suas fronteiras dissipadas), na história do “fim do mundo” incluída na Orang, “Die Aufführung”, “O espectáculo”, o carvão mistura-se de um modo cabal à densidade da noite derradeira que caiu sobre o mundo, criando assim um ominoso ambiente, em que as referências de que falámos atrás, as que ligam ao nosso mundo empírico, mais resolutamente se dissolvem. Em alguns aspectos, está próximo (por afinidade, não por qualquer trânsito directo) do último livro de Feuchtenberger.

(Continua aqui.)
Nota: agradecimentos a Christian Maiwald pelos esclarecimentos e os três shots de vodka polaco.
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