20 de abril de 2010
San Francisco Panorama [McSweeney’s # 33]. AAVV (McSweeney’s)
Tal como o mapa de Borges, a melhor forma de dar conta de todos os domínios, dimensões e facetas deste projecto seria repeti-lo, como um simulacro completo. Não é possível. Telegrafemos a circunstância. A revista de Dave Eggers, a McSweeney’s Quarterly Concern, no seu 33º número, respeitando a sua qualidade proteica, resolveu assumir a forma de um glorioso jornal de Domingo da tradição norte-americana. Uma experiência única mas que lança, a um só tempo, a ficção da existência de um jornal desta estirpe na costa oeste dos Estados Unidos e uma ideia que deseja recuperar, relançar ou repensar as possibilidades específicas de um jornal em detrimento de outras fontes de informação (nomeadamente as digitais): peças jornalísticas de maior fôlego, de investigação ou opinião verdadeiramente sustentada, apreciações críticas mais alargadas de livros ou música, páginas de banda desenhada que tirem partido das folhas gigantes a cores destes jornais “desaparecidos”, um design aqui inovador e apelativo e plasmado ao conteúdo, ali minimalista e simples e sofisticado e eficiente na veiculação do texto. Outros domínios importariam explorar, se soubéssemos como: as estratégias de financiamento e publicidade, de venda e distribuição, de sustentação política, etc. O San Francisco Panorama é uma espécie de resposta positiva e esperançosa para o jornalismo e a edição de jornais nos Estados Unidos, mas presumimos que parte dos problemas sejam idênticos aos de todo o mundo, inclusive Portugal.
O SFP, estou quase seguro, tornar-se-á uma fonte de inspiração para muitas pessoas, e imagino que muitos professores de design o comprarão para estudar e explorar junto aos seus alunos, assim como, claro, jornalistas, escritores, publicistas, e todos os azimutes relacionados de uma forma ou outra com este objecto cultural que é o jornal. A dita morte da “imprensa” (print media) ou encontra aqui um épico desfibrilador ou uma gloriosa pedra tumular (o mais provável é que não seja nada tão drástico, mas será certamente uma referência nos próximos anos).
Como poderão ver pelo vídeo que preparámos, o jornal contém as seguintes partes: um caderno principal, local, internacional e cósmico (tem um artigo sobre o ciclo solar), com um encarte especial totalmente devoto à nova ponte entre São Francisco e Oakland e aos seus problemas, um caderno de opinão e análise (desde as sobrancelhas da primeira dama aos direitos dos nativos norte-americanos, passando por textos e desenhos de crianças à des-razão biológica da violência), dois cadernos de artes (um mais similar a um guia, outro com resenhas), um suplemento de peças longas (com artigos locais e internacionais), um suplemento de desporto mais encarte de Stephen King e poster duplo, outro suplemento intitulado Food (desde receitas a artigos de fundo a críticas a restaurantes), uma secção de banda desenhada (mais brinquedo-em-papel de Chris Ware), uma revista com variados artigos mais ou menos alongados, e uma revista literária (entrevistas, críticas e resenhas, peças inéditas). Ainda tem um pequeno “panfleto” no qual se explicam os objectivos, as várias secções e opções, se apresentam números e contas, listam-se os colaboradores, e se explicita a cronologia do projecto. É monumental.
É claro que nem todos – nenhum! – os projectos de jornal têm cerca de um ano para criar um único número (apesar deste conter notícias do próprio dia em que saiu, 8 de Dezembro de 2010). Trata-se de uma espécie de bolsa de ideias, desejos e intenções que poderão ou não funcionar como farol. A imitar, a melhorar, a inflectir ou até evitar, conforme o posicionamento dos seus leitores críticos. Todavia, enquanto aquela ficção que apontámos acima, provoca de facto uma breve felicidade sobre um mundo alternativo melhor. Excelente objectivo, e cumprido.
Temos de confessar que, à data da escrita deste texto, não esgotámos a leitura de todas as peças que nos parecem interessantes (outras, como as estatísticas de futebol americano, ou planos de fugas gás numa mina abandonada, foram imediatamente colocados de lado, ainda que imageticamente sejam fonte de interesse para estudo de design e infografia, por exemplo). Mas algumas peças poderão despertar a curiosidade mal sejam citadas: Salman Rushdie escrevendo sobre Kara Walker, Michael Chabon sobre os Big Star, uma apreciação da obra de J. G. Ballard, Stephen King com um suplemento sobre uma temporada mítica do baseball, um dos artigos de Food sobre uma receita caseira de uma bebida fermentada andina chamada chicha que promete estranhos efeitos, outro ensinando os passos necessários à matança, esquartejamento e preparação da carne pronta a grelhar de um cordeiro, um diagrama explicativo de um dos muitos magníficos murais da cidade (e imagina-se que poderia ser uma secção continuada ad infinitum, e mais maravilhosa ainda ao entrar na zona da Mission), um artigo de fundo sobre o concurso Mr. Romance Cover Model, onde vários homens tentam ser o próximo “Fabio” (interessante para estudantes de uma linha da ilustração), uma mesa-redonda sobre o estado do festival de cinema de Sundance, uma ideia de Chipp Kidd de redesign dos informativamente confusos bilhetes da Amtrak (análogos aos dos de avião), e a Book Review espalhando nas suas páginas uma pequena antologia de poemas de quatro versos (inclusive um tipicamente disruptivo de John Ashbery), entre muitas outras pérolas literárias (inclsuive magníficos contos de George Saunders, Roddy Doyle, Dicky Murphy e Seth Fried, o qual preparou um trailer) e de reportagens investigativas. Até a secção de passatempos é estranha, inovadora, inteligente e atenta à diversidade humana e cultural.
Sendo um jornal, tem artigos sobre a economia local, que vai desde a Bay Area a toda a Califórnia, e abordam-se problemas como a especulação imobiliária e a tremenda crise actual, a falta de transparência em obras públicas e decisões políticas, impactos ecológicos em áreas gigantescas e as suas implicações económicas, sociais e culturais, escândalos políticos e abordagens menos convencionais de determinados problemas regulares.
Claro que, neste nosso espaço, a atenção vai particularmente para as áreas da banda desenhada e da ilustração. Esta última está presente e em força em toda a publicação. Mostramos no vídeo apenas algumas daquelas que mais nos suscitaram a atenção, e que acompanham desde artigos de fundo a caixas menores, que fazem elas mesmo a peça principal ou decoram tangencialmente a página. A banda desenhada encontra-se em vários momentos e locais do jornal, mas o destaque vai para o suplemento de banda desenhada propriamente dito, onde se encontrarão páginas (inteiras) de Seth, Daniel Clowes, Adrien Tomine, Art Spiegelman [cuja banda desenhada podem baixar aqui], Erik Larssen, o spread maravilhoso, como sempre, de Chris Ware (já para não falar do brinquedo de papel de montar e outros materiais), e tiras mais curtas menos curtas de Gabrielle Bell, Ivan Brunetti, Eric Drooker, Kim Deitch, entre outros. Se bem que os editores do SFP apontem essa inclusão como parte da estratégia de recuperar os leitores mais jovens, lançando o suplemento dos comics para o público infantil (as bandas desenhadas existentes noutros locais do jornal revestem-se imediatamente de “morais” ou “pesos políticos” bem diversos), e tendo em consideração que a esmagadora maioria dos autores apresenta pequenas variações do seu trabalho regular para estas páginas através de histórias contidas, legíveis por todas as idades, etc., o próprio facto de existirem neste formato em particular torna-as revestidas de um interesse particular, associando-as a projectos tais como a Kramer’s Ergot #7, que citam e imitam, as edições recuperativas da Sunday Press, e até experiências mais alternativas como as de Frank Santoro, Paper Rodeo, Kuti Kuti, Aooleu, Diamond Comics, Modern Spleen, e até a edição original do Journal de Guerre, de Tardi.
Ler estes suplementos, num local público exíguo, poderá incomodar a pessoa ao lado. Ou fazer invadir o seu espaço com leituras novas. É o que se deseja.
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