A história da banda desenhada (aqui expandida para englobar exemplos de alguns campos da ilustração) vive uma história muito complexa da sua relação com as artes visuais. Isso é evidente, até por essa afirmação não determinar nada. Identificar o tipo de relação já é mais complicado. Não o faremos na sua globalidade, pois tal tarefa hercúlea está nas mãos dos historiadores, não dos críticos. Mas apontaremos uma relação, um dos elos de ligação: o da desconfiança.
Os factores que presidem a essa relação são múltiplos. Aquilo que António Jorge Gonçalves exlicitou no Verbd, a sua “teoria social” da banda desenhada ser filha de uma complexada pequena-burguesia, é parte dessa raiz. Os exemplos, variados. Quantas vinhetas fez Daumier em mofa não apenas dos visitantes e críticos dos Salons, mas dos próprios artistas e suas invenções? Não seria possível moldar um discurso de maneira a que entendêssemos que Duchamp, mais do que ter colaborado com os Humoristes fazendo uma mão-cheia de caricaturas, ter encontrado uma forma de as expandir até ao seio do campo da arte, transformando-o para sempre? Recordemo-nos de Modern Arf, que colecciona precisamente relações directas (fontes ou modelos minados para gags) entre o círculo das artes visuais e a banda desenhada, as mais das vezes para demonstrar essa tal desconfiança ou falta de entendimento. Pensemos em muitos outros exemplos de cultores deste território que demonstram, de uma forma ou de outra, não conceberem uma forma de entender essoutro mundo, com a sua própria história, as suas próprias crises e os seus próprios discursos (necessariamente mais expandidos, complexos e ricos do que aquele que tem sido construído em torno da banda desenhada). Para se entender a arte (acordemos aqui que isso é possível de um modo claro), é necessário algum grau de intimidade, não só conhecendo o dito “Artworld” (visitar galerias e museus e suas exposições temporárias, estar a par dos concursos e perceber quer os critérios intrínsecos às disciplinas quer aos jogos de interesses extrínsecos), mas perceber a existência de discussões às quais é difícil de chegar a meio, ter a humildade em insistir até se abrir a chave do entendimento dessa obra nova (e não mugir de imediato qualquer insulto), e aceitar a sua diversidade assombrosa. Por essa razão, é mais fácil encontrar atitudes associadas ao mundo da banda desenhada displicentes para com o mundo das artes visuais, sobretudo por ignorância ou mesmo casmurrice: o querer evitar entrosar num diálogo que tem ocorrido desde Platão por dezenas, senão centenas, de nomes incontornáveis e suas tentativas des respostas, não “falhadas” mas necessárias nessa busca contínua. Por outro lado, entende-se também a obsessão ou pelo menos a noção de que é possível chegar-se a definições e ideias completas de banda desenhada, arte, belo, bom (sim, ainda!), etc., de maneiras simplistas (precisamente por ver essas respostas anteriores como “falhadas”, e não parte do edifício da procura).
Há casos de excepção. Claro que sim. De Feininger aos autores afectos à Frémok, sempre existiram e sempre surgirão exemplos de autores que trabalham na área da banda desenhada plena e inteligentemente informados sobre as estratégias e determinações de outras áreas disciplinares criativas, capazes de fazer inflectir isso de um modo verdadeiramente criativo na área primeira (e não somente uma mera imitação de formas ou efeitos).
Bob Deler é o nome de uma personagem criada pelo famoso escritor espanhol Felipe Hérnandez Cava e pelo artista Keko [José Antonio Godoy] para uma série de tiras publicadas na revista espanhola EXIT Express, dedicada precisamente às artes visuais contemporâneas. Esta informação é importante, uma vez que os seus primeiros leitores seriam pessoas interessadas em estar informadas sobre exposições, certames, encontros, discussões dessa área mais prestigiada, encontrando naquelas tiras um “intervalo humorístico”, no qual se permite (papel do bobo) dizer “verdades” sem que tenham o peso de “lei”.
Esta banda desenhada versa esse mundo, os seus mecanismos e seus agentes: os comissários, os galeristas, os agentes, os especialistas de marketing, os críticos, o público, os autores de prólogos e ensaios, e, claro, também os artistas, se bem que estes sejam quase sempre retratados como pessoas sofridas e que jamais encontram a união perfeita entre o que eles pensavam poder fazer e o que fazem ou, pelo menos, o que é apreciado deles. Como não podia deixar de ser, estas histórias estão plenamente informadas de alguns dos discursos mais modernos em torno da arte, se bem que já com algumas décadas de consolidação: citam-se, ainda que tangencial e humoristicamente, Frederic Jameson, Arthur Danto, Guy Debord e pastiches de críticos contemporâneos, e vasculham-se os nomes que compõem a história da arte, tão recuados quanto Velázquez como hodiernos como Hirsch. Alguns citados directamente, outros procurados de forma enviesada (como no episódio em que Bob Deler exuma o coelho morto a quem Joseph Beuys “explicou as imagens” na famosa performance de 1965). Claro que se reduzem muitas vezes alguns desses discursos às suas explanações sumárias e superficiais, mas não deixa de ser um excelente exercício de concisão e crítica à queima-roupa.
Por exemplo, uma das teorias mais discutidas na crítica da arte, ou uma das escolas de argumentação que procura esclarecer quanto aos mecanismos de identificação de um determinado objecto como obra de arte, é a conhecida “teoria institucional da arte”, com defensores tais como Danto e George Dickie. Sumariamente, pretende essa teoria que os objectos “candidatos” são dados à apreciação da instituição conhecida como “Mundo da Arte” (Artworld), e que são os agentes que o compõem que decidem se ganha essa natureza de arte ou não. As implicações são muitas, não há aqui espaço para as expor e nem sequer temos o perfil correcto para as discutir. Aceitando essa inscrição num círculo, num espaço próprio, digamos o museu, Bob Deler desafia a colocar algumas obras de arte na rua, no parque de estacionamento do museu... onde quadros de Van Gogh continuam a ser quadros de Van Gogh, e onde o piaçaba-obra-de-arte retorna à sua condição miserável de piaçaba-instrumento-de-limpeza (uma pequena brincadeira em torno dos objects trouvés de Duchamp, citado, e de outros).
Noutro caso, temos um autor que está farto dos discursos segundos que constroem em torno do seu trabalho: por mais ingénuo que procurasse ser na sua pintura, havia sempre quem descobria sentidos segundos, estruturas profundas, jogos sígnicos. Mesmo desistindo e tornando-se eremita, os críticos assaltam-lhe à porta para lhe revelar, a ele mesmo, as razões “que subjazem a tua renúncia”.
É natural que quase todos os leitores concordarão com a superfície destes humores, mas a própria figura de Bob Deler, enquanto metonímia quer do poder que se consegue nesse mundo – poder de influência social, político, e mesmo financeiro – quer na falta de poder ou nos entraves que ele levanta – compadrios, redes de influência, falta de isenção e visão pessoal da parte dos jornalistas, críticos e comissários –, não deixa de ser um representante outro da inevitabilidade e da vitalidade desses círculos, sem os quais nada se consolidaria. Um dos últimos livros do crítico de arte Pierre Sterckx, conhecido amador (em todos os sentidos) de banda desenhada, intitula-se Impasses & impostures en art contemporain (que já havíamos citado aqui; na capa tem precisamente uma obra de Hirsch). Nela, analisando as obras de autores tão diversos quanto os mais consagrados Louise Bourgeois, Lucien Freud e Jan Fabre, e nomes mais contemporâneos, mas não menos agraciados, como Marc Desgrandchamps, Annette Messager e Julie Mehretu, tenta separar o trigo do joio, os artifícios de interesses (menos velados do que se pensa) das obras vincadas na interrogação estética, através da forma, enquanto “formação associada ao sentido e à subjectivação (inclusive o pré-individual)”, forma a qual deve ser entendida não como mero “fechamento estável do visível, mas a sua passagem problematizada”. Isto é, Sterckx – com outros autores – procura identificar uma forma (essencialista? fechada? formulaica?) de identificar de modo nítido e decisivo essas escolhas, e concomitantes juízos de valor. “A arte, reza o autor, ou é uma redeterminação modulante do real num outro real, ou não é nada”.
Mesma que fosse possível essa decisão, Bob Deler parece existir quer para fazê-la rastejar, tropeçar, falhar rotundamente, como agente desse mesmo posicionamento, quer para garantir a necessidade eterna de a buscar e exercer, como simbólico ponto de interrogação, detective, questionamento permanente dessas questões condenadas a estar sempre em aberto. A sua mãe, nas frases finais do capítulo criado em exclusivo para esta edição em livro, diz que ele é, no fundo, um “um sentimental de todos os objectos desnormalizadores”, como o seu pai, cuja função era “normalizar” de imediato toda e qualquer acção ou objecto do círculo artístico que pudesse parecer demasiado disruptivo, uma anedota em torno da forma como os gestos das vanguardas históricas, do Dada e do Fluxus e seus avatares, e das artes de choque são imediatamente cooptados pelos sistemas vigentes do poder simbólico. Aliás, no leito de morte, Jimmy Deler diz ao seu filho que lhe lega o único bem possível: a ironia. E é assim que todo o livro deve ser lido. Não obstante, Bob responde à sua mãe, dizendo que só o move “a profunda piedade que sente pelos [seus] contemporâneos”. Será essa a função deste livro? Livrar o mundo sisudo das artes (não concebo um projecto desta natureza nas publicações afectas às artes visuais em Portugal, pelo andar da coisa) desse triste semblante e procissão? Menos mal.
Olá Pedro! Posso espreguiçar as minhas perninhas neste cantinho?
ResponderEliminarPor quem sois.
ResponderEliminarTemos whiskas.
pedro
pobre arte, sem a vida ela näo é nada
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