A comparação com Portugal não seria sequer possível, dada as nossas deficiências gravíssimas neste sector, não obstante as tentativas de um par de pessoas e o trabalho, muitas vezes ingrato, dos investigadores que batalham nesta área: salvas excepções, não existem publicações específicas, não existem centros de estudos organizados, não existem instituições eficientes ao seu apoio, não existe um discurso concertado, não existe gravidade, surgindo muitas vezes tentativas ad hoc (e até “haddockianas”), não existe sequer um interesse mais generalizado por esses assuntos. A questão insistente de Witek, “E depois?” é um excelente instrumento para ponderarmos sobre este assunto.
Dito isto, essa malha apertada nota-se praticamente em qualquer publicação de contornos minimanente académicos em língua francesa que se dedique à banda desenhada (nem sempre, porém). Nota-se, por exemplo, na leitura das notas de rodapé e listas bibliográficas dos artigos deste número especial da Art & Fact, aliás, “Revue des historiens de l’art, des archéologues et des musicologues de l’Université de Liège”. Apesar da aparente não-relação imediata entre essa revista e o tema deste número, os artigos aqui reunidos respondem de facto a preocupações sérias e trabalhos desenvolvidos no quadro de discursos anteriores, não havendo espaço para “redescobertas” ou “apresentações”. Como se reparará pela capa, porém, não se trata somente de uma revista dedicada à banda desenhada, mas sim a um prisma muito particular, o da norma e transgressão, suas relações, como a segunda responde à primeira, ou como a primeira se consolida em relação à segunda, que negociações existem, etc.
É nesse prisma então que surgem estudos sobre o conceito do “herói” na dita “banda desenhada realista da idade de ouro”, por Albert Barrera-Vidal; sobre o modo como a “linha clara” de Hergé se tornou uma espécie de “grau zero” da legibilidade da banda desenhada clássica, e como as variações no seu no seu interiorHergHerg, classicizantes com Juillard e meta-referenciais com Marc-Antoine Mathieu, a fazem expandir, por Jean-Louis Tilleuil; sobre esse pólo de tensão e negociação na banda desenhada japonesa, em que as regras se quebram de modos bem diferentes daqueles do Ocidente, por Edit Culot; pelo modo como a banda desenhada de temática homosseual, nos Estados Unidos, partem de uma base de transgressão para, por vezes, criarem um paradoxal campo de conformismo, por Jean-Paul Jennequin; sobre os modos de edição na Bélgica, por Floriane Phillipe; e sobre experiências ou autores específicos que são interpretados ou estudados à luz das noções tema desta publicação: Jean-Claude Forest (por Harry Morgan), a série Donjon (Björn-Olav Dozo), o livro Buscavidas, de Trillo e Breccia (um brevíssimo mas surpreendente estudo sobre um estranho exercício de censura, por Aarnoud Rommens), o T.N.T. en Amérique de Jochen Gerner (por Gert Meesteers), o projecto Match de Catch à Vielsam, da Frémok, entre autores de banda desenhada e pacientes mentais de Hasse (por Erwin Dejasse), a revista belga do fim do século XIX Caprice-Revue como espaço de experimentação desta área então ainda em formação (por Frédéric Paques). Ainda inclui uma longa entrevista a Dominique Goblet, uma importante autora contemporânea de que já falámos aqui a propósito de Faire semblant c’est mentir, de uma sensibilidade verdadeiramente contemporânea (por Pascal Lefèvre, parte de uma entrevista vídeo que já havia apresentado num número da Relief), e um pequeno escrito de Olivier Deprez sobre as suas práticas performativas do desenho, ou de colegas como Vincent Fortemps e Thierry Van Hasselt, em projectos de colaborações transdisciplinares (envolvendo a coreografia, animação, desenho ao vivo), que levaram a livros tais como Blackbookblack, Barques e Heurex, Alright!, de cada um desses autores respectivamente, na Frémok.
Como é de esperar, alguns destes artigos são mais pertinentes e acabados do que outros, mesmo quando abordam autores aparentemente conhecidos, como Forest, ou séries que parecem não encerrar potencialidades de reescrita de todo um posicionamento estético e comercial, como Donjon, e alguns deles têm uma capacidade de actuação mais limitada, como o artigo sobre a produção japonesa: contudo, todos fazem, em conjunto, uma circunscrição acabada das duas noções intrinsecamente ligadas – norma e transgressão -, e mesmo assim permitindo a múltipla leitura dessas mesmas noções, conforme a contextualização em que são encontrados e estudados.
A edição da revista foi acompanhada ainda de dois outros projectos complementares. Um foi a edição de uma espécie de portfolio de Dominique Goblet. Contudo, não tendo comprado esse projecto, apenas podemos imaginar o prazer perdido. O outro trata-se de um pequeno livro que reune trabalhos anteriormente publicados e inéditos de Benjamin Monti, Ruminations, criando-se um objecto coerente – a própria ideia de “ruminação” aponta para um retorno a materiais anteriores para a sua reestruturação - , ainda que em torno de experimentalismos formais, narrativos e figurativos que surgem como um desafio à interpretação. Encontrando, em termos figurativos, ecos tanto de autores clássicos como Jean-Claude Servais como de mais independentes como Romain Slocombe ou Chantal Montellier, o que Monti nos oferta é uma espécie de alegoria em torno da violência e da morte, numa narrativa cujos experimentalismos indicados desenham um sentido mais elusivo do que cumulativo nos seus efeitos de recepção.
Nota final: agradecimentos a Isabel Baraona, por me ter colocado na senda desta publicação.
Para mais informações e compra, ver site da instituição.
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