Já sabemos o modo como a cultura japonesa exerce ainda um fascínio que é muito diferente daquele que é conquistado por outras culturas Outras (não é gralha). O entrosamento entre a cultura popular, a potencialidade especial das ficções da mangá e animé se prestarem à fan-fiction, o desejo em manter para com a vida uma situação de perene adolescência (senão mesmo infância), e a impermeabilidade da cultura japonesa à leitura total (desde Barthes, desde antes?) resultam numa estranha mescla de imitação superficial, de transformação daquela cultura e suas produções em desculpa para a criação de características diferenciadoras no indivíduo que as persegue, num discurso que, por mais entre nós que se mobilize, é sempre outro.
Esse posicionamento, e enquadramento sócio-cultural é apenas um ponto de partida mas que ganha uma qualificação diferenciadora, leve, por Francesc Ruiz. Este artista catalão explora algumas das possíveis ligações entre a vertente formal da banda desenhada e um modo de criação visual da arte contemporânea. Vários textos, partindo quiçá da sua própria capacidade discursiva, alegam trabalhar num “campo expandido” da banda desenhada. Aquilo que me leva a definir essa diferenciação como “leve” deve-se ao facto do seu trabalho se inserir naquilo que chamei a “experimentação sobre a banda desenhada”, isto é, essas conexões possíveis, mas necessariamente parciais, pontuais, entre os discursos e práticas específicos às artes visuais de galeria (e espaços afins) e os da banda desenhada, por oposição à “experimentação na banda desenhada”, que verificamos no interior do seu próprio campo (e de quem temos tentado acompanhar, juntamente com outros críticos, os trabalhos, e a que Divide & Impera tentou responder).
Dito isto, esses projectos de Ruiz, que poderão ser explorados através das galerias a que está afecto, a barcelonesa Galeria d’art Estrany ou a berlinense Maribel Lopez, também se dedica – paralelamente?, complementarmente?, extensivamente?, o termo correcto não é consensual – à produção de objectos mais próximos da banda desenhada propriamente dita, como este livro. Em muitos dos seus trabalhos, de “banda desenhada expandida” (nas galerias) ou de banda desenhada, Ruiz, homossexual, explora não apenas os formalismos e estratégias narrativas análogas à da banda desenhada, como particularmente a banda desenhada japonesa de temática gay, sobretudo aquela criada por mulheres e consumida por mulheres, a que se dá o nome de yaoi manga. Tendo em conta a forte e regradamente estratificada produção cultural de banda desenhada naquele país, faz todo o sentido circunscrever essa objecto de estudo. Se pareço declarar gratuitamente aqui um aspecto da vida pessoal do autor, é porque essa informação é central na trama deste pequeno diário, ou relato, de viagem. Manga Mammoth. Francesc Ruiz en Tokio trata de uma curta viagem de uma semana de Ruiz a Tóquio, cujo objectivo era “un proyecto de cómic autobiográfico en el que quería reflejar el mundo del manga y su relación con la comunidad gay”, explorando-se portanto os fundamentos e as consequências daquele tipo de mangá aventado acima – com todas as leituras possíveis, de hipocrisia a abertura, de opressivo a libertário – mas também na senda do caminho aberto pelos trabalhos do artista japonês Jiraiya, que ilustrava as capas da revista G-Men, dedicada a homens usualmente muito musculados e barbudos, da dita comunidade homossexual “bear” (“ursos”). Essa investigação é a desculpa da viagem – e o autor expressa ao longo do texto o seu conhecimento histórico, teórico e político deste campo, citando estudos e autores, datas e publicações (a que existe progressivamente mais acesso com as traduções nos círculos académicos, como pela norte-americana Mechademia) -, mas não a matéria do livro em si. Aqui e ali acompanhamo-lo na sua procura de publicações, no seu trabalho de pesquisa e até adivinhamos entrevistas e conversas profícuas, mas o livro centra-se num só acontecimento cumulativo: a descoberta do bar gay Mammoth.
Ruiz faz, pelo menos fisicamente, parte dessa comunidade “bear” e o bar Mammoth agrega particularmente cliente japoneses que partilham as mesmas características e interesses – não quero com estes comentários parecer redutor das liberdades e idiossincracias destas pessoas, mas somente ter em conta que numa sociedade assaz estratificada e em que as dicussões sobre a sexualidade, ao contrário do que possa parecer, não são públicas, a necessidade de “portos de abrigo” é maior, tal como é ainda, infelizmente, em Portugal, em que os preconceitos e os estigmas ainda não foram abolidos por completo. O livro dá conta do lento ritual de entrada e descoberta deste espaço, dos seus espectáculos, da dificuldade e dos passos necessários para encetar conversas com as pessoas que lá trabalham ou que o frequentam, o modo como o autor vai conseguindo comunicar, ligar e aproximar-se dessas pessoas – atravessando todas as estratégias típicas dos turistas, do forasteiro no Japão ávido pela sedução em seu torno. E o corolário está, como não podia deixar de ser, nas súbitas paixonetas por esses, mas que se manterão somente nesse círculo de diálogo afastado, cumprido por pequenos gestos que lhe serve de matéria para estas memórias. Não há qualquer tipo de tensão, e Ruiz não inventa – ou não parece inventar – nenhum tipo de trama empolgante em torno destes acontecimentos quase banais de um turista em Tóquio (não obstante os seus interesses específicos, alheios às cartilhas mais usuais: aliás, o autor não deixa de, a um só tempo, revelar-se como “turista banal” como de marcar a sua “diferença dos demais”). No fundo, essa é uma lição que quase todos os diários de viagem sobre “culturas exóticas”, mormente os de banda desenhada, que se prendem usualmente mais às relações entabuladas com as pessoas “de lá”, nos dão a ver: como é possível criar laços de proximidade, até de amizade (por mais circunstancial e transitória que seja), não deixando que a “alteridade” se dissipe e até se torne mesmo factor de um processo de busca e descoberta muito particular.
O próprio formato do livro parece querer dar a ver, a um só tempo, a ideia de “alteridade” e de “viagem”. Se bem que o scan da capa faça imaginar um livro ao comprido, a espinha do mesmo está acima, isto é, o formato está muito próximo dos tankobon, mas para se ler temos de o folhear como se de um livro de postais se tratasse. Tudo está impresso num laranja vivo, quase fluorescente, e as letras são todas impressas em maiúsculas com os pontos minúsculos: tudo isto concorre para alguma dificuldade de leitura, que apenas podemos integrar na tentativa de a “estranhar”, acompanhando as sensações de atravessar a cidade de Tóquio.
Notas finais: agradecimentos a Marco Mendes, pelo empréstimo do livro.
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