As mais das vezes, sempre que surgem filmes cuja matéria e conteúdos se baseiam ou bebem directamente de produção da banda desenhada, lá vêm os costumeiros artigos sobre banda desenhada e cinema, recordando como os “heróis da nona arte” passaram para a “sétima” e coisas do género. As mais das vezes, essas atenções prendem-se somente a uma classe muito circunscrita de criações, a saber: 1. filmes que adaptam personagens de banda desenhada sobeja ou medianamente conhecidas (Batman, Superhomem, Astérix e Obélix, Popeye, Hulk, Homem de Ferro, Sin City, e todos os projectos que se avizinham da Marvel e DC, os Tintins, etc.); 2. filmes de animação que adaptam, e por vezes transferem, uma obra originalmente em banda desenhada (Persepolis, Fritz, the Cat, Akira, Ghost in the Shell, Gary Larson's Tales from the Far Side, os filmes de Bilal, etc.), 3. filmes que não sendo de bandas desenhadas propriamente famosas, pertencendo a géneros ficcionais estanques, recebem essa adaptação (The Surrogates/Os substitutos, Men in Black, The Crow, Wanted, The League of Extraordinary Gentlemen e From Hell – diga-se que aqui as adaptações foram pobres, ordinárias e redutoras em relação aos textos originais –, Howard the Duck, ou aqueles que adaptarão os livros de Warren Ellis, o Adèle Blanc-Sec de Luc Besson, etc.). E depois há aquela categoria de filmes que, sendo adaptados de uma série de banda desenhada, ou lá perto, criam um novo texto, perfeitamente autónomo, passível de uma leitura interpretativa singular, interessante e de distanciamento em relação ao texto de partida: A History of Violence e American Splendor são os de que me recordo agora.
A história da colheita no campo de banda desenhada de matéria passível à adaptação cinematográfica é tão antiga quanto o próprio cinema, se tivermos em conta que o filme dos Lumière, L’Arroseur Arrosé, de 1895, parece ter bebido de toda uma série de cartoons e tiras com o mesmo acontecimento publicadas na sua época (sendo uma de Christophe) [havíamos já falado de um artigo de Lance Rickman a propósito disso]. É verdade que os heróis musculados, super ou não, sempre tiveram pronta presença no écrã de prata, tendo em conta a existência dos serials dos anos 40 com o Batman, o Superhomem, o Captain Marvel, o Capitão América, mas também o Spy Smasher, Radio Patrol, e o Congo Bill. Noutro campo, mais “doméstico” ou “humano”, também Little Annie Rooney, Blondie, e Joe Palooka, fizeram história no seu tempo. No Japão, por exemplo, a passagem ao cinema não apenas bebeu das bandas desenhadas mais espectaculares, genéricas e comeciais, mas sempre houve espaço para procurar matéria em títulos mais alternativos, humanos, que retratassem a banalidade do quotidiano. Um caso disso são as adaptações dos livros de Yoshiharu Tsuge, de Aoi Haru de Matsumoto, de Nana de Ai Yazawa, ou as dezenas de filmes baseados nos dramas colegiais ou amorosos de mangás relativamente obscuras para nós. É óbvio que o factor “cool” também é explorado, como se viu através de Uzumaki, Shark Skin Man and Peach Hip Girl, Ichi the Killer, ou o sucesso de Old Boy..., mas o que importa encontrar no Japão é um feliz equilíbrio em que se adaptem todos os géneros e todos os graus de expressividade na banda desenhada a todo o cinema, e não apenas algo ditado por imperativos de retorno financeiro e pequenos desafios críticos de estúdios. Ora é neste campo secundário que Les Beaux Gosses se integra.
Muito provavelmente não haverá muitos críticos a dizer que estas são personagens “de banda desenhada” quando, na verdade, são-no, já que podemos, ainda que talvez um pouco abusivamente, ver neste filme uma adaptação, ou pelo menos uma versão cinematográfica do mesmo esforço criativo que Sattouf havia operado para a feitura da sua série La vie sècrete des jeunes, publicado na Charlie-Hebdo, e depois reunido num só volume pela L’Association (por exemplo, a capa deste livro é transmutada na primeira cena do filme). Melhor dizendo, trata-se de algum do material temático, episódico e de desenvolvimento de personagens (a forma de produção é interessantíssima: Sattouf roubava o que escutava na rua) que transita para este outro projecto, que o próprio autor e realizador explicou, em entrevistas, ter ganho uma vida especial, pela necessidade da aprendizagem que teve face aos valores de produção cinematográficos, a relação com os actores, etc. O problema está em que aquele apodo “de banda desenhada”, quando aplicado ao cinema, é utilizado como injúria, redução, captação de clichés ou de maniqueísmos juvenis, quando deveria antes dar conta ou da tal matéria básica narrativa ou de estratégias consolidadas numa linguagem expressiva outra. Esperemos também que seja essa a estratégia de Joann Sfar, com o seu documentário a estrear, Gainsbourg (vie héroïque).
De acordo com o próprio Sattouf, o que ele vê ser explorado em comum em termos imagéticos são os planos aproximados, sobretudo dos rostos, onde reside toda a expressividade e vida das personagens. Com a excepção das raparigas principais do filme, e um ou outro dos rapazes, os protagonistas são de facto feios. E estão precisamente naquela curva terrível em que o rosto se encontra em mutação horrenda para além da infância mas ainda não na paragem que será a idade adulta: o cabelo não tem forma, as borbulhas têm vida própria, no caso dos rapazes os pêlos faciais não sem nem uma coisa nem outra mas são visíveis, no das raparigas as formas começam a dar-se a ver mas ainda sem o equilíbrio e calma adultas. Em suma, um desastre. O tom é de comédia, mas quem experiencia estes episódios sabe que é antes uma tragédia. Pelo menos é um sofrimento atroz. E o filme explora junto a Hervé, Camel e os restantes miúdos esses mesmos sentimentos dolorosos: doloroso estar-se no centro das atenções, doloroso não se estar no centro das atenções, desejoso querer estar no centro das atenções, e por aí adiante...
Todo o ambiente, os espaços que habitam, os hábitos, por menores que sejam, está tudo construído para esta espécie de realismo cujo sentido é fazer-nos tremer com o preciso e idêntico que é ao nosso (pelo menos, para aqueles que experienciaram minimamente este tipo de epopeias suburbanas e de classe média). O filme não é desprovido de pormenores e desvios subtis, como por exemplo as várias cenas que nos fazem pensar num determinado desfecho e, quando esse desfecho se dá, afinal chegou por vias diferentes (a morte do professor, a chiva de merda, e uma mão-cheia de cenas não explicadas). É aí que reside uma das forças de Sattouf, a da sua observação minuciosa, que é mantida no filme.
O filme está cheio de participações especiais (cameos, como se costuma dizer), quer de actores conhecidos em breves papéis, quer de amigos de Sattouf, como Satrapi. Esses papéis fazem desdobrar essas breves e secundárias personagens numa espécie de retrato mais modelado do ambiente social e imaginativo do filme, que acaba por ganhar uma pequena dimensão para além do que aparentemente é.
Se a narrativa, a história, não tem nada de excepcional, é o que o faz de excepcional. Les beaux gosses é um espelho. Não pretende construir um discurso “engajado”, investigativo, como o de La classe, de Laurent Cantet, nem explorar as complicadas relações sócio-culturais que a França suburbana atravessa contemporaneamente (como o recente Un prophète, de Jacques Audiard), mas mergulha seriamente na questão de todos os jovens: “quando é que comemos?”.
Os prazeres mais egoístas são aqueles que mais pautam a vida dos miúdos. Bem se pode abanar uma vida mais completa à frente dos seus narizes, a arte, a responsabilidade, um conhecimento maior... e então veriam o que tinham a ganhar, que é tanto. Todavia, se não passassem por esta fase, de estupidificante hedonismo e parvoíce, não serão jamais seres humanos completos. Como diz Vergílio Ferreira (cito de cor), em Escrever, tem o peso de toda a vida pela frente e isso fá-los enfrentar o presente no presente. O filme dá-nos a ver essa fase. E por mais horror que tenhamos a essa fase, quase que nos dá vontade de a revisitar, num misto de nostalgia envergonhada, de ânimo leve, tal como leve, compreensivo, tocante e, ao mesmo tempo, sério, é o ânimo que este filme traz.
6 de janeiro de 2010
Les Beaux Gosses. Filme de Riad Sattouf.
Publicada por Pedro Moura à(s) 7:39 da tarde
Etiquetas: Cinema, França-Bélgica
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