Se bem que este não seja o primeiro livro que os autores fizeram em conjunto, é aquele que nos foi dado a oportunidade de ler em primeiro lugar e, ainda que apenas a título impressionista, de uma obra anterior do escritor Vehlmann, que apreciámos muito, e do desenho novo que Duchazeau havia começado a experimentar noutros livros mais recentes, esperávamos uma união qualquer de interesse. (Mais)
A estrutura narrativa deste livro é clássica e simples, mas de uma extrema pertinência e eficácia para o seu propósito, sendo esse propósito nítido na extensão do título: uma mão-cheia de filmes hipotéticos, falhados ou fantasmas daqueles que se perderam do “pai do cinema de fantasia”, Georges Méliès.
Existem sete episódios, cada um de 10 páginas, com os seguintes títulos: “La chasse à l'étoile polaire”, “La trapeziste escamotée”, “Un fantôme sur la lune”, “La nuit du Zouave”, “Le Diable Amoureux”, “La nécrolope mécanique” e “Les féeries récalcitrantes”. São eles que nos ajudam a cartografar parte da sua leitura. Se o tamanho (duração?) destes episódios remete para a ideia de “curta-metragem”, que pelas condições de produção possíveis nos 10 apenas excepcionalmente passavam dos 30 minutos (a série de Fantômas de Feuillade, por exemplo), parte desses títulos fazem-nos recordar directamente os filmes (alguns sobreviventes, outros não) de Méliès, como aos de Feuillade, Gance e até Émile Cohl. Mas ainda se enreda noutras referências da cultura popular francesa, desde os livros que passavam pelo equivalente pulp desse país, àqueles volumes fictícios que surgem nas narrativas de David B., o qual partilha com estes autores, e outros, um imaginário similar. O título Le Diable Amoureux remete, obviamente, à novela de Jacques Cazotte (publicada entre nós como O Diabo Enamorado na versão portuguesa da borgesiana A Biblioteca de Babel, na Vega), expandindo assim a rede elaborada e sofisticada de encontro entre a cultura popular e erudita daquele país e destes autores.
E esse imaginário é belíssimo, e muito contemporâneo. Vivemos num momento particularmente interessado em determinados momentos históricos, e que fazem encaixar a realidade histórica com a ficção, mas ficções informadas pelo espírito do tempo de que são resgatadas. Pense-se no género conhecido como steampunk, por exemplo. A recuperação de certas referências da cultura popular ou da história dos finais do século XIX e princípio do XX são muito curiosas, pois elas mostram de uma maneira clara certas obsessões com as origens do nosso próprio quadro cultural pós-moderno. Na banda desenhada encontramos Alan Moore (com a League of Extraordinary Gentlemen e From Hell), Warren Ellis (The Planetary, Aetheric Mechanics), Bryan Talbot (Grandville) e um exemplo recuado e até pioneiro em Adèle Blanc-Sec, de Tardi; na literatura o caso paradigmático de Philip José Farmer (Wold Newton Family); e no cinema filmes muito díspares, de The Prestige a(o novo) Sherlock Holmes. Não é só essa magia ingénua do cinema, filha das artes de ilusão dos palcos e da literatura de cordel, é toda uma neblina de referências, de Josephine Baker aos vampiros e diabos de Fantômas, do Tarzan aos suicidas românticos no Sena...
O primeiro “episódio” abre em 1928, quando do hipotético – mas totalmente credível e até eventualmente real – encontro entre Jacques Prévert e Méliès, este trabalhando na sua lojinha de brinquedos na estação de Montparnasse (jogos de brincar no monte das Musas, c’est bien trouvé, e verdadeiro). Na verdade, sabe-se que a re-apreciação e até mesmo redescobrimento de Méliès se deveu aos surrealistas, historicamente, e os autores aproveitam esse facto para elaborar uma espécie de argumento estrutural para que os episódios sejam vistos como narrativas contadas pelo próprio Méliès ao seu jovem “aprendiz”, que deseja dedicar-se ao cinema, como o faria efectivamente.
Se o primeiro e o último episódios se tecem a partir de uma narrativa do próprio Méliès, podendo nós entender a acção como uma analepse, os outros não nascem ou não são atribuídos de maneira directa a Méliès, mas é essa abertura e fecho que nos permite iluminá-los dessa forma (e veremos à frente como isso ainda ocorre).
Num dos últimos episódios, em que os irmãos Lumière se juntam a Méliès e os seus, os cineastas vencem um exército de criaturas fantásticas a mando do Deus do Gelo, que se quer vingar por encontrar no cinematógrafo a sua dissolução. Baseados numa superstição conhecida (mas provavelmente falsa e eurocêntrica), esse rei e os seus súbditos são supersticiosos e acreditam que as suas almas são capturadas e consequentemente destruídas pela captação da imagem. Imageticamente, o soberano é parecido com uma versão a preto-e-branco (um trabalho lindo de linhas diáfanas de carvão de Duchazeau, imitando a ideia de um grão do nitrato de prata deixado no papel?) do rei Morfeu do Little Nemo. A associação levar-nos-á a imaginar que o cinema, visto dessa perspectiva, era o fim de uma determinada maneira de sonhar e manter os sonhos nas narrativa. Uma vez que essa magia e campo das metamorfoses passa a ser objecto de uma arte externa aos seus utilizadores, que uso terão essas criaturas? Voltaremos adiante a este tema.
Auguste e Louis Lumière vêm armados com “câmaras-espingarda portáteis”, o que é uma piscadela de olho ao “fusil photographique” de Marey, outra das grandes referências nos primeiros passos científicos do cinema. E ainda que a relação entre os Lumière e Méliès seja explorada, naquilo que historicamente lhes pautou as diferenças a nível económico e estético, todos surjem aqui unidos como que uma espécie de guilda aventurosa, recordando uma instância particular da “Liga de Cavalheiros Extraordinários".
O último episódio, como vimos, volta a lançar elos de ligação entre todos eles, garantindo uma coesão interna das “aventuras” ou dos “filmes”, encerrando a narrativa maior ao colocar de novo Méliès frente a Prévert, o primeiro aconselhando o primeiro a evitar fazer mal a esse outro domínio do fantástico que estava de saída, o círculo do “maravilhoso”, e antes se dedicar a um cinema que não magoasse ninguém, filmados nos jardins com cenários de “cordel e cartão”. É uma curiosa forma de consideramos o cinema de Prévert e dos surrealistas, mesmo os aparentemente violentos. Aquele outro tema alia-se, por exemplo, a algumas das pesquisas narrativas de Gaiman e Moore, da “despedida” das criaturas do fantástico do domínio do humano, cada vez mais ocupadas pelo intelecto, o científico e o positivismo, empobrecendo as camadas possíveis do mundo... Talvez estas pequenas narrativas tenham o desejo de recuperar todo esse “maravilhoso” que afinal partilhava o mesmo sinal, e agora fá-lo de novo num só corpo (o livro). Recuperar o que não estará, queira a memória, irremediavelmente perdido.
Nota: agradecimentos a Paulo Seabra, pelo empréstimo do livro.
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