Em todos os filmes anteriores de Miyazaki, a ideologia ecologista era clara, pelo menos desde a sua longa-metragem Nausicaä (1984), se bem que possamos encontrar contornos das mesmas ideias em Conan. Existem sempre personagens dispostas nos tabuleiros das suas tramas narrativas de forma a construir como que duas posições antagónicas (poder-se-ia dizer até manequeístas, mas isso não é totalmente verdade em Miyazaki, havendo sempre espaços de intervalo e dissolução desses mesmos papéis), uma da quais que entende o sacrifício da natureza como passo necessário para um qualquer tipo de “avanço” (exteriorizado, material, palpável) e outra que procura defender as coisas da natureza (interiorizada, espiritual, um “avanço para dentro”). No caso de Ponyo à beira-mar, a primeira posição surge dissolvida em toda a humanidade, ao passo que a primeira, apesar de subsumida a um princípio mais egoísta – o desejo da sereia Ponyo em se tornar humana -, é ocupada pelas personagens principais do filme. Ora, poderemos nós afirmar que em Ponyo essa noção se torna demasiado explícita, roçando o proselitismo (mais até do que a cena de Chihiro a salvar o rio da poluição que o enclausurava)?
Podemos ver o filme de duas formas distintas, penso. Ou a partir da perspectiva de um adulto, querendo encontrar estrutura, um equilíbrio interessante entre o número de elementos e a forma como se encaixam e criam variações internamente ao filme, associações com outros textos culturais (a colagem a Pequena Sereia, pela versão original de Andersen, é por demais clara), e a partir daí transformando-o num texto legível através de toda uma série de instrumentos críticos. Essa é uma actividade não só plausível e possível como expectável da parte de um discurso crítico, propriamente. Outra é a perspectiva infantil, para quem o filme é sobretudo criado. Nesse campo, no que diz respeito à produção mainstream da animação clássica, Miyazaki ocupa um indiscutível lugar de destaque. Na verdade, Miyazaki responde sempre a alguns dos temas mais prementes do animé, como as “monstruosidades biológicas e/ou tecnológicas” e as “fantasias apocalípticas” – como identificados na antologia de ensaios Cinema Anime, a título de exemplo – mas sempre colocando-os em termos infantis (e não adolescentes, como a esmagadora maioria da produção cinematográfica de animação japonesa). Ponyo à beira-mar evoca a ideia de fim do mundo, mas a violência desse acontecimento é expressa através de elementos aparentemente inócuos: uma chuva de estrelas brilhantes, a invasão das águas que transforma a pequena terreola numa espécie de utopia aquática, habitada por magníficos peixes pré-históricos e medusas, e uma ideia de limpeza que não é secundária na leitura global do significado do filme. E a monstruosidade encontra-se presente em criaturas de contornos doces: Fujimoto, que já foi homem e agora é criatura do mar, a deusa (xintoísta) do mar, a própria Ponyo. Não há nenhuma personagem que se horrorize verdadeiramente com o facto de Ponyo ser uma sereia e que se prometa ali uma relação futura com um humano (ela torna-se humana, claro). Qualquer vertente que possa ser explorada de modo violento desaparece, e fica apenas o ambiente do milagre: na sua acepção literária mais estrita, Ponyo (tal como os anteriores filmes) pertence à esfera do maravilhoso. [É curioso comparar o plano da casa de Susuke e Lisa com a da mãe de Norman Bates: estrutura a focalização idêntica, sinal completamente diverso; tal como o plano da deusa-mãe nos poderá recordar o da mulher em A Valsa com Bashir: os modos de emprego diferenciados de formas análogas levam a sentidos distintos].
A esmagadora maioria das longas-metragens de cinema de animação, pelas próprias condições de produção (isto é, integradas numa verdadeira indústria de princípios e objectivos num quadro económico), pauta-se por uma inscrição nas regras mais clássicas da representação e da narração.
Quanto à primeira, trata-se daquilo que o princípio do real dirige, em que mesmo a aparentemente mais fantástica, mais fantasiosa, mais fantasmagórica das formas corresponde a uma “realidade” – com peso gravitacional, redes de interacção, tangibilidade – do universo em que se insere. Isto é o que se passa em todos filmes de fantasia (inclusive ficção científica, high fantasy e super-heróis): o “monstro” existe mesmo naquele local, os raios de luz são disparados de uma arma, etc. E quanto se trata de filmes que implicam algum grau de realismo (ao acaso: Mulan e Coraline), os acontecimentos respeitam as mesmas regras do que seria um filme com actores reais, objectos na gravidade terrestres, etc. (por exemplo, o jogo de cortes entre cenas de Coraline é totalmente “cinematográfico”, em vez de procurar uma plasticidade mais livre, permitida pelas próprias formas animadas: veja-se o My Love, de Aleksandr Petrov, para transições mais livres, animadas). A animação que mais jogaria contra esta “regra” é aquela “de autor”, onde podemos encontrar os clássicos trabalhos de Len Lye, Norman McLaren e René Jodoin (e ao qual poderíamos acrescentar nomes do cinema experimental, como os Rhythmus de Hans Richter).
Quanto à narração, tem a ver com o facto de que todas e quaisquer formas ou elementos que surjam no espaço de representação tenham que estar subsumidas ao programa narrativo. A ideia de exploração de formas para efeitos plásticos puros, efeitos visuais, atracções, etc., está como que diluída, senão mesmo negada. Nalguns filmes de Ivan Maximov (como Niti ou Da esquerda para a direita) encontramos esses princípios esbatidos, na sua procissão de personagens múltiplas; o ainda magnífico Yellow Submarine explora as várias estratégias de animação para construir espaços de representação musical e de efeitos visuais o mais livremente possível. Por exemplo, os mais recentes Waking Life, A Scanner Darkly e Renaissance usam a rotoscopia mas para efeitos muito limitados, “surrealismos” (i.e., algo “por sobre” a realidade) de um grau muito curto. Não há, neles, uma utilização da eventual mais-valia permitida pela animação em relação a toda a panóplia de intervenções que hoje as tecnologias digitais permitem. E essa mais-valia é, acima de tudo, ontológica, estética, e não meramente técnica.
Ponyo inscreve-se na abordagem clássica destas questões. Tem uma história para contar e todos os seus elementos concorrem de um modo claro para ela. Na fundo, tendo em conta o facto de que este filme se apresenta na condição de narrativa clássica, a trama é algo pobre, não existindo crises nem internas às personagens nem obstáculos de maior externos que possam impedir a prossecução dos seus objectivos. A Princesa Mononoke e A Viagem de Chihiro eram relativamente mais complexos (mas ainda assim simples) do que o presente filme, o que o leva a interpretar como algo que tenha sido criado quase exclusivamente para as crianças mais novas – daí as contínuas cenas “maravilhosas”. As características formais-narrativas de Miyazaki mantêm-se perenes: personagens de rostos límpidos e inocentes, uma personagem ocupando o espaço ou função de antagonista com traços físicos muito diferentes dos das restantes personagens, momentos de humor que passam pela expressividade mais frenética da felicidade simples das crianças, localidades que sublimam os aspectos mais positivos das cidades reais, grandes massas de matéria a cavalgar ou a atravessar grandes distâncias, etc.
Esta ideia de uma infantilização persegue-se noutras linhas. As figuras paternais nunca se encontram muito à vontade nos filmes do realizador japonês e, mesmo que sejam identificados e ajam até neste filme, a verdade é que o pai é apenas uma figura semi-ausente e sem qualquer importância na economia da trama, e a mãe acaba por também se revestir de uma importância secundária. O próprio facto do pequeno Susuke a tratar por “Lisa” e não por “Oka-san” ou outro termos qualquer, aponta para uma distanciação que, não sendo explorada e exposta, se torna significativa nessa secundarização. Há, porém, um momento digno de Hitchcock, se bem que menos tenso: quando Lisa fala com a Deusa no interior de uma bolha protectora, observamos essa cena “de fora”, com as velhotas do lar. Nada nos é dado a ver dessa conversa, nem uma frase solta, nem expressão corporal... Não é que seja pouco importante, talvez, mas que essa comunicação entre “mães” seja deixada fora de alcance, pois é “conversa de adultos”, reforçando sempre esta perspectiva infantil (as velhotas, apesar da idade, agem, de novo, como crianças).
Dito isto, o entrosamento de uma quase impositiva filosofia ecologista aliada à simplificação de quase todos os elementos que compõem este filme tornam-no uma das obras menos acabadas de Miyazaki, que foi bem mais comovente com Totoro, e elaborado com Mononoke. Não obstante, se nos abstrairmos do peso necessário da história e dos movimentos lineares a que as personagens são obrigadas – para que de facto se possa dizer que existe uma “história” -, restam algumas imagens e sequências de puro movimento e metamorfose que poderiam muito bem sobreviver como obras autónomas, se o realizador se entregasse a exercícios de experimentalismo.
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