Estes três pequenos grandes livros – a imagem não é de todo um cliché nos casos presentes – estão naquele fim do espectro de que falámos anteriormente sobre a banda desenhada enquanto estrutura específica de uma linguagem visual, o fim no qual se encontram estratégias maximizadas de exploração dessas mesmas estruturas e especificidades, como ainda, repetimos, “processos de experimentação, progresso ou reinvenção do próprio meio”.
Na revista Art&Fact no. 27, de que falámos anteriormente, indicou-se o breve texto em que Olivier Deprez dava conta precisamente destes três projectos, irmanados pela razão de serem obras que, resultando ou permitindo a criação destes três livros, nascem de projectos de colaboração interdisciplinar, de uma dimensão performática, com outras artes ou disciplinas criativas. Mais, elas são como que o corolário do que fora iniciado nos anos 90, sobretudo pelas mãos do projecto colectivo da Fréon e Amok, depois Frémok, no que diz respeito a, citemo-lo, “a passagem da página ao espaço e vice-versa”. O título desse artigo, “Dispositifs intermédiatiques: de la case à la perfomance et vice versa” é explícito.
Convém explicar as condições de produção e origem de cada projecto.O livro Barques (título em inglês, Crafts), de Vincent Fortemps, nasceu da colaboração com dois músicos num projecto intitulado La Cinématique, nas quais desenhava ao vivo com um dispositivo que permitia aos espectadores ver a sua criação, à qual os músicos respondiam. Esta experiência de fazer resultar um objecto impresso a partir de uma criação encenada não é nova no autor, se recordarmos o magnífico Chantier Musil - Coulisse, que adveio de uma peça teatral experimental baseada numa adaptação d’O Homem sem Qualidades.
Thierry Van Hasselt colaborou com a coreógrafa Karine Ponties, para a companhia Dame de Pic, construindo o espectáculo
Holeulone. Esta é já a segunda colaboração entre os dois autores, continuada de Brutalis. Dois bailarinos executavam os seus movimentos, e sobre eles e a cena eram projectadas as imagens da “tinta animada” de Hasselt. A partir disso, Hasselt convida a escritora Mylène Lauzon para escrever um texto em francês e inglês (aqui traduzindo-se mutuamente, ali misturados, ali contradizendo-se), e elabora um livro nas quais as páginas parecem querer compor uma história de estrutura clássica, parecem prometer um rumo, mas este acaba por se dissipar em várias direcções, tal como a tinta em água (parece haver um DVD com a animação de Hasselt disponível; não o conheço).
Deprez, com o também xilogravador Miles O’Shea e a designer Alexia de Visscher, criava e imprimia “numa biblioteca, ao vivo, gravuras sobre madeiras negras, juntando-as num livro negro de páginas negras”, numa série de espectáculos em várias bibliotecas (envolvendo o próprio espaço para a disseminação dos livros criados). Essa performance seria depois representada noutras tantas gravuras. Ambas fazem parte do corpo de Blackbookblack.Paul Wells, no seu livro Understanding Animation, apresenta esquematicamente uma maneira de diferenciar a animação “ortodoxa” da “experimental”, cujos termos, penso, são facilmente adaptáveis à banda desenhada (salvas as distâncias das determinações tencológicas, e o facto de que alguma da animação não recorre ao desenho, tal qual como alguma banda desenhada...). Wells faz as seguintes oposições: configuração vs. abstracção, continuidade específica vs. não-continuidade específica; forma narrativa vs. forma interpretativa; evolução do conteúdo vs. evolução da materialidade; unidade de estilo vs. estilos múltiplos; ausência do artista vs. presença do artista; dinâmica do diálogo vs. dinâmica da musicalidade.
Destas oposições, que devem ser, como sempre, entendidas como pólos de tensão ou espectros nos quais os vários trabalhos se podem colocar, e não enquanto territórios de exclusão mútua absoluta, talvez aquelas que menos adaptabilidade ofereçam à banda desenhada sejam as duas últimas: ausência/presença do artista e diálogo/musicalidade. A primeira dever-se-á ao facto de que mesmo na produção mais comercial e taylorizada da banda desenhada (envolvendo editor, escritor, desenhador, arte-finalista, colorista, letrista e outros), há uma largíssima distância dos métodos de produção de um filme de animação da mesma “categoria”, que envolve um número muito superior de pessoas, as quais não estabelecem relações directas entre si; e mesmo nesses casos de banda desenhada cada um dos passos é relativamente “visível”, isto é, “presente”. Nesse sentido, mesmo a banda desenhada mais comercial premite a presença do artista num grau maior do que no caso da animação (a qual atravessa sempre a “caixa negra” da tecnologia e a “ignorância” do seu “funcionário”, para empregar expressões de Villém Flusser). A segunda dever-se-á à ausência de som nas bandas desenhadas, mas pode-se traduzir essa ideia pela organização narrativa linear e causal (o “diálogo” coerente, claro, consequente) e pela livre associação de temas, formas, permitindo recuos e modos de leitura heterogéneos (a “musicalidade”).
Em segundo lugar, nenhuma delas oferece uma clara narrativa, ou seja, há uma não-continuidade, uma procura pela fluida associação dos elementos distintivos, fazendo surgir na continuidade imposta pela leitura bases ilógicas de sentido, ligações oníricas. Heureux, Alright!, não só pela presença de um texto verbal escrito mas pela recorrência de “cenas” determinadas (um casal, espaços), apresenta uma ideia fugaz de uma “história”. Nesse sentido, há menos uma “forma narrativa” do que a capacidade de encontrar várias “formas interpretativas”, jamais resolvidas.
Todas estas razões e estruturações (ou destruição das estruturas clássicas e ortodoxas) levam-nos a compreender mais facilmente a última oposição, que dá menos importância ao conteúdo (i.e., a “história”, a “trama”, a “clareza”) do que à materialidade. Os materiais de cada artista não desaparecem, subsumidos na ideia que pretendem fazer emergir. O que ocorre quer na banda desenhada clássica (esquecemo-nos de que Tintin ou o Batman são desenhos a tinta sobre papel, seguindo-os nas suas aventuras) quer na banda desenhada “comunicativa” (aprendemos sobre cortar peixe cru em Oishinbo e não paramos para contemplar as formas criadas por Akira Hanasaki). Bem pelo contrário, somos levados a contemplar a beleza própria, material, inalianável, dos cortes sobre a madeira, do carvão e dos riscos sobre acetato, das manchas de tinta de, respectivamente, Deprez, Fortemps, Hasselt. Esta faceta é reforçada pela segunda citação que Deprez faz de Bakhtin no seu artigo: “O artista não é um especialista senão como um artesão, isto é, apenas o é em relação ao material”. E Deprez sublinha ainda mais ao falar das imagens de Fortemps a negro riscadas a branco como se fossem registos dos sons dos músicos, as estratificações das de Hasselt como se fossem fotogramas da animação, e das suas como exercício auto-referente dando a ver a própria gravação e impressão do livro.
Olá Pedro. Há 2 posts, não à 2 posts...Um abraço do RC
ResponderEliminarXiii... Que vergonha! *coranço*
ResponderEliminarObrigado, já está corrigido.
Abraços!
Pedro
P.S. Ainda vai demorar a leitura do Polyp...