15 de janeiro de 2010

Secret Identity. Joe Shuster; Craig Yoe, ed. (Abrams ComicArts)

Este livro surge como uma descoberta – bombástica, como se espera – da parte de Craig Yoe, editor de vários gestos de redescoberta e reavaliação de pérolas relativamente obscuras da banda desenhada norte-americana da “Idade de Ouro” (um período que se cinge à banda desenhada dos comic books, sensivelmente entre as décadas de 1930 e 1950, e que deixa muita produção, e até mesmo uma atitude mais ampla, de fora do foco de atenção), como a Modern Arf. Secret Identity The Fetish Art of Superman's Co-Creator Joe Shuster é uma colheita de alguns dos desenhos da Nights of Horror, a qual pode ser descrita como uma (passo a citar) “revista ilustrada [ou de banda desenhada] de fetichismo sadomasoquista”. A prosa é dactilografadas, e as cópias de má qualidade, mas de facto existiram cerca de uma vintena de números publicadas na década de 1950, e vendidas “debaixo do balcão”, dada a sua natureza sexual.
Apesar de hoje nos parecerem imagens quase cândidas, junto a muita da publicidade ou vídeos de música pop, era o que passava por pornografia na sua época. A “bomba” está no facto de que os desenhos foram muito provavelmente feitos por Joe Shuster, o co-criador e desenhador do Super-Homem (estreado em 1939). Yoe explora esta produção de Shuster, alargando o material e afunilando no autor aquilo que já antes explorara em Clean Cartoonists' Dirty Drawings.
A investigação de Yoe não se limita somente à apresentação do material. A sua introdução é relativamente completa no que diz respeito à integração destas publicações na história pessoal e profissional de Shuster, na cultura do tempo, sobretudo tendo em conta o ambiente negativo em relação aos comic books nos anos 50, protagonizado pelo Dr. Frederic Wertham, e ainda explorando as ligações destes livrinhos a um crime protagonizado por uma gang de, cito correctamente, jovens judeus nazis. Wertham surge as mais das vezes como uma espécie de Torquemada em relação à banda desenhada, e são raros os escritores e defensores da banda desenhada que deixam de lado uma oportunidade para demonstrar o quão errado o psiquiatra estava. Porém, a verdade é que o caso é bem mais complicado do que o pintam, e Wertham não deixava de ter razão em que a banda desenhada, sobretudo aquela veiculada por comic books comerciais de géneros tais como os dos super-heróis, veiculavam de facto uma ideologia fascizante. E que por passar por “mero entretenimento” e “fascinante”, mais perniciosa se tornava a mensagem mais profunda. Todo o processo que levaria às várias acções censórias dos comic books (cujo corolário seria o famoso Comics Code) entrosam em acontecimentos mediáticos da altura, como os tais crimes citados, e com publicações específicas transformadas em “provas” apresentadas nas comissões. Nights of Horror foi uma dessas provas.
As histórias desta publicação mostram sempre pequenas e simples tramas em que alguém é dominado por outrem e obrigado a cometer actos de abuso sexual, ou outros (drogas como a marijuana, a morfina e a heroína surgem também, tal como o fetichismo nazi, formas de escravatura moderna, etc.). os pontos altos estão nas cenas em que se amarram, torturam, chicoteiam, ou humilham as vítimas. Pode ser algo de tão brando como umas belas palmadas nos rabiosques transformados em bongos, como algo de violentíssimo como uma facada no abdómen. Apesar de jamais se ver um pêlo púbico, ou uma cena sexual explícita, vê-se sangue, suor e lágrimas e “esgares de sofrimento”. Apesar de existir uma quase democrática distribuição de papéis entre vítimas e torturadores entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, brancos e negros, velhos e jovens, a verdade é que as mulheres, por todas as razões sobejamente conhecidas, acabam por servir de principal palco de objetificação e fetichização. É bem possível que, na altura, Nights of Horror, entre outras publicações, tenha servido de pasto a fantasias consentidas não entre dois (ou mais) adultos mas a actos forçados. Aí está parte do pasto de Wertham, não sem razão...
Esta série foi publicada circa 1957, um período negro na vida profissional e pessoal de Shuster, que está directamente relacionada com a novela da sua batalha judicial, junto com Siegel, pelo reaver dos direitos do Super-Homem, os quais continuriam nas mãos da DC. O facto de, aceitando a tese de que são de Shuster estes desenhos, terem sido fruto deste período é utilizado como ponto de partida para uma análise do que sucede as estas personagens – algumas das quais parecidíssimas com as personagens de Clark Kent/Kal-El, Luthor, Jimmy Olsen e Lois Lane – como uma espécie de desejo de vingança, fazendo torturar as personagens heróicas, derrubando moralmente os estandartes dos princípios vigentes norte-americanos e permitindo, sem aparente reviravolta, o triunfo dos maus. As histórias não são apresentadas na íntegra: nem o texto é mostrado (salvo umas breves citações) nem as ilustrações são completas (apresentam-se de três a cinco, em média); essa estratégia faz com que não estejamos seguros de qual o desfecho destes contos imorais, não sabendo, portanto, se estaríamos a enfrentar uma dolorosa mas segura “modern moral subject” (para citar uma expressão de William Hogarth), ou se uma fantasia de role-play de algo que não poderia (deveria?, tememos cair num papel moralizador) acontecer na sociedade consensual (não há espaço para “safe words” nestas ficções).
Independentemente do que os fanboys (Yoe inclusive, senão particularmente) poderão querer argumentar, a verdade é que Shuster não é um bom artista. Ainda que as primeiras aventuras do Super-Homem apresentem uma abordagem gráfica relativamente inédita na altura (1939), uma espécie de encontro semi-equilibrado entre uma “linha clara” americana e um realismo incipiente (estamos longe de Foster), o que lhe merecerá (para além do incontornável e seminal papel que teve na fundação de todo um novo género e indústria na banda desenhada popular) um papel de destaque, não podemos estar a falar de uma conquista em termos artísticos, visuais, formais. Antes de Shuster, tinha havido McCay e Feininger, Foster, Caniff e Alex Raymond, e depois dele viriam Irving Tripp e Carl Barks, Wally Wood, Toth e Kirby (que ainda demoraria a ganhar os contornos pelos quais é hoje mais famoso, mas havia trazido desde logo um dinamismo inédito às pranchas de acção) e outros... E cingimo-nos à banda desenhada tout court. Nessa companhia, o seu suposto virtuosismo dilui-se rapidamente. Não quer isto dizer que não haja uma mão-cheia de características próprias, identificáveis, que se repetem em Nights of Horror (e que servem de nódulo identificativo da parte dos investigadores citados por Yoe, e pelo próprio editor). Todavia, algumas dessas características são negativas: a total inabilidade em desenhar mãos, a pobre diâmica dos corpos, as impossibilidades ou disparates anatómicos, a limitada escala de expressividade que os rostos conseguem transmitir. Características que abundam em Nights of Horror, e que ganham por vezes contornos risíveis. [O que aumenta o seu interesse enviesado...]
Poderíamos dizer que essas são características típicas da banda desenhada pornográfica (ou, se preferirem, “erótica”, “de porno-chanchada”, “fetiche”, etc.), mero sub-produto de um comércio alternativo e abscôndito. Mas as “girls” de Alberto Vargas faziam parte do imaginário mainstream dos anos 40, a Bizarre já era produzida desde 1946 e a Exotique desde 1956, a Bettie Page já tinha ajudado a recriar toda a panóplia erótica, e a Sweet Gwendoline de John Willie era já uma personagem famosa. Os dois papas desta arte, Gene “Eneg” Bilbrew e Eric Stanton, haviam marcado o território já com verve, talento, personalidade e verdadeiro salero. Mais, não faltaria muito para Tom of Finland começar a publicar nos Estados Unidos, mas imaginamos que os clientes não fossem os mesmos… E ainda poderíamos recordar a sistemática situação de bondage em que a Mulher Maravilha (1941) de Charles Moulton se encontrava a cada aventura, mas isso remeter-nos-ia para outra história, integrada na dimensão fetichista e potencialmente sexuada dos próprios super-heróis, discussão que não cumpre agora perseguir.
O interesse de Secret Identity cinge-se, portanto, a uma mera questiúncula arqueológica e arquivística, que permite desdobrar um pouco mais um vinco na vida e obra de um artista em particular, mas não a(s) arte(s) em si.
Existe um blog específico a este livro, no qual poderão seguir algumas informações.
Nota final: agradecimentos a Paulo Seabra, pelo empréstimo do livro.
P.S. Aqui ficam com los nuevos reys de los timbales:

2 comentários:

  1. Estupendo blog!

    He llegado hasta aquí buscando información sobre Baudoin y me he encontrado con unos contenidos excelentes!

    Un cordial saludo.

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  2. Gracias, Eduardo. Tu trabajo me ha encantado mucho, sobretodo tu blog "Cuaderno Negro". Tu publicas tu trabajo, o haces exposiciones, etc.?
    Muchas gracias por tus palabras, y hasta pronto.
    Abrazos,
    Pedro

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