17 de abril de 2010

Re: O que é uma ilustração?

Nota inicial: este texto é muito longo, e se peço desculpas por esse facto, também penso que os leitores sabem que este é um espaço que, por vezes, pretende entrar num discurso mais alongado e ensaístico. O tema obriga a desdobrar a discussão, e mesmo assim não a esgota, o que é impossível.
A propósito da exposição Dandy, na galeria Dama Aflita, no Porto, mas também a Ilustrarte 09, em Lisboa, e integrado nas pesquisas associadas à minha qualidade de professor de algumas disciplinas afectas à ilustração em várias escolas, gostaria de intentar aqui um pequeno ensaio de apreciação geral dessa meta-área que é a da Ilustração. Para isso, começaria de uma forma relativamente circunscrita e simples, que é a da resposta.
A galeria Dama Aflita convidou Mário Moura para escrever um pequeno texto sobre o Dandy, essa figura provinda do século XIX, e da qual o crítico de design descobre as inflexões contemporâneas. Desse texto nasceram as ilustrações de 45 artistas (de variadas origens, técnicas e aproximações). E dessas respostas surgiu um novo texto de Mário Moura, que discorre sobre a natureza da ilustração. Nele, o autor diz que os resultados foram “alguns literais, outros inspirados, outros inesperados, outros irónicos, outros meramente banais”. Se bem que nos apercebemos que este texto não tem qualquer propósito programático mas sim o de uma anotação breve, e conhecendo o trabalho do professor e crítico de design, estamos seguros que noutras circunstâncias poderia desenvolver de outra forma, e com outro alcance, a sua perspectiva mais completa. Todavia, se bem que devemos deixar claro de novo que nos apercebemos que esse texto não deseja ser nem holístico nem fechado, consideremo-lo enquanto tal, pois só assim posso organizar a ideia de “resposta” que desejo fazer, lá está, não tanto em relação a Mário Moura, mas às questões que o texto dele suscita.
A questão a que gostaria mais de responder é a das palavras “banal” e “literal” na ilustração, as quais considero não existirem. De todo.
A própria questão “o que é uma ilustração?” parece querer depreender a possibilidade de uma (só) resposta. Isto é, a abordagem do problema escolhe o pronome indefinido (“uma”), criando-se a ideia de que todas as ilustrações participariam de uma qualquer natureza comum, ou de condições mínimas necessárias e suficientes idênticas para que ocorra uma ilustração. Mas essa é uma questão na verdade sem resposta definitiva, mas apenas um problema que desvendará, na sua procura, problemas consequentes, mas importantes de desdobrar. Tal como a pergunta “o que é a arte?” é algo ridícula de colocar, ainda mais é não o fazer, isto é, não dar os passos necessários à sua tentativa de resposta.
Não se pode esperar seriamente uma reificação do conceito de ilustração, pronta-a-aplicar independentemente do seu contexto, negligenciando totalmente as relações sincrónicas e diacrónicas com outras instâncias (às quais retornaremos), essas sim constituindo um eventual todo, concebível ainda que jamais aprisionável. Caso contrário, se partirmos do pressuposto que esse encerramento último é possível, incorreremos desde logo num discurso isolocionista (“a ilustração ocorre quando temos x”, “a ilustração é, sempre, y”), ou pior, prescritivo (“a ilustração deve ser x”).
A propósito da edição da versão ilustrada de Amadeo d’A Lenda de São Julião Hospitaleiro de Flaubert, havia dado conta de duas citações (dadas no texto de M. F. Molder nessa edição), uma do próprio Flaubert e a outra de Marina Tsvietáieva em torno da ideia da ilustração. Debatendo as imagens que Goncharova faz sobre os poemas de Churilin, e ainda que evite a palavra em si, a escritora russa explica que entende a ilustração como a revelação de um sentido original uma segunda vez numa outra linguagem, logo, revelando-o pela primeira vez. Há uma equiparação, especial, explicada, determinada, com a tradução, portanto, e utilizarei essa palavra adiante.
À partida, e no texto de Mário Moura essa ideia revela-se logo desde o início, a ilustração é considerada como uma reacção a algo que a antecede, as mais das vezes um texto verbal. A ilustração como uma imagem criada para acompanhar um texto. Ora, considerando a ilustração na óptica dessa “tradução” de Tsvietáieva, a transposição intersemiótica (de texto verbal a imagem) implicará de imediato duas consequências. Em primeiro lugar, a emergência de uma imagem concretizará objectivamente algo que, no campo linguístico primeiro, havia estado circunscrito – por um substantivo comum ou próprio, um adjectivo físico ou moral, uma descrição menos ou mais completa – numa categoria relativamente alargada, e não num espécime, um objecto, concreto. Em segundo, a decisão de trazer à tona da existência (visual) um não-dito do texto de partida. Algo que ele não previa ganha contornos e expressão.
Estamos, até ao momento, presos à ideia de “texto” enquanto um discurso verbal determinado (por isso o qualificámos), mas poderíamo-lo, ou deveríamo-lo estender para o compreender num sentido semiótico mais alargado sem perder essas consequências? Vejamo-lo, antes de regressar à impossibilidade da banalidade e literariedade na ilustração de um texto.
Dos vários campos da ilustração existentes pensemos nos da ilustração de moda e ilustração científica. Quer num caso quer no outro não temos ilustrações para acompanhar necessariamente um texto verbal. É claro que poderemos ver um texto explicativo em relação a uma peça de haute couture lado a lado com um desenho dessa mesma peça, mas o desenho em si não estará a responder a esse texto mas sim ao vestido original. O ilustrador David Downton é pago para fazer uma sessão ilustrativa como o seria um fotógrafo de moda, e no seu caso em particular com as mesmas condições de produção. O produto do seu trabalho são ilustrações cujo “texto” a que respondem é, por exemplo, um vestido da Christian Lacroix usado por Linda Evangelista, não o texto do escritor da V Magazine que eventualmente discute o mesmo vestido. No caso da ilustração científica, por exemplo de uma espécie animal, é bem possível que tenhamos algum texto, que pode ir da nomenclatura binomial de Lineu a uma escala que acompanha a imagem, mas também que pode ir à extensão de um artigo científico sobre a espécie representada. A imagem em si, todavia, estará a responder, a traduzir, a transpor intersemioticamente não esses mesmos textos complementares, mas a espécie em si representada iconicamente, enquanto imagem de síntese, de concatenação de elementos e traços de vários espécimes num só corpo visual agregador. Desta forma, as ilustrações destes dois campos em particular não são uma imagem que complementa de um modo ou outro um texto primário, mas antes formas de tradução de uma realidade anterior numa linguagem outra, dizendo a mesma coisa pela primeira vez. A ilustração científica pode transmitir dados relativos não apenas à morfologia da espécie (uma angiospérmica, um peixe), mas também à sua biologia e ecologia, um momento dinâmico e de interrelação, uma imagem que possa servir de modelo mental contra o qual compararemos os espécimes reais, ajudando-nos na sua identificação (que é desde logo interpretação). A ilustração de moda não apenas mostrará um objecto de três dimensões, mas mostrará a fluidez de um corte, a opção entre peças separadas ou integradas, revelará escolhas relativas a padrões e texturas, aspectos cromáticos e estilos, e, mais além, uma certa estação social, um estado histórico e cultural, um desejo.
Queremos, e sentimos mesmo a necessidade, se não a obrigação, de acrescentar uma palavra em relação à ilustração científica, suscitada pela assistência a uma apresentação do historiador da arte e filósofo Georges Didi-Huberman, cuja obra seguimos em várias ocasiões, e que esteve de passagem em Lisboa. É bem possível que nalguns círculos as ilustrações científicas, ou em termos gerais, as imagens associadas à ciência, ainda estejam presas à ideia de um eventual positivismo, levando assim à ideia de “objectividade”. Queremos com isto afirmar uma dupla objectividade, quer aquela que teria a ver com a (impossível) ausência da intervenção interpretativa do fazedor das imagens, que se prestaria tão-somente à observação, síntese e criação da imagem, quer aquela que aponta à construção de um objecto que se torna modelo. Mas a verdade é que mesmo essas imagens, mais do que operarem na esteira de um conceito previamente existente, criam esse mesmo conceito. Os estudos de Didi-Huberman sobre a obra fotográfica de Charcot (Invention de l’hystérie) apontam nesse sentido. Poderíamos, mais próximos da ilustração, recordar a história do desenvolvimento da teoria biológica da recapitulação (“a ontogenia recapitula a filogenia”) e do enorme contributo que Ernst Haeckel fez com o seu Generelle Morphologie der Organismen (“Morfologia geral dos organismos”, de 1866) e, mais tarde, com a imagem sobejamente conhecida do Anthropogenie (1874) em que se comparam embriões de um humano, uma salamandra, um peixe, um pinto, um bácoro, um coelho e um bezerro. O problema está no facto de que essas imagens acabam mais por se adaptar ao que Haeckel queria demonstrar do que de uma observação plena, levando à controvérsia que se sabe. Neste caso, é uma ideia pré-concebida que guia a mão do desenho, mas é este que funda a “objectividade” de uma teoria proposta. A anatomia poderia ser um ramo curioso de estudo para esta questão. Desde Vesali e o seu desejo por uma anatomia normativa à absoluta individuação possível através de imagens de ressonância magnética, a verdade é que o equilíbrio dessas imagens será sempre uma de selecção, acuidade e síntese, mas na qual a interpretação tem o seu papel. Como dirão os alunos de anatomia, quando se disseca um corpo há sempre surpresas em relação ao que está descrito nos livros.
A razão da presença dessa interpretação pode-se explicar por outros campos. Como queria Merlau-Ponty, não há percepção que não seja desde logo consciência. Colocada a questão de uma outra maneira, Mieke Bal e outros autores, na explanação de novas abordagens ao campo da produção humana, falam da visão como sendo algo mais aparentado com a interpretação do que com a percepção. Dessa forma, as imagens integram-se numa ideia de textualidade mais expandida, que dispensam os textos propriamente ditos (a matéria verbal) ou quaisquer tipos de analogias ou confluências (que levasse a comparações básicas, taxativas e inexplicadas entre os elementos da língua ou da literatura e os das imagens, falando-se de “gramática visual”, “predicados visuais”, etc., apesar de haver tentativas hercúleas e brilhantes de o fazer, como a do Groupe μ). A conclusão deste pensamento é que a visão, enquanto acto, é um acto de leitura. Ora as ilustrações, como um campo privilegiado da imagem, permite uma leitura privilegiada. E isso não ocorre apenas ao nível da ilustração de moda ou científica, em que o grau de iconicidade é mais ilustrativo do que diagramático, como no caso da infografia ou dos pictogramas.
Poderíamos ser levados a pensar, por exemplo, que os pictogramas dos lavabos “dos homens” seria uma das abordagens mais simples, e então mais “banais” e “literais” do texto de partida – a noção de “homem”. Mas ao considerarmos o pictograma dos lavabos “das mulheres”, emerge de imediato uma questão política de interesse central: a de que as mulheres são-no por diferenciação dos homens, talvez não apenas a nível do design dos pictogramas (apesar do programa democrático, universalista e expansivo de Neurath e Arntz). Isto é, aquela noção primeira de “homem” que deveria contemplar “humano” informa a de “mulher” como “homem de saias”. Não há, nunca, nem olho selvagem nem imagem inocente.
Logo, a questão de uma ilustração partir de uma representação icónica de algo que existe no mundo – uma sardinha, um vestido de Lacroix, pessoas – ou algo que é inventado – a ideia de um “dandy” – não é suficiente para diferenciar estratégias de representaçãoe muito menos de significação.
Existem sempre zonas de negociação, fronteiras, territórios heterogéneos, de partilha, de confusão, indeterminação, inscrição dupla ou múltipla, nas quais se disputarão práticas, linguagens, imaginários, visualidades, experiências e vozes, misturando-se sempre em graus diversos que levam, consequentemente, a relações diferenciadas de poder e privilégio. Temos que olhar toda e qualquer ilustração como estando nessa zona e medir os graus dessa negociação, atentamente.
Há ainda uma outra forma de abordarmos o problema, penso. É também no texto de Mário Moura, e nalguns dos comentários deixados ao seu post, que encontro material para o caminho a percorrer (e ainda discussões com alunos). Como muito bem aponta o meu homónimo, posicionamentos essencialistas de definir a ilustração jamais poderão funcionar. Sigamos o seu trajecto e exemplos sucessivos. 1. “Uma ilustração representa visualmente um texto”; mas uma versão cinematográfica de um romance fará o mesmo; e se apenas representa, poderia substituí-lo, como acontece naquelas instâncias em que “lemos as imagens” dos “clássicos” que todos conhecem “por alto” mas nunca leram?; e será essa a razão que as torna dispensáveis numa edição subsequente, como nos casos de Dickens com Cruikshank ou Phiz ou de Verne e seus colaboradores? 2. “Uma ilustração não é autónoma, está ligada a algo mais” [o “texto” no sentido semiótico]; o que puxaria para o seu território praticamente toda a História da Arte Ocidental, inclusive parte das vanguardas históricas; não implicará que o desconhecimento do “texto” invalida esse elo: conhecemos a Paixão de Cristo para reconhecer o ciclo de imagens na azulejaria das igrejas, mas acontecerá o mesmo ao olharmos a vida de Buda em torno dos templos na Ásia? 3. “A ilustração é para ser reproduzida em massa” [ou, com Benjamin, reproduzíveis mecânica/tecnicamente?; há uma diferença de perspectiva]; o que colocaria de fora mais de um milénio de imagens associadas a textos (em rolos de papiros e códices de pergaminho) e traz à baila o problema da reprodução incontável das imagens das “artes maiores”. Afinal, tenho a certeza que alguns dos leitores, tal como eu, conhecem uma parte significativa, talvez até substancial, da História da Arte Ocidental... sem nunca ter ido a Roma ou Paris ou Moscovo ver as obras que a compõem. Conhecemo-la através de reproduções técnicas em massa. 4. “A ilustração é feita por ilustradores”; desta forma abre-se um capítulo particular da teoria institucional da arte para este campo em particular, mas também aos paradoxos e problemas dessa mesma teoria, sendo um deles uma circularidade perigosa (aqui é preciso sublinhar que o estudo do estado social da ilustração é também importante, e Mário Moura havia já abordado este assunto, da informada maneira que se lhe reconhece, em O que se passa com a ilustração?).
Estes parâmetros, tomados individualmente (representação de texto, ligação a objecto externo, reprodução técnica de massa, instituição), não nos asseguram um caminho directo à ideia de ilustração. Mas a mera adição deles também ajuda em pouco, pois sempre ocorrerão excepções, fugas, ocultações activas e omissões passivas, qualquer desses casos perniciosos resultados. Penso que se tomarmos como exemplo o contraste paradigmático entre uma obra de pintura num livro de história de arte e uma ilustração num livro de ficção para crianças nos poderá guiar um pouco, não tanto a uma conclusão, mas a uma direcção mais complexa, mais integrada e sobretudo possível.
Tomemos A Dama do Arminho, de Leonardo Da Vinci, como o exemplo da pintura, e um desenho colorido de André Letria para História de um segredo como o da ilustração infantil. Não nos interessam aqui tanto as histórias físicas (e sociais, etc.) de cada objecto: em que cidade foram desenhadas e pintadas, montadas e expostas, quem as manipulou ou comprou, quem e como as vê, etc. Interessa-nos seguir uma estrutura básica e redutora, que sirva de ponto de comparação. Leonardo preparou um painel de madeira de determinada maneira, dispôs as tintas de óleo de acordo com um plano de composição e terminou a sua pintura, que teve a sua história própria, até chegar ao seu estado actual, em exposição num museu da Cracóvia. Em várias ocasiões, no processo da feitura de livros de história da arte, sobretudo os mais recentes, um fotógrafo teve a oportunidade de preparar uma fotografia com as condições mais propícias à captura da pintura. Essa fotografia seria depois transformada de acordo com um processo qualquer, a digitalização e compactação, para que pudesse ser colocada no interior de um programa de paginação do livro. O ficheiro dessa paginação completa é enviado para o processo de impressão, o qual produzirá o livro e, nele, A Dama do Arminho. Letria, de uma maneira gestual e mental em nada diversa da de Leonardo (escusamo-nos das patetices de entrarmos em psicologias de Domingo sobre “génios” ou arrogâncias vazias das especificidades tecnicistas ou materialistas), dispôs as suas matérias gráficas sobre papel. Esse desenho colorido, finalizado, foi alvo de um processo de captação fotográfico, eventualmente de conversão digital a partir de uma fotografia analógica ou através da sua digitalização imediata. O ficheiro da imagem digital desse desenho é também composta na página, esse ficheiro no processo de impressão, e cá temos o seu livro.
Em ambos os casos atravessámos as fases de criação, captura, digitalização, paginação, impressão. Tecnicamente não houve qualquer diferença. As relações entre o texto e a imagem existem em ambos os casos: leio uma interpretação de Gombrich sobre o quadro de Leonardo, e encontro na pintura, ao lado no mesmo livro, o ancoramento necessário para a entender; leio o texto de Cotrim e encontro nas imagens de Letria uma decisão da história. Dizer que Leonardo criou para fazer um quadro e não contemplava a sua reprodução futura, e que Letria sabia que estava a criar o desenho para surgir num livro não ajuda, pois o que nos importa decidir é a razão pela qual na nossa percepção do quadro de Leonardo dizemos “reprodução” e no caso de Letria dizemos “ilustração” (mostrando que a percepção é na verdade um acto interpretativo da visão, como se aventou atrás). E podemos complicar o assunto, apontando para a presença dos desenhos de Letria na Ilustrarte, por um lado, ou um livro como As Botas do Sargento, um conto de Vasco Graça Moura baseado nas pinturas de Paula Rego, também presentes no livro.
Antes de avançarmos, é preciso também indicar que o apelo às condições de produção, dizendo que num caso o escritor Cotrim escreveu primeiro o que o ilustrador Letria “traduziu” depois, pouco importa, pois haverá (há) exemplos de livros ilustrados que foram criados “ao contrário”, e Paula Rego seguramente não levantou entraves, podendo-o, à utilização das suas imagens enquanto ilustração do conto de Graça Moura que haviam despertado. Analisaremos antes as condições de possibilidade, e as razões profundas dessa diferenciação.
A diferença é, portanto, ontológica. E não de qualquer outro quadrante. Quando vejo o quadro de Leonardo no museu da Polónia, tenho a oportunidade magnífica de estudar toda uma série de características, sobretudo físicas, que não estão ao meu alcance na sua reprodução no livro, por melhor que seja, e por mais brilhante que seja o texto interpretativo. Mas o mesmo sucede quando observo um desenho original de André Letria exposto, podendo explorar de um modo raro a sua plasticidade suave, as texturas subtis, as relações de dimensão entre os elementos, etc. Se me referisse a Manuela Bacelar, poderia explorar a diversidade de caos feliz das suas composições. Se me referisse a Luís Henriques, poderia explorar o pormenor das malhas intricadas e irregulares dos seus traços. Poderei, eventualmente, sentir o mesmo tipo de transporte estético e emocional. Mas intelectualmente sei que ao olhar para o quadro de Leonardo estou a olhar um “quadro” e algo “original” (com maior inclinação para o sentido de “único”) e que no livro se encontra uma “reprodução”. Ao olhar o desenho de Letria, vejo um “desenho” e a “arte original” (inclinando-se antes para “aquilo que dá origem a outra coisa”) e que no livro vejo a “ilustração” (propriamente dita). Ela ganha toda a sua expressividade ontológica no seu acto final, é esse o seu fito. Quando olho as pinturas de Paula Rego no seu museu, vejo-as a elas, inclusive aquelas que deram origem ao conto de Graça Moura, mas quando as vejo no livro da Quetzal enquanto leio o texto, leio-as transformadas em “ilustração”.
Que sucederá, porém, com as reproduções da arte original de Letria no catálogo da Ilustrarte? Vejo uma ilustração? Vejo uma reprodução de um desenho?
Vejamos de outro prisma... Imaginemos que numa rua que caminho me deparo com uma folha solta de um jornal, de uma revista ou de um livro. A folha está rasgada e apenas me deparo com uma imagem e um troço quase irreconhecível de um texto. O desenho parece ser de André Letria. Não tenho acesso ao texto, mas apenas àqueles indícios em torno do destroço material que tenho nas mãos, e que me levam a querer completar a ideia de jornal, revista, livro. Esses indícios levam-me a pensar nessa imagem como sendo de um livro ilustrado. Então penso que seja uma “ilustração”. Poderão obstar ter utilizado um exemplo que reconheceria pelo estilo (Letria). Mas poder-se-iam procurar outros exemplos e aproximar-mo-nos da mesma posição. Não conheço a história de Buda e reconheço que em torno daquele templo se mostram episódios da sua vida histórica. Não reconheço esta imagem mas percebo que deve ser uma caricatura política deste país. Nunca vi este estilo mas parece-me ser uma ilustração de moda. Não reconheço este insecto mas estou quase seguro que se trata de uma ilustração de um guia entomológico. Poderão obstar de novo, dizendo que esta acumulação sucessiva de ignorâncias não ajuda em nada a tentarmos definir ilustração. É possível que tenham razão.
A palavra “ilustração” tem de ser usada de um modo descritivo, que aponte para a ocorrência da relação ontológica indicada, e não enquanto valorativa (usualmente ajudando com adjectivos e advérbios: “isto são meras ilustrações”, “esta capa é demasiadamente ilustrativa”). E essa relação faz-nos regressar a um dos parâmetros “essencialistas” apontados acima, a saber, o segundo – “Uma ilustração não é autónoma, está ligada a algo mais”. Só que agora essa ligação é mais explícita, ou assim o espero.
É que a ilustração, no seio dessa relação, é a um só tempo opaca e transparente. Transparente porque, por um lado, retorna ao texto, está nele ancorado, faz-nos olhar para si para que olhemos o texto. Pense-se no seguinte. Quando se lê um livro ilustrado infantil, é a imagem aquilo que usualmente se lê primeiro (a menos que se faça um exercício obstruso tapando-a, colocando os olhos por sobre as letras, à amblíope, ou algo assim; e as crianças mais novas apenas “lêem” as imagens escutando o texto a ser lido). O mesmo ocorre naquelas edições ilustradas do século XIX, ou as que as imitam e seguem (como a edição d’Os Cadernos de Pickwick, da Tinta-da-China, que retoma as ilustrações de Phiz). O mesmo ocorre em alguns dos projectos de Tiago Manuel. Etc. Mesmo imaginando-se que são as imagens que complementam (secundam) o texto (primeiro), são elas que se lêem em primeiro lugar, obrigando-nos a procurar no texto as razões da sua existência, remetendo-nos àquela questão que Flaubert havia colocado e que deve ser o moto de toda a ilustração: “como é que ele tirou isto daquilo?”
Por outro lado, porém, elas são opacas. Ao olhá-las, olhamo-las a elas mesmo, às suas características próprias, que em relação ao texto concretizam e interpretam. Agregando questões de expressão, de estilo, remetem antes à ordem dos porquês das suas opções interpretativas. De certa forma, “porque é que ele tirou isto daquilo?”
Em vez de considerarmos a ilustração acompanhando um texto como “decoração”, “embelezamento”, e tendo em consideração que perceptivamente são lidas em primeiro lugar, deveríamos antes vê-las como plataformas de redescoberta do texto, filtros que obrigam, mesmo à primeira leitura, a uma segunda leitura, imediata, ou a uma leitura feita a dois níveis, se preferirem. Que tem duas direcções, da ilustração ao texto e do texto à ilustração.
No texto que escrevi sobre o último livro de Robert Crumb, o seu Génesis, e que será colocado no site SuccoAcido em breve, discuto precisamente a questão de que uma abordagem “literal” da ilustração de um texto é impossível. Crumb afirma “não acrescentar” nada ao texto bíblico, mas parece esquecer-se de que o está, não a copiar verbalmente, mas a traduzir para uma outra linguagem, para um outro sistema semiótico. As alterações não são somente de superfície, são profundas, alterando a atitude expectável de uma personagem, escolhendo uma posição, decidindo por uma das interpretações possíveis. Faço também um breve contraste ou comparação com uma das gravuras planeadas por Gustave Doré para a Bíblia (um episódio do Dilúvio), cuja imagem tem toda uma série de elementos ausentes do texto do Génesis, e que actuam como comentário. Este exercício poderia continuar-se ou experimentar-se em muitas outras instâncias, revelando os seus frutos.
Eu acredito que a ilustração é ontologicamente sempre uma resposta em relação a algo que lhe é externo mas que se actualiza nela mesma, ao contrário de outras disciplinas das artes visuais, as quais também respondem a algo anterior e externo (é essa a respiração da cultura, de resto) mas procuram uma certa autonomia imediata, fruto de uma posição moderna em relação às artes (pois historicamente estiveram subsumidas a outras funções e papéis, apenas na modernidade surgindo as noções de expressão ou de autonomia, a própria noção de beleza é multímoda, etc.). Se o referente nas outras artes é um elo que se pode soltar, no caso da ilustração ele é elemento intrínseco na sua leitura global, é próprio do seu significante. Isto é, é preciso ter em questão que a ilustração faz sempre uma tradução de uma outra coisa mostrando-a pela primeira vez e, por isso, não consegue jamais ser banal nem literal no sentido corrente. Se se quiserem empregar essas palavras num sentido equiparável ou irmanável a outros termos como “feia”, “pindérica”, ou seja, numa apreciação impressionista, muito bem. Mas não deverá ser esse o nosso propósito enquanto leitores de segundo grau, professores, críticos, praticantes.
A natureza de uma exposição de ilustração também levanta algumas questões pertinentes. Tomemos de novo os exemplos da Dandy e da Ilustrarte. No primeiro caso temos um conjunto heteróclito de imagens criadas por diversos autores mas todos respondendo ao mesmo desafio e texto de partida. O resultado final é aquele que se desejava colocar nas paredes da galeria. Existe um catálogo, mas ele existe-o enquanto tal, ou seja, um repositório para memória futura daquela acção, acompanhado com uma mão-cheia de informações. Não é, de forma alguma, um “texto primário” (a menos que a publicação tivesse sido pensada de forma a obter um grau de autonomia em relação à exposição, como tentámos fazer no caso da Divide et Impera). O “texto primário” é a colecção daquelas imagens que o público vê, associando-as ao texto que lhes deu origem. Mesmo que o não leiam, terão sempre acesso permanente à ideia fantasmática desse texto, faz-se um exercício de associações permanente. No segundo caso, temos uma mostra da arte original que havia sido criada para vários projectos publicados (ou inéditos, o que depreende o seu desejo de vir a ser editado, é esse o seu fito). Essa ideia fantasmática também ocorre – estou a olhar uma imagem que sei pertencer a um livro sobre x, mesmo que não o possa ler e inteirar-me dele – nesta mostra, mas não acontece a percepção do “texto primário acabado”. Sei que há mais para além disso. Posso olhar as imagens e apreciá-las enquanto obras de arte, fruto do virtuosismo técnico, da beleza intrínseca, do seu valor material, tal como no caso das da Dama Aflita, mas enquanto aí eu via o seu finalíssimo corpo, aqui sei que esse corpo está adiado para o livro. Mário Moura, no texto que tem estado na nossa mente, pergunta e responde o seguinte: “O que se perde ao colocar uma ilustração numa parede ou reproduzindo-a num catálogo? Na maioria dos casos, perde-se muito pouco”. Apesar de não compreendermos se a resposta se refere apenas um dos factores da pergunta (a reprodução), a questão é que mesmo que se perca algo, mesmo que haja uma péssima edição gráfica, é esse objecto que me dá o texto final, a vida real da ilustração.
Apesar de nos alongarmos demais para um texto de blog, regressemos à questão das considerações diacrónicas e sincrónicas da ilustração, não diferentemente do que ocorre em qualquer outro acto humano. Subscrevo a noção da definição histórica das artes (incluindo a da ilustração ou a da banda desenhada, que mais nos importam) de Jerrold Levinson e as “correcções” narrativas de Noël Carroll. Em suma, este posicionamento leva-nos não a identificarmos uma ilustração por uma qualquer essência – que em rigor não se diferenciaria de outras disciplinas artísticas por este ou aquele aspecto – mas porque a associaremos a uma qualquer narrativa que recorre ao que sabemos do estado diacrónico, isto é, histórico, da ilustração (“antes era assim, depois incluiu-se esta técnica, depois ainda houve uma influência assim”), tal como sincrónico, quer no campo da ilustração (“esta ilustração, apesar de infantil, recorre a técnicas da ilustração científica”, “este autor recorda outro”) quer a outros campos (“tal como no cinema, ocorre aqui um establishing shot”, “esta técnica de moldagem bebe de experiências do cinema de animação”).
São todos esses elementos que concorrem na nossa apreciação de uma ilustração. Parta ela de um vestido de Balenciaga, da ideia enciclopédica de um carapau, de um conto tradicional, de um episódio bíblico, ou de um texto intelectual para uma exposição, a imagem “traduz” esses textos primeiros sempre de uma maneira transformativa, recorrendo a instrumentos de expressão, das personagens ou do próprio material (Eric Carle, Hanoch Piven e Mário Cameira não apenas fazem os seus “bonecos” como querem que tenhamos atenção aos materiais empregues), relembrando um percurso icónico-verbal histórico (E. Gorey remete à gravura vitoriana, David Downton é herdeiro de René Grau, Carrilho recorda a plasticidade do trabalho de Al Hirschfeld, Piven reformata práticas de Arcimboldo, Tiago Manuel ecoa o trabalho heteronímico de Pessoa), optando por uma qualquer regra de transformação icónica que tanto pode ser barroca, engalanada, pormenorizada e cheia (Rui Paes, James Jean, Carla Pott, João Maio Pinto, Daniel Silvestre da Silva) como minimalista, estilizada, metonímica (Dick Bruna, João Fazenda, Gémeo Luís, Daniel Lima).
À pergunta “o que é uma ilustração?” respondemos as mais das vezes sem hesitação. Isso não significa que não estejamos a empregar toda uma série de parâmetros e conscientes formas de interpretar aquilo que se vê. Vemos uma relação ontológica entre a imagem e aquilo com que se enleia, uma associação a uma história particular e a uma situação ampla. A ilustração é um modo de tradução, de transposição, de re-logicização. Esta não é, de forma alguma, uma resposta completa. Mas para lá caminhamos.
Nota final: são muitas as pessoas a quem devemos agradecer, por darem a conhecer novos mundos, direcções, livros. Fiquem pelo menos os nomes de Mário Moura, Carla Pott, Pedro Salgado, Daniel Silvestre da Silva, os organizadores da Dama Aflita e da Ilustrarte, os alunos do Mestrado na ESAP-Guimarães.
 

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