Havíamos aqui falado de Chimera, do mesmo autor, um dos fanzines em formato de jornal mais belos que nos foi dado a ver e a ler, e na altura havíamos falado de Storeyville, de que gavia notícia, uma olhada de fugida, e uma compra protelada. A sua edição pela PictureBox, associada a toda uma atitude DIY, indie e artística da banda desenhada (norte-americana, mas também com participações de outros quadrantes mundiais), num formato idêntico mas em capa dura, permitirá a uma nova fornada de leitores o acesso ao primeiro trabalho de Santoro, datado de 1995.
Santoro é uma referência no mundo dos fanzines, lado-a-lado, se nos atrevemos a dizê-lo, a John Porcellino, por um lado, e o colectivo Fort Thunder, por outro. Sem querer estabelecer hierarquias, categorias e muito menos dicotomias, é como se Santoro conseguisse enveredar por caminhos de experimentalismo gráfico e formal radical (como os FT) mas mantivesse a capacidade de tecer uma poeticidade do quotidiano, uma atenção à esfera do humano, idêntica à de Porcellino. Estas associações não são assim tão discplicentes, de tivermos em conta que um dos seus projectos, Cold Heat, é feito com Ben Jones.
Storeyville, porém, encontra também elos de associação com uma outra classe de autores, como James Sturm, Robert Crumb, Harvey Pekar, Dan Burr e James Vance, Seth, na medida em que esta é uma história sobre uma errância por uma paisagem semi-rural da América do Norte, usualmente fora da consideração de produções mais mainstream (estendemos a noção dessa paisagem física e social ao Canadá, pela própria diegese do livro, daí a inclusão de Seth). Esse é o coração do livro. Temos aqui uma pequena novela em torno de um jovem branco, Will, cuja vida passou por um qualquer crime não explícito, e que une a sua vontade em se reunir ao seu companheiro negro, o Reverendo Rudy, à própria ideia de travessia desde Pittsburgh, Estados Unidos, a Montreal, Canadá.
Will não quer apenas encontrar o seu amigo, como deseja pagar-lhe uma dívida, a qual apenas se torna clara mais tarde para nós. Além disso, essa reunião reveste-se também de uma importância económica, já que a acção se passa nos anos da Grande Depressão, e social, uma vez que se trata da amizade entre um branco e um negro, o que nos anos 30 seria regra apenas entre as camadas da população mais pobre, dada a trabalhos sazonais e nunca no mesmo sítio ou ramo de actividade. No final, essa amizade reata-se mas ganha novos contornos. E novas promessas também, mesmo quando passam pela separação.
No entanto, como muitos outros o disseram antes de nós, Storeyville é menos sobre essa mesma novela em si do que o processo de a contar, e os processos de viagem, memória, encontro, adaptação, auto-descoberta. Frank Santoro emprega um estilo muito próprio, relativamente diferente de outros dos seus trabalhos mais tardios. O desenho parece tosco, quase de primeiro rascunho mas ganhando direito à cidadania de desenho final, como se lhe fosse imperativo tornar marca (uma forma de traduzir o infinitivo presente activo do verbo grego antigo graphein) a primeira instância de transformação do acto de vontade na sua expressão gráfica. Isso recordará aquele problema e aproximação a que chamámos várias vezes de “desenho caligráfico”, e que se une a toda uma prática corrente na banda desenhada contemporânea. Além disso, a opção por mostrar pranchas regulares (sempre de 3 x 5 vinhetas com apenas uma linha finíssima de separação apenas desrespeitada num momento ou outro, nesta edição) aumenta o carácter de “escrita rítmica”, sublinhando uma aproximação icónico-verbal aparentada com a anotação, a escrita diarística, o breve apontamento, que deseja mais garantir não deixar a impressão desaparecer do que burilar artística e literariamente (aqui entendidos ambos os termos num sentido disciplinar, de actividade regrada, de respeito por uma ideia de cânone) do material diegético. O formato da sua edição original, a qualidade do papel, e o balanço tranquilo entre as linhas grossas de carvão e os espaços em branco, manchas de grafite, zonas de cinzentos, e depois a distribuição não-naturalista de um reduzido espectro de cores, em zonas de castanhos, sépias, ocres, amarelos torrados e outros mais claros, constituem outros tantos elementos que tornam a leitura de Storeyville num exercício completo de “transporte” para uma vontade de leitura daquele mundo recuado.
Essa disposição mental em mergulharmos neste mundo ficcional é garantido pela união de todos estes elementos, e trazendo-os de novo à visibilidade está a gestão que Santoro faz entre as vinhetas com personagens e aquelas apenas de paisagens, aquelas com texto (em balões ou legendas) e as “silenciosas”, entre os segmentos de acção de grande dinamismo àquelas com uma natureza mais estática, contemplativa [em certos momentos, recordam A Short History of America, de Crumb]. Storeyville está repleto de momentos de atenção particular para com as paisagens, sejam elas urbanas (sobretudo as atravessadas pelos comboios) ou rurais, selvagens ou plácidas, abrangentes ou íntimas, até à disposição final das vistas sobre o mar. Este é um livro que cria a perfeita ideia de um “road comic” interessado nessa atitude zen de absorver a paisagem ou fundir-se com ela no acto de viagem. Talvez possa ser esse o desejo também do livro, que nele nos percamos.
Nota final: o nome parece ser baseado no nome do bairro de Nova Orleães onde nasceu o jazz moderno, por entre os fumos e flirts dos prostíbulos e speakasies dessa cidade, trazendo à associação uma outra dimensão de referências musicais e de imaginário facilmente incorporáveis a esta história, ainda que não personificadas. Daí a escolha por uma outra referência, mais afastada e romântica, no vídeo que preparámos, com uma faixa do romani Django Reinhardt. A dimensão étnica desse músico pretende trazer essas associações à tona da leitura de Storeyville.
"Este é um vídeo privado." ou é novamente trenguice minha?
ResponderEliminarNão, a trenguice é minha. Já corrigi.
ResponderEliminarPedro