Se Riad Sattouf experimentara através da sua série Les pauvres aventures de Jérémie aquilo a que se pode dar o nome de “auto-ficção”, “desdobramento”, ou talvez somente uma ficção largamente informada por experiências pessoais e tomando-se o próprio autor como espectro e modelo, com Ma circoncision há uma decisiva inscrição no campo da autobiografia. O livro é molecular, como se entenderá pelo título: isto é, elege uma situação precisa, a da circuncisão (provindo de ma família muçulmana, a circuncisão é obrigatória e ritual), e a partir disso constrói a sua narrativa, simples. Simples pois Sattouf não elege esse evento para o tornar numa qualquer plataforma, na senda de Proust, de emergência de um maior universo de referências, tal qual como cultivado por autores como Fabrice Neaud ou Edmond Baudoin, nem para ir construindo um maior friso da sua infância e adolescência, como Marjane Satrapi, Chester Brown ou tantos outros. A narrativa circunscreve-se (o verbo não é inocente) aos eventos imediatamente relacionados com esse ritual: a descoberta da diferença entre o seu “zizi” e o dos seus companheiros (nesta idade, Sattouf vive na Síria, e é o único louro no meio dos seus amigos, todos emulando Conan, o Cimério), a decisão do pai em o circuncidar, a tentativa de boicotar esse ritual pelo próprio Riad e subsequente aceitação contra um suborno (não cumprido), o ritual em si, a recuperação, e a constatação de que isso nada havia alterado à sua existência.
Todavia, é preciso notar como alguns dos comentários externos do narrador estabelecem uma outra camada de tempo, o do presente, como olhar crítico sobre as práticas e comportamentos da sua infância, não só os seus mesmos como os da sociedade em geral que o rodeavam. Por exemplo, os sentimentos anti-israelitas são demonstrados continuamente, como algo normal na sua cidadania de então, mas é esclarecido de uma forma subtil que se tratam de sentimentos ultrapassados. O modo de educação, a estratificação social da Síria, e alguns factos “pesados” da vida cultural desse país são apenas mostrados, por vezes com comentários mínimos ou nenhuns, mas é isso suficiente para nos apercebemos de que o autor, no presente, vê essas mesmas realidades como criticáveis e desmontáveis.
O próprio modo de construção das páginas, mescla de diário gráfico, com breves apontamentos das imagens e texto, com as personagens flutuando numa página branca, com pequenos desvios pela fantasia (os diálogos com o robot gigante Goldorak, ou Grendizer), ajudam a uma maior concentração da diegese, da atenção sobre o evento central mas à sensação de especificação dos elementos que o autor deseja ver escrutinados, desmontados e delidos pela distância – como quem diz, “isto passou-se assim, mas passou”.
O que se explora sobretudo é a angústia “antes do penálti” da criança, que entende vagamente o que se vai passar, mas sem entender os contornos exactos, o que aumenta essa mesma angústia, misturando o terror com a extrema curiosidade (daí que ele pergunte sistematicamente toda uma série de coisas a muitas pessoas, pareça irrequieto no seu desejo de satisfação da curiosidade, etc.).
Há uma história convoluta deste livro. Ele foi publicado em primeiro lugar em 2004 na colecção Bréal Jeunesse, da qual era J.-C. Menu o editor (no sentido inglês do termo). No entanto, a editora (isto é, a casa editorial) não só impediu que o livro pudesse ser vendido dentro dos mesmos moldes que os restantes livros da colecção (que é infantil), obrigando a subir a faixa etária dos seus leitores, como chegou mesmo a censurar os diálogos: sim, é um livro infantil, mas diz-se “merda”, “putas”, “foder”, fala-se de sexo sem conhecimento de causa (“o homem mete a pila entre as pernas da mulher e faz chichi lá dentro”), tecem-se comentários racistas em relação aos israelitas, e é-se cruel como apenas as crianças conseguem ser cruéis. Toda essa carga negativa, todavia, vive sob a campânula da distância e ironia do autor, e serve como campo de retracção mas também humor. No seu papel de editor (ambos os sentidos) da L’Association, Menu resolveu reeditar este livro na nova colecção Espôlette dessa casa alternativa.
Sendo esta uma realidade médica e religiosa relativamente alheia à esmagadora maioria da população portuguesa, ou pelo menos de um modo público, ritualista, social, Ma circoncision será antes fruído enquanto visitação de um pequeno trauma de bolso da infância (digo isto porque não constitui de facto nenhum “trauma” propriamente dito, apenas uma recordação de uma angústia, breve dor, pequena transformação). No entanto, num contexto que seja mais significativo em termos sociais e religiosos, é bem possível que este livro seja um poderoso instrumento de educação e de pensamento descomplexado, não para crianças, mas com as crianças. Não é de modo algum um livro infanto-juvenil complacente e estupidificante para com as mesmas. É um gesto inteligente e bem profundo, que entre nós é conseguido por autores como Manuela Bacelar, Daniel Barradas, João Paulo Cotrim. Mais, e bem pelo contrário, Ma circoncision plasma-se de modo preciso ao modo de pensar delas, que jamais é “politicamente correcto” ou “equilibrado” ou “tolerante”. É falando nesse tom relativamente forte e violento que esses mesmos erros são corrigidos, é abordando cara-a-cara essas realidades a apagar que o primeiro gesto de apagamento será feito. Não é ocultando os males que se faz educação, mas antes através da exposição mais sincera e directa possível, e esperar que a luz diurna os dilua permanentemente.
4 de maio de 2008
Ma Circoncision. Riad Sattouf (L'Association)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:29 da manhã
Etiquetas: Autobiografia, França-Bélgica
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