19 de janeiro de 2010

Putain de Guerre!/ Journal de Guerre. Jacques Tardi e Varney (Casterman)


Devo iniciar este texto com a confissão de que faço parte daquelas pessoas que, aprendendo com Timothy Leary, acreditam que não haverá maior oxímoro na linguagem humana que “inteligência militar”. Independentemente de todos os considerandos que poderão tornar essa bruteza generalista relativa, e a importância ou contornos positivos que em condições extraordinárias os militares possam ganhar, reservo-me ao direito de pôr tudo no mesmo saco, feito de areia e vento.
De todos os conflitos bélicos que pontuam, se não mesmo tecem, a história humana, talvez aquele cujo nome parece esconder o que implicou na verdade seja o da “Primeira Grande Guerra”, como se pudessem vir alguma vez a ser contabilizadas num futuro próximo, ou como se a sua grandeza fosse apenas pautada pelos manuais depois do ocorrido e não para quem sofre as consequências directamente. A começar pelos soldados, os “cabeças de tijolo”, a carne para canhão. Hoje em dia, com a profissionalização dos exércitos no mundo ocidental (para não falar da sua mercenariazação), é cada vez menos possível falar dos “pobres coitados” dos soldados, mas neste conflito em particular é mesmo disso do que se tratava.
É sabido, para os contínuos leitores de Tardi, a sua constante revisitação deste conflito na sua obra, como se este fosse o Poema Contínuo próprio do autor, aquele corpo a que ele tem constantemente de retornar para corrigir uma figura, repensar a sintaxe, apurar uma perspectiva. Este novo projecto de Tardi, conjuntamente com o historiador (precisamente desta época) Jean-Pierre Verney, é feito nos mesmos moldes de produção de L’Étrangleur, iniciado em 2006 e sob a forma de um jornal ilustrado. De Putain de Guerre saíram seis números, seis jornais (o sub-tútulo da série tanto se reveste do seu sentido literal de “diário”, “caderno de apontamentos”, como da publicação sucessiva dessas mesmas notícias), cada um intitulado com um ano da guerra (estendida desde as suas origens em 1914 aos vomitados gritos de alegria dos vitoriosos no final, em 1919), seguindo (supomos) a perspectiva de um só soldado sem nome, e sempre acompanhado com um apêndice de um texto corrido de Verney, com algumas fotos de arquivo. Putain de Guerre (e L’Étrangleur,), neste formato de jornal, visa, creio, que a experiência da leitura se mescle fantasmaticamente à da própria ficcionalidade desse acto, isto é, um transporte ficcional do leitor ao tempo dos eventos retratados nessa publicação: os anos 50 no caso do assassino, os anos 10 no caso da 1ª Grande Guerra. A própria composição das páginas, a esmagadora maioria com três vinhetas ao comprido ao largo de toda a página, mas outras com esquemas geométricos já experimentados antes em Le Démon des Glaces (1974), reitera essa sensação. Os jornais seriam depois coligidos e a série reformatada em dois álbuns mais clássicos, com a única diferença dos cabeçalhos dos jornais transformados nos livros.
Por outro lado, esta nova revisitação do tema da Guerra de 14-18 remete-nos a, tentativamente, os melhores trabalhos de Tardi, começando com um dos primeiros, La véritable histoire du Soldat Inconnu (1974) a um dos mais poderosos, C'était la guerre des tranchées (1993), sem descurar com aqueles onde tentou explorar algumas das valências possíveis da composição das páginas para fazer emergir uma outra camada de interpretação (o já citado Démon des Glaces) ou os que, adaptando obras literárias, se prestam à rememoração da História de um certo sinal político em França, de uma resistência ao poder instituído e à dita moral equilibrada (Le Cri du peuple, finalizado em 2004).
Tardi tem uma produção múltipla, que lhe permite experimentar outros humores, conforme nos recordaremos pelos seus livros da personagem Adèle Blanc-Sec, sobre os quais De la Croix afirmou serem caracterizados por uma “mecânica narrativa tão gratuita quanto eficaz, sem qualquer fito senão o de durar, isto é, de acumular obstáculos”. Nesse sentido, estariam mais próximos dos princípios cinético-cómicos instituídos sobretudo por Töpffer, e por toda a banda desenhada clássica infanto-juvenil, do que das inflexões que o próprio Tardi faria no “neo-realismo” da banda desenhada francófona dos anos 1960-70, que o crítico Bruno Lecigne escrutinaria tão especialmente nas suas obras. As raízes dessa exploração estarão na sua colaboração com Pierre Christin, por exemplo…
Se Tardi volta a este tema, se o compõe continuamente, é porque trabalha, sem qualquer dúvida, sobre o seu “sintoma”: “La der des ders” [“ a última das últimas”, apodo pelo qual esta guerra foi conhecida logo após o seu término] é o “fantasma” que retorna mais vezes à sua obra. Herança do avô, se pretendermos incorrer em facilitismos providenciados pela biografia psicanalisante. Obsessão de território, se preferirmos mantermo-nos na área desenhada pela “especialização” mercantilista e técnico-profissional de um autor da indústria da banda desenhada.
Mas a continuidade do tema, ou matéria, implica a sua atomização, isto é, um contínuo e subsequente escavar dos seus elementos, atomização a qual espelha igualmente outros processos idênticos instituídos no seu interior: a insistência sobre a desagregação dos corpos, rebentados nas linhas de combate, mas também da moral e da política. Apesar da citação dos discursos heróicos e patrióticos dos grandes generais e luminárias do estado francês de então (epígrafes que servem para ser demolidas logo a seguir), e a carregada ironia do narrador de quando em vez, o posicionamento político principal dá poderosíssimos sinais de uma esquerda resistente a esses primeiros discursos patrióticos e militaristas... A narração é sempre feita em legendas supra-diegéticas, nunca em falas. A inscrição desse texto numa dimensão fora do espaço e do tempo que se vê representado levar-nos-ia a pensar num momento de reflexão posterior, mas a raiva que a informa é ainda viva, ou como se tivesse sido acabada de ser vivida. É como se estivéssemos a ver uma fileira de imagens que pertencessem a uma máquina rememoradora, e elas mesmas despertassem a consciência e a leitura de quem as viveu na carne. São muitas as vezes em que essa voz desejaria que os pelotões de execução dos seus próprios soldados, mortos “para dar o exemplo”, se virassem contra os líderes militares, o tom de chacota face à mortandade absolutamente estúpida dos campos de lama conquistados metro a metro ao longo de semanas para glória de ninguém, e os comentários repentinos que mostram a percepção profunda de que o conflito não era feito em nome de qualquer princípio nobre, mas antes como forma de experimentação militar e política, método de olear a máquina capitalista, jogo de xadrez de influências efémeras feito pelos burocratas de mãos limpas nas capitais. Os interesses económicos por detrás de certas decisões, e os erros ignaros de certas decisões tomadas “em nome da honra” ou “por razões estratégicas” são como que uma forma de embelezamento invertido. No último ano, a voz narradora passa a falar de um “tu” que se vai diferenciando, pelas imagens, pelo papel social que assume, etc. Esse “tu” nunca somos nós, mas um “ele” ou “ela” que foram, de alguma forma, um elemento da rede que compôs este conflito. Há aí um momento em que ela se dirige aos soldados que escrevem nos seus diários as suas impressões e ideias da guerra, as vozes que jamais se fariam ouvir nos grandes compêndios da história ou nos discursos comemorativos. E a razão dessa voz não ser ouvida é explicada: “E depois um obus cortou-te ao meio. Não descobriram o teu caderninho nem, com ele, confiadas aos teus cuidados, as nossas misérias, os nossos gritos de desespero, de dor, o nosso sofrimento, os nossos testemunhos assim perdidos como se tivéssemos sido fechados para sempre numa garrafa atirada a um mar de sangue e lama”.
Estas associações políticas não estão longe de uma atitude historicamente existente, à época, sobretudo, ou notavelmente pela via da arma do desenho, com uma publicação como a l’Assiette au Beurre, que reunia alguns dos mais vitriólicos cartoonistas e ilustradores de imprensa do seu tempo, por vezes de cariz anárquico assumido, em que parece ser uma mescla curiosa entre o grotesco e a sátira, cuja diferenciação reside não nos instrumentos gráficos ou no valor representacional em si, mas no seu emprego ou fito: um desabrido humor pândego no primeiro, moralizante, positivo, programático no segundo.
Tardi usa vastamente os documentos existentes da época, não se coibindo de fazer interpretações gráficas suas a partir de documentos fotográficos (ou de outro tipo, fílmicos, desenhados, etc.) impressos em publicações como L’Illustration, The War Illustrated, o Wipers Times, aos jornais dos regimentos alemães e toda a propaganda de parte a parte. Como disse, Putain de Guerre apresenta um apêndice a cada número com um texto e documentos da época, tornando visível essa camada de investigação e emprego. Quase todas as informações dadas pelo narrador no texto, ou por algumas imagens, vêm-se depois corroboradas, ancoradas na realidade, por assim dizer, nesse apêndice.
Daí que muitos dos episódios que poderão parecer caricatos, estranhos, ridículos, não são da inventiva de Tardi, mas exactos retratos dos processos reais documentados: tribunais militares (sumários, absurdos e idiotas) em igrejas ou escolas de pequenas aldeias estilhaçadas, a partilha de cigarros entre “inimigos” nas trincheiras, histórias de pacotilha e “o heroísmo dos generais” ou dos funcionários dos ministérios, e pormenores que têm tanto de atroz como de risível (nesse sentido, e bem vistas as distâncias de humor e ferramentas, a última série de Blackadder partilha um posicionamento ético)...
A ideologia de Tardi não pode ser mais nítida do que o é, mas não tomba jamais num mero panfletarismo bacoco ou idioticamente ingénuo (“War is stupid”, canta Boy George...). Reveste-se de uma forte couraça irónica, para fazer representar os corpos destroçados e o ódio dos soldados pelos superiores e o estúpido cortejo de estúpidas ordens e o humor, nigérrimo, da guerra das trincheiras. Tardi – e, no seguimento de um artigo nosso sobre a banda desenhada de guerra, Sacco, Kurtzman, Oesterheld/Pratt, - faz daqueles trabalhos que contrastam com o que usualmente surge como “war comics” (mesmo tendo em conta brechas nessa noção, como a antologia da Mammoth Books), tal como, no cinema, em vez de olharmos para Rambo ou Pearl Harbor, olhássemos antes para Paths of Glory de Kubrick (com o qual Tardi partilha a matéria), No Man’s Land, de Danis Tanovic, ou O Paraíso, Agora! de Hany Abu-Assad.
A linguagem de Varney, numa continuação e inflexão dos trabalhos de Tardi, e na esteira de uma tradição francófona de longa vida (que une Rabelais a Céline, Ramuz a Albert Cossery), pauta-se pelo princípio do sarcasmo e da língua falada. A voz que narra ao longo do livro, mosqueada de calão, de turpilóquios, de um exclusivo argot das trincheiras (outro dos apêndices à série), aprisionado nas legendas recitativas como se a falta de balões quisesse mostrar o silêncio a que está votada, apenas o torna mais mordaz, de resmungo Em muitas instâncias faz-nos compreender que pertencerá ao jovem soldado – que veremos envelhecer por dentro – que vemos atravessar algumas dessas cenas (o uso de pronomes pessoais na primeira pessoa ajuda, evidentemente), mas noutras parece revestir-se de um carácter, não diria universal (o que o é?) mas superior à acção e percepção limitada dessa mesma personagem. Os comentários e informações do quadro mais geral da guerra associam-no a uma voz enciclopédica, histórica, que não lhe poderia pertencer enquanto personagem ocupada nos próprios acontecimentos moleculares (o que une, fantasmaticamente, à noção do Soldado Desconhecido). Talvez então seja a voz dessa personagem pertença de um futuro, no desiludido fecho da guerra, e as imagens à sua experiência passada. A questão não é jamais resolvida, e é essa indeterminação que torna o fluxo de Putain de guerre uma obra maior.
Notas: a música utilizada no vídeo é a "Canção de Craonne", citada no texto; agradecimentos à editora, pelo envio das publicações.

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