23 de abril de 2010

Alguns zines. AAVV



No seguimento das considerações sobre ilustração, houve necessariamente pontas que ficaram por fiar. Que sucede, por exemplo, quando se unem ilustrações e textos criados cada um na sua própria circunstância e desligados? Um editor pode querer publicar uma tradução de um texto dispensando a ilustração original e juntar-lhe um desenho que artista havia feito por recreio próprio, sem qualquer intuito editorial. Que sucede quando desenhos que foram feitos ao acaso, talvez apenas respondendo àquelas circunstâncias quotidianas do artista, tipicamente chamadas de inspiração, se acabam por juntar num determinado espaço, como nesse espaço privilegiado a que se chama “livro”? Ou os seus avatares: revistas, fanzines, artzines, publicações, caixa de postais, etc.
De novo, essas questões estarão mais associadas às condições de produção e o que nos deve importar sobretudo, na sua leitura, é como nos surgem enquanto textos formados e fechados como tal. É bem possível que Marta Monteiro e John Kearns tenham feito os seus desenhos, cada um, ao acaso, em momentos diversos, talvez um ou dois em modo mais coordenado (seguindo um tema, uma forma, uma ideia desdobrada), e depois o convite de Craig Atkison e a galeria Dama Aflita tenha catalisado num corpo mais coeso: uma exposição, um catálogo, um livro. É bem possível que Alex Vieira, Zograf, 81-85, Teresa Câmara Pestana, Bertoncelj não soubessem que iriam estar juntos numa publicação brasileira, ou o que os uniria, mas no momento em que se encontram entre as capas de Favo de Fel passam a poder ser vistos, ali, como um grupo relativamente coeso. O mesmo se passa com Massive.
Não nos alargaremos nas considerações de cada título, mas tão-somente uma ou duas linhas sobre cada um.
Favo de Fel. AAVV. “Antologia internacional de quadrinhos” dos herdeiros do punk e outras linguagens alternativas às mais bem-comportadinhas agendas da sociedade da superfície. Como será de esperar, não se encontrarão aqui narrativas lineares ou uma abordagem gráfica que prime pelo virtuosismo académico. A expressão acima de tudo, e a opinião virulenta contra os aspectos mais cansados da sociedade “normal” (no sentido doente de Arno Gruen): da televisão à religião organizada, do desemprego às estúpidas expectativas no progresso tecnológico, dos machismos sobreviventes à escatologia universal, com muita porrada e mosh pelo meio. Como sempre também, a esmagadora maioria dos caminhos são algo inconsequentes e juvenis, esbracejar contra a maré é próprio de uma circunstância mas em pouco a altera. T. C. Pestana tem aqui publicado um excerto dos Postais de Viagem, e mais uma divertida rábula sobre a relação que a Igreja tem com a sexualidade humana. Sobrevivem ainda os trabalhos de Matjaž Bertoncelj, 81-85, Zograf, Ron Selistre, Alex Vieira e uma mão-cheia de ilustrações. Blog.
Massive. AAVV (CCC # 8, Chili Com Carne). Eis um outro daqueles objectos que reune desenhos soltos, sem qualquer relação a um tema (perceptível), texto, ou vontade centralizada. Manda-me uns desenhos que depois logo se vê. É o que se vê aqui, de facto. As participações são igualmente variadas, amplas e internacionais. Há desde desenhos limpos a outros mais carregados, uns de temas mais leves, belos, serenos, outros atascando-se numa qualquer violência, quer gráfica quer de significado. A edição opta por ter cada caderno a uma cor de papel específica, mas em nada isso informa a sua leitura, a não ser a sua própria materialidade. Massive recorda também outro tipo de referências musicais, o dub... como ele, a remistura, a fragmentariedade, a devolução alterada parece presidir a este junção. Esta antologia foi manobrada pelo grupo Hülülülü (Ricardo Martins e Margarida Borges) mais os suspeitos do costume da CCC. Assim encontrar-se-ão muitos dos nomes que compõem a história de um grupo relativamente coerente (André Lemos, João Maio Pinto, Jucifer, Filipe Abranches, Pepedelrey, outros) passando para outros artistas nem sempre presentes no circuito dito alternativo (Alex Gozblau, António Jorge Gonçalves), companheiros de outros círculos editoriais/artísticos (Marta Monteiro, Rui Vitorino Santos, Alex Vieira, outros), passando por artistas internacionais de vária índole (Tommi Musturi, Warren Craghead, Ilan Manouach, Pedro Franz, Stephane Prigent, Jean Pierre, e muitos outros).
Subir a montanha/Up the mountain. Marta Monteiro (Café Royal/Dama Aflita). Fanzine-catálogo da exposição de Marta Monteiro na galeria Dama Aflita, este pequena publicação reúne até 25 desenhos, dependendo da maneira como se os contam (incluindo a capa). Desconhecendo o que levou M. Monteiro a criar estas imagens e a dar-lhes esta ordem na publicação (e fazer a publicação), houve porém uma ideia que imediatamente me veio ao espírito. Todavia, não a divulgarei já. Alguns desenhos parecem conter uma micro-narrativa pelos seus elementos repetidos: três deles mostram personagens cujas cabeças parecem estar cobertas por caixas, seguidas de dois grupos, familiares, com uma espécie de véus; três mostram um motivo de ossos espalhados; outros mostram ainda – pela técnica, pela representação – o que parece ser uma mulher a subir à montanha até se sentar no seu pico, com uma clara interpretação sexual possível; alguns têm estratégias que recordarão a imitação de retratos antigos, cenas interiores, cenas familiares, postais de Verão, fotografias de recordações. Uma mostra um rosto bipartido: um homem e um tigre. Há aqui, portanto, uma tensão qualquer em torno de ideias-chave, que tanto passa pela ideia da família tradicional como uma espécie de conceito a rever, a expressão livre de uma sexualidade consciente, um caminho de progresso pessoal, várias imagens que se podem revestir de um significado simbólico... A ideia que me surgiu de imediato foi a letra de Laurie Anderson para It was up in the mountains. O mesmo sentimento de estranho familiar, o mesmo ritmo de coisa absurda que vai e vem sem explicações, e que invade a vida e a abandona: “It was up in the mountains. We had this ceremony every year. We had it and everyone from miles around came in for it. Cousins, aunts, uncles, and the kids. Grandmothers, grandfathers ... everyone. And we set it up around this big natural pool. With pine trees and palm trees. All the trees were there. And we had thousands of those big urns - you know the kind. And everyone would dance and sing, and it lasted for three days. Everyone cooked and looked forward to it all the year.
Well one year, we were in the middle of it, and I was just a boy at the time. Anyway, it was evening, and suddenly a whole lot of tigers came in. I don’t know where they came from. They rushed in, snarling, and knocked over all the urns, and it was really a mess.
Well, we spent the whole next year rebuilding everything. But in the middle of the ceremony the next time the same thing happened. These tigers rushed in again and broke everything and then went back into the mountains. This must have gone on four or five years this way - rebuilding and then the tigers would come and break everything. We were getting used to it.
Finally we had a meeting and decided to make these tigers part of the ceremony - you know - to expect them. We began to put food in the urns, so the tigers would have something to eat. Not much at first ... crackers, things like that. Then later we put more food until finally we were saving our food all year for the tigers.
Then one year, the tigers didn’t come. They never came back.”
It'll end in tears. Jaakko Pallasvuo (Café Royal). Este livro tem duas pequenas histórias, de alguma forma relacionadas se imaginarmos que o protagonista e o seu ambiente é o mesmo. Apesar dos objectos representados serem naturais – paisagens, uma cabana numa montanha, flores, animais, uma televisão cheia de chuva – o desenho em si recorda o texturado mas livre e caligráfico trabalho de Mat Brikman. No entanto, as narrativas são mais aparentadas à cena da banda desenhada alternativa “humanista” de Pekar, Ware, Clowes ou outros autores. Se ao princípio parece existir um desfasamento entre o que é narrado pela voz do protagonista e as imagens (recordando-nos do magistral exercício de Chris Ware na história “I Guess”, publicada em 1991, na RAW 2.3), rapidamente no apaercebemos ser apenas uma suspensão do desvendamento de uma trama bastante nítida, mas não por isso menos pertubadora. Uma curiosa peça sobre a possibilidade de empregar formas gráficas inovadoras na banda desenhada para retornar a histórias simples.
As things go. John Kearns (Café Royal). De ponta a ponta, e quase invariavelmente, este livro apresenta páginas com uma grelha de 3 x 4 vinhetas, com um pequeno friso inferior. Mostram-se personagens, retratos de rostos, estranhos objectos e objectos banais, animais e monstros, espaços. Tratar-se-á de uma taxonomia e de uma colecção sem critério agregrando elementos com os quais o leitor é convidado a criar a sua própria narrativa? Estilisticamente, Kearns parece pertence à mesma família de referências de Pallasvuo, se bem que o nome do Fort Thunder com o qual o aproximaria mais é C.F. Este livro convida o leitor a reler e recombinar cada elemento, tornando-o potencialmente num livro sem princípio nem fim, infinito como “o de areia” de J. L. Borges.
Nota final: agradecimentos a Teresa Câmara Pestana pela oferta do Favo de Fel e a Marcos Farajota pelo de Massive. À galeria Dama Aflita pelo seu projecto.

2 comentários:

  1. E também jungle, trip-hop e, claro está, hardcore post-kraut jungle blues metal lounge.

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