Este álbum de Rui Lacas foi lançado no último FIBDA, no qual o autor teve uma exposição retrospectiva do seu percurso até à data. Nela, ficava claro que a vontade de trabalho de Lacas atravessa um número considerável de territórios no que diz respeito aos géneros, às circunstâncias de produção, aos humores e até mesmo aos estratagemas formais empregues. O que sobrevive dessa diversidade é essa mesma vontade. A vontade é usualmente acompanhada de uma elaboração complexa de uma “voz”, de uma ideia mais ou menos consistente de desenvolvimento, de inflexões de uma obra, de uma espécie de via programática. Em Portugal, é sabido, a forma como o mercado está construído impede que a via da independência económica dos artistas de banda desenhada não possa sequer existir, e, assim, não poderemos encontrar as circunstâncias melhores para um desenvolvimento contínuo dessas mesmas vozes. Flutua-se, faz-se o tango, experimentam-se vias.
Confesso que serei um leitor mais saciado com o Lacas do A filha do caranguejo, por exemplo, do que com Asteroid Fighters. Mas este álbum, o qual se espera seja o primeiro de uma série, como indica o sub-título (algo redundantemente indicando “O início”), está para outros livros de Lacas como 1963 está para From Hell (Moore), ou Total sell out para Goldfish (Bendis), ou Metamorpho para The Sandman (Gaiman), etc. Isto é, no seio de um progresso (sem o seu sentido moral, aqui) de trabalho, que passa pela criação de referências ou materiais mais sopesados, um momento de total descompressão e jogo divertido com toda uma série de elementos típicos, senão mesmo chavões, de determinados géneros de banda desenhada, e procurar com isso construir algo leve e cómico, sem deixar de conseguir criar uma rede de interesses em se seguir a trama narrativa. Isto não quer dizer que Rui Lacas tenha construido este livro com qualquer tipo de leveza. Essa leveza é da natureza da narrativa, dos piscares d’olho, das redes de referência e de humor. O autor continua, ou apura, a exploração flutuante de momentos contrastantes: ora mais pausados e serenos, como quando o gigantesco Granit, cruzamento entre Rui Gamito e Thor, se passeia nos seus jardins, ora frenéticos e sumarentos de pormenores, como a hilariante sequência de Pepito a acordar numa “cidade europeia”, a sua expansão cósmica e morte às mãos, ou melhor, dentes, de um asteróide alterado… Quase sempre a estratégia de Lacas se faz através de vinhetas inscrustadas nas pranchas, sempre com um exímio ritmo das acções, procurando pontos de atenção paralelos a um mesmo evento, distribuindo distâncias em relação a um qualquer acontecimento, e espalhando pequenas piadas a todos os níveis visuais e textuais (reparem-se nas onomatopeias da morte de Pepito).
Pelos gostos e estratégias do autor, Rui Lacas encontra-se no centro de uma certa produção contemporânea europeia, de vertente mais comercial (ainda que não comercialóide), que une temas cultivados na banda desenhada norte-americana (ficção científica, super-heróis, futurologia, grandes cataclismos), formas de legibilidade franco-belgas (o álbum, o desenho caricaturado, as cores claras, o texto escorreito, os diálogos credíveis) e pérolas próximas da banda desenhada japonesa (os chibi, as onomatopeias descritivas, entre outras referências). Aliás, à luz desta última área de produção, se encontro alguma afinidade quase directa entre este livro e um outro, será o Dragonball de Toriyama. Tendo em conta a assombrosa produção contemporânea de banda desenhada comercial no mundo ocidental, Lacas terá certamente um lugar de destaque entre a confiança da construção com a espatafurdice da história de Asteroid Fighters.
Asteroid Fighters é o nome de, por um lado, o que parece ser uma agência de protecção à escala mundial do novo governo global que se instalará num hipotético futuro, mas por outro, o nome de um grupo mais restrito de personagens que são como que super-heróis alternativos a esse mesmo poder. A hierarquia entre esses poderes não é clara, tal como não o é a razão que levou à morte de um dos companheiros e à personagem-sombra que parece comandar a conspiração (se bem que haja pistas para que possamos desvendar alguma parte dela), mas são essas mesmas áreas obscurecidas aquilo que monta a expectativa suspensa para o próximo álbum.
Estes personagens especiais, como se depreende pelos documentos anexos ao livro, são baseados nos companheiros de atelier de Rui Lacas, quase todos eles autores também de banda desenhada (Pepedelrey, Rui Gamito e Jorge Coelho, mais o designer Sérgio Duque, todos do The Lisbon Studio), com os quais havia feito Virgin’s Trip. A informação é pública, e quem os conhece pessoalmente reconhecerá não apenas as figuras como determinadas características que informam estas novas personagens. Esta estratégia recordará, à vez, a forma como, por exemplo, Stan Lee e Jack Kirby se faziam inscrever nas suas próprias histórias, mas também como alguns autores franceses (penso em vários casos envolvendo os membros e ex-membros da L’Association) criam histórias ficcionalizando em torno dos seus colegas de atelier. Quanto ao próprio Rui Lacas, haverá outra personagem na qual é bem possível que se projectem algumas das suas características e experiências pessoais, mas estando esse material fora de uma leitura comum, mesmo que crítica, sem ter de enveredar pelo biografismo ou a intimidade, só pode ficar suspenso nessa mesma leitura.
Tudo neste livro está preparado para dar continuidade à vontade de o ler entre um público alargado e variado, sem quaisquer titubeações ou consessões. É caso para dizer, relembrando mais uma vez a criação de Toriyama, “não percam o próximo episódio porque nós… também não!”
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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