20 de abril de 2010

Ilustrações para Edgar Allan Poe, O Corvo, por Gustave Doré (Librimpressi)




Há uma forma de construir textos que me parece um pouco abusiva e que apenas falsamente parece garantir uma pista de interpretação crítica sobre uma determinada obra ou, pior ainda, sobre as “intenções” do autor. Essa forma é a de computar a data da morte e caminhar para trás, iluminando os últimos passos, actividades, eventos ou mesmo obras à luz dessa sombra.
Factualmente, é verdade que estas foram as últimas imagens criadas por Gustave Doré. O livro só veio a lume mesmo depois da sua morte, em 1883, aos 51 anos. A mãe, talvez a mulher de quem foi mais próximo, havia morrido dois anos antes, o que significou um grande abalo emocional e moral. Os últimos anos foram vistos como o de uma amarga batalha para ser aceite como “artista maior” (de pintura, a óleo e aguarela, e escultura) mas esse reconhecimento nunca veio. Mesmo o sucesso como ilustrador de livros já não tinha o mesmo sabor de anos antes, uma vez que a sua produção incansável e imparável diminuia o impacto de cada nova prestação e o desprezo da intelligentsia francesa, cuja aceitação almejava. A sua recepção nos países anglófonos era diferente (tal como é neles a apreciação de géneros tais como a ilustração, a aguarela, e até a short story).
É um pouco difícil compreender à partida o valor e importância de Doré. Talvez por vivermos num tempo que não só passou pela sua época mas outras que a vieram a colocar num solo cada vez mais recuado, o vejamos como um representante, maior sem dúvida, mas representante (isto é, não único) de uma época. Apesar de ser francês, Doré viveu e trabalhou para Inglaterra numa fase importante da sua vida, e assim ele é um autor da “ilustração vitoriana”. As imagens de que Max Ernst se apropriaria mais tarde para os seus roman collages reequilibrariam essas imagens antigas numa nova óptica. Gorey faria outra acção, diferente, sobre uma mesma área fantasmática de referência.
Mas Doré era único. Não era apenas o facto de ter sido um prodígio, agregando logo aos 7, 8 anos rasgados elogios a desenhos guardados até à idade adulta. Não era apenas o facto de ter começado a sua carreira como um fenómeno adolescente para a Maison Aubert com álbuns de banda desenhada, primeiro imitando Töpffer, logo depois reinventando essa linguagem. Não era apenas por ser tornar rapidamente, e tão jovem, um dos artistas mais importantes dos periódicos ilustrados de Paris, cruzando-se com Philippon, Bayard, Cham, Gavarni. Não era apenas o facto de ser um desenhador exímio e rápido, terminando uma ilustração num tempo até então inesperado, e com o grau de acabamento e equilíbrio que se lhe reconhecia. Não era apenas o facto de ser um perfeccionista e procurar os melhores gravadores com quem trabalhar (o que nem sempre correra bem, na verdade). Não era apenas por desenhar directamente nos blocos de madeira da gravura. Não era apenas o facto de ser um bon vivant, bom comensal, amigo de festas, violinista, e à sua maneira, aventureiro. Não era apenas por flutuar entre um desenho de gargantuescos e meramente esboçados esgares e caretas para alguns trabalhos e composições clássicas, densas, cheias de simbolismo e subtis aberturas à interpretação. Era por tudo isso, pedaços da sua biografia e carreira, carácter e anedotário, e mais: Doré reinventou a forma como entendemos a beleza possível das ilustrações em livros. Se tivermos acesso a qualquer livro ilustrado na mesma época, rapidamente nos aperceberemos da deslavada e frouxa capacidade dos demais artistas. Havia grandes caricaturistas, sem dúvida, e desenhistas. Na revista inglesa Punch, por exemplo, sobrevivem uns quantos nomes, de John Leech a John Tenniel, de Richard Doyle a Maurier, e uns poucos outros, mas a maioria era medíocre. E se se procurarem outras publicações, sem condução, é provável que tropecemos em imagens negligenciáveis. Mas nesses casos (a esmagadora maioria) não estamos a falar de ilustradores de livros literários. Ler Dickens ganha com as imagens de “Phiz” Browne e George Cruikshank; as imagens de Edouard Riou, Henri de Montaut e outros aumentava as expectativas na leitura de Verne; a Alice de Carroll não existe no imaginário sem a ganga que lhe apôs, e magnificamente, Tenniel. Mas quase todos eles são, digamos, “ilustradores de uma nota só”.
Doré desenhou para textos atravessando espectros inteiros de humores e géneros. Desde as vinhetas de comédia leve para Paul Lacroix às expressões satíricas e ribombantes para Rabelais, da melancólia, calma poesia das personagens para Tennyson à épica monumentalidade e gestualidade da Bíblia (para mais, no inglês da versão do Rei Jaime), das fantasias para Cervantes, Shakespeare ou Perrault, ao sublime teatro para A Divina Comédia, dos rabiscos para Munchhausen ou Croque-Mitaine aos retratos da moderna e rápida Londres. O escopo é, a um só tempo, titânico e proteico.
A verdade é que O Corvo, de Edgar Allan Poe, é a sua última obra. O trabalho irmana-se dessa forma com as imagens que compôs para The Rhyme of the Ancient Mariner e Orlando Furioso (se bem que este tenha inúmeras spot illustrations): composições de página inteira, com as personagens usualmente ao centro, como se numa boca de cena contraída, e um espaço pejado de informações visuais, com áreas sombrias. O desenho é mais contido igualmente, procurando a anatomia perfeita, uma expressividade credível, menos espantosa graficamente (do que para Rabelais ou Cervantes) ainda que dramaticamente exagerada.
Hellmut Lehmann-Haupt, numa pequena obrinha dedicada ao ilustrador francês, apesar de cair na mesma – a meu ver errónea – posição de pautar o trabalho retrospectivamente a partir da morte do artista (tal como Dan Malan, outro biógrafo-especialista, citado nesta edição da Librimpressi), aponta precisamente para o facto de que a força de Doré se encontra no “realismo da sua fantasia, a solidez das suas visões” e “a concretude da sua imaginação”. Aliás, esse bibliómano, escrevendo em 1943, leu também os livros de Ernst, conhece o Surrealismo, e pode fazer o seguinte contraste: “Está a um passo da abordagem Surrealista. A diferença está em que Doré tomou imagens mais convencionais, e a fantasia que estava já formada e aprovada na literatura”.
Discutivelmente, e para nos apressarmos a entrar na leitura das imagens de Doré criadas para o poema de Poe, é essa também a plataforma onde se encontram alguns dos problemas na apreciação das opções de Doré. É que se trata de uma escolha que, com os mesmos elementos sopesados, aquelas características que podemos acordar serem objectivas nestas imagens (a matéria da representação, os equilíbrios entre luz e sombra, a disposição dos corpos no espaço, a gestualidade), podemos tanto vê-las como traduções magistrais dos versos de Poe como estranhas e abusivas fugas. Antes do mais, convidamos o leitor a munir-se com alguns dos apontamentos aqui avançados a propósito das ilustrações de Filipe Abranches a propósito da Obra Poética Completa de Poe, sobretudo no que diz respeito à obrigatoriedade de traduzir estas obras sempre para cada nova geração – textualmente, do português de Pessoa ao de Margarida Vale de Gato, ou o espanhol de Bonalde, nesta edição, e visualmente, de Doré a Abranches – mas também ao que foi dito sobre o “fantástico” segundo Todorov que Poe cumpre exemplarmente, e aindas as considerações alongadas sobre a ilustração como tradução num texto recente.
Sendo este um pequeno poema narrativo, mesmo que haja zonas de pressão interpretativa livres, existem suficientes factores objectivos de descrição que permitem apontar aos elementos que devem estar presentes: o jovem protagonista sem nome, o corvo que lhe entra pela sala de estudo, a própria sala, o ambiente de serão de Dezembro, a memória da amada morta, o busto de Palas Atena por sobre a porta, a luz que nela brilha, a inexorabilidade da palavra final “nevermore” (traduzida por Pessoa e Gato como “nunca mais”).
Doré opta por aproveitar as pistas fornecidas de imediato nas primeiras estrofes para encontrar o seu caminho de criação imagética: a fogueira lançava na penumbra, que ela mesmo rasgava, (Poe-Pessoa-Gato) “ghost”-“sombras desiguais”-“formas espectrais”, o som das cortinas levam o protagonista a imaginar “fantastic terrors”-“estranhos horrores”-“torpes horrores fantasmais”, e tudo o que sucederá lhe fará recordar incessantemente Lenora (cujo nome é evitado totalmente por Bonalde e Pessoa, mas não Gato). Voltando às frases citadas de Hellmut Lehmann-Haupt, o que Doré faz é garantir à fantasia uma realidade, às visões uma solidez, à imaginação o concreto. Essa realidade, solidez e imaginação está presente nas imagens. Vemos o jovem homem rodeado do que são apenas espectros, palavras e memórias intangíveis no texto. Quer ele, “real” naquele universo diegético, quer esses mesmos espectros, apenas “imaginados”, “fabricados”, “urdidos”, ganham cidadania imagética em termos idênticos. Quem olhe apenas as imagens, imaginará que o jovem tem realmente a amada aos joelhos enquanto lê, que anjos se passeiam com Lenora, que esses mesmos anjos lhe atravessam a sala, que espectros o aguardam do outro lado das portas e das janelas, que rostos sem nome ou que reflectem aquela que é nomeada habitam o interstício das sombras na luz cortada pelo corvo, que uma velha esfinge se recusa a colocar-lhe um enigma, o qual é sempre uma esperança de solução, que as cortinas podem servir de estranho e volátil Letes, que as paisagens fúnebres lhe guardaram um lugar, que a morte o aguarda, paciente... As imagens que Gustave Doré cria não apenas retratam o mundo real, tangível, perceptível do protagonista do poema de Poe, como fazem surgir essas sombras irreais das suas impressões interiores. A ideia é clara, para Doré: a obsessão pela morte de Lenora molda uma sempre permanente sombra à frente dos olhos do jovem, mesmo que sejam apenas os olhos da alma. Doré tão-somente revela essa percepção das sombras.
Algumas imagens abrem-se mesmo a perspectivas fora do quarto, e lançam-nos aos hipotéticos mundos irreais, de sonho, de pesadelo ou apenas desejados do protagonista: o paraíso onde ele deseja ou imagina que Lenora e os seus anjos se encontrem, o cemitério que o espera, a desolada paisagem, lá fora, em que finalmente a última fímbria de esperança de rever Lenora é levada sob o voo do corvo, o qual servira de voz última ao esmagamento dessa mesma esperança...
Porém, talvez seja esse precisamente o abuso de Doré. Se o poema se inscreve de facto no campo do fantástico, em que a perspectiva do que é sentido e experienciado apenas se ancora em quem descreve a acção, e se nos torna impossível crer se ocorre mesmo ou não – mesmo que apenas nesse mundo ficcional, ao contrário do campo do maravilhoso, em que não há dúvida de que o descrito é real nesse mundo –, e aquilo que importa é criar essa zona de indeterminação, então Doré faz pender a escolha para a presença tangível dessas percepções. Tal como David B. o fará um século mais tarde em L’Ascension du Haut Mal, a realidade, a memória, o sonho e a ilusão têm direito de representação no plano de composição sem quaisquer diferenças. Todas participam no mesmo grau de presença gráfico. Talvez o passo na direcção do juízo de valor em relação a este trabalho – é “bom” ou é “enfraquecedor” em relação ao texto de Poe? Obriga-nos a relê-lo de modo diverso? – seja um passo desnecessário. Fiquemos apenas à beira dele.
Uma última nota fica para a qualidade desta edição: o interesse da sua paginação simples, a resolução da impressão, das tramas, da nitidez das linhas que compõem as gravuras é assombrosa. Mais uma vez, o editor, Manuel Caldas, apresenta-nos um objecto superior. A ele também agradecemos, pela oferta desta publicação. As imagens do vídeo são desta edição, as que acompanham o artigo não.

2 comentários:

  1. Manuel Caldas10:34 da tarde

    Parabéns pelo video e pelo texto e muito obrigado pela publicidade e pelos elogios
    ---- O Editor

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