A propósito do livro Booth, de Colbert e Tanitoc, havíamos identificado uma possível tipologia das relações entre banda desenhada e história. Tentativamente, vemos uma aplicabilidade dessa “regra” neste último projecto de João Paulo Cotrim e Miguel Rocha, sob os auspícios da cidade de Portimão.
São muitos os projectos associados a efemérides, eventos autárquicos, biografias, que partem de vontades instituicionais e que encontram na banda desenhada um veículo privilegiado. A esmagadora maioria desses projectos atinge usualmente um qualquer grau pobre de instrumentalização que secundariza a expressão pessoal, a dimensão artística, até mesmo uma dose relativamente básica de bom gosto. Os resultados são medianos, quando não inenarráveis. Existem excepções, claro está, e para não sairmos do Algarve, recordemo-nos de Guadiana Encantado, de João Romão e Nuno Saraiva (numa edição da Câmara de Vila Real de Santo António, de 2001). E quase todos os projectos aos quais se associa João Paulo Cotrim, que molda as vontades programáticas institucionais à sua própria linguagem e capacidade de trabalho, quase sempre ofertando ao seu público abordagens poéticas, pessoais, expressivas e completas do tema ou elementos de partida. Como é de esperar, o tipo de cumplicidade que exerce junto aos artistas com quem se expressa (aqui, Miguel Rocha) está na superfície do que é oferecido: há uma elaboração imagética inteligente, assente numa união de excelência, um diálogo perfeito, um enleio amoroso, entre a trama narrativa e o seu veículo visual, revelando-se os critérios consolidados desta linguagem por estes autores. Se bem que haja alguns breves casos de algum grau de submissão da imagem ao texto (os “retratos” ou troços descritivos de acções), eles ocorrem na necessidade económica de todo o desarranjo de que falaremos, estrutura própria d’A Noiva.
No outro livro que faz como que uma espécie de parelha com este, Portimão. Como se faz uma cidade, do qual Cotrim se pode considerar o coordenador de projecto, o escritor afirma o seguinte no posfácio: “Não é difícil cair na armadilha de confundir determinada cidade com um aspecto apenas, de costume a superfície edificada, aprisonando-a assim numa magem que cabe no tamanho de um pequeno bilhete postal”. Esta é a abertura do texto, para depois prosseguir com a exploração de que a natureza de uma cidade é sempre de um “carácter movediço”. Mas essas palavras parecem ser precisamente o que impera em A Noiva que o rio disputa ao mar. Nenhuma breve sinopse fará jus à estrutura do livro, mas poderemos tentar fazê-lo ao dizer que seguimos aqui a história de um fotógrafo de Portimão, de seu nome (tão típicos do Sul) Caga-Ferros, que passa toda a sua vida a tirar fotografias de muitas ocasiões e acontecimentos da sua terra. Dissemo-lo, mas dissemos pouco, se mesmo alguma coisa. A história que se desenrola está ancorada à circunferência de Portimão, mas em nenhum outro aspecto o está.
Não há qualquer ordem cronológica, senão aquela que a memória vagante do próprio narrador, ora pairando pelos casamentos e baptizados que terá feito às dezenas na terra, ora por datas comemorativas de alguma coisa, algumas no interior de uma possível proximidade, outras em datas mais recuadas ou avançadas... Será possível poder ter testemunhado fotograficamente à inauguração da ponte em 1876, ao comboio em 1903, a passagem da vila a cidade em 1924, e ao 25 de Abril? Numa só vida? E ainda a tempos mais recuados, ao terramoto de 1755, à abertura da igreja em 1707, à partida de D. Sebastião em 1573, aos estaleiros de barcos em 1565, ao foral de 1504? Mas como a fotografia? E ainda mais recua o protagonista, aos árabes, aos romanos, aos fenícios... e adivinham-se as primeiras populações humanas, ali à beira-rio, beira-mar. Essa desarrumação do tempo mima a desarrumação das imagens, das fotografias guardadas no arquivo de Caga-Ferros, e, uma por uma, elas são puxadas para revelar esses troços de tempo. Uma personagem indicia que ele “era para aí do tempo dos fenícios...”, e é possível que assim seja, um olhar que por ali sempre pairou, guardando-se nas memórias visuais, na fabricação da paisagem, do encontro entre a terra, o rio e o mar.
Essa falha de cronologia permite tecer uma malha que procura uma essência da cidade. Não é bem um exercício de psicogeografia, pois os parâmetros geográficos do local são preteridos a favor de unidades topológicas, capturadas pelos clichés do fotógrafo (e traduzidos pelas vinhetas de Miguel Rocha). Talvez sejam elas metonímias, encaixadas como em caixas chinesas ou então um puzzle, e é assim que percebemos todos os elementos, o rio Arande, o mar do sul, a terra de sal, as manchas de sol, o porto e o cais, os edifício com história e os outros mais calados. E as gentes. A pesquisa fotográfica e histórica da personagem é o mecanismo narrativo que permite a interrupção da narrativa – já de si difusa, fragmentária – por “fichas” ou “retratos” dos filhos da terra ou daqueles que lhe compuseram a história.
Apesar das palavras explicativas de Cotrim, a estratégia deste livro é de facto tentar capturar o “carácter movediço” de Portimão, mas precisamente através da armadilha possível do breve e pequeno bilhete postal em que se convertem estas fragmentárias vinhetas de Miguel Rocha. No oitavo e último episódio, antes do epílogo, após um interlúdio lindíssimo dos loucos anos vinte à moda portuguesa [aqui ao lado, duas páginas], duas linhas paralelas de vidas desencontradas cruzando-se no feliz momento da captura fotográfica, mostra-se um rol seguido de imagens da praia da Rocha na época balnear, de 1930 ao que se adivinha serem os nossos dias [a imagem abaixo]. A última frase do fotógrafo é a de que “em vez de morrer, gostava de me desfazer na paisagem” (e é vontade que os autores satisfarão).
A malha narrativa a que nos referimos atrás ganha também uma presença vincada pelos desenhos de Miguel Rocha, sobretudo naquele padrão de riscos sobrepostos que criam uma textura repetida ao longo do livro. Aparentado com o “tinkerbell effect” do floco de neve em filigrana do Blankets de C. Thompson, mas também idêntico ao signo da explosão em Salazar, esta é também uma forma fechada que age como uma personagem fantasmática na história contada. Se bem que em termos representacionais possa valer enquanto reflexo ou projecção de luz, jactos de sangue, labaredas, a espuma das águas contra as rochas, é logo ao princípio que, representando o Levante, se revela enquanto o fio, menos condutor do que articulador dos momentos aparentemente desconexos. Aparentemente, pois é essa brisa, esse “hálito de música”, diria Sá-Carneiro, de memória, de história, que é a conexão da tessitura.
O instrumentário de Miguel Rocha parece aqui conhecer a aliança equilibrada entre a conhecida paleta de cores vivas, as grandes superfícies de cor, os contrastes vincados, e a filtragem cromática (em alguns episódios, como o da saída nocturna da época do jazz), e as novas técnicas digitais de composição, paginação e gestão. Se Salazar tinha optado, por razões necessariamente ligadas à história, por uma fracção do espectro das cores, agregando-se tão-somente às sombras fúnebres que o ditador instilava, aqui é óbvio que o leque se tem de abrir a toda a maravilha natural e melódica do Sul algarvio, mutável todo o ano. Há momentos mesmo que recorda algumas das mais magníficas pranchas de A Vida numa Colher, com o mesmo tipo de estruturação de pintura (entre um neo-realismo e algo informado pela pop), aquelas em acrílico sobre papel de cor, estas produzidas digitalmente. Para além daquela textura que voga por todo o livro, os brilhos e explosões de luzes que se espalham pelos fragmentos cronológicos, há momentos ternos de metáforas visuais, como a noiva desfazendo-se no areal das praias e o noivo nas águas azuis da baía, ou as gaivotas finais, tanto compreendidas como as aves de um regime que se acabara de derrubar como as da esperança que levantava voo. E depois, acompanhando nós o voo delas, erguermo-nos por cima do azulíssimo fim deste livro.
Nota: agradecimentos à CMP, pelo envio do livro.
Olà Pedro, queria a banda desenhada "A noiva que o rio disputava ao mar" de Miguel Rocha para a livraria. Sabe a quem posso pedi-la?
ResponderEliminarPuxe o link do teu blog no facebook da livraria
https://www.facebook.com/Librairie-Portugaise-et-Br%C3%A9silienne-273346366069166/
Preciso da tua ajuda para ter bandas desenhadas portuguesas à venda na livraria em Paris.
Estás em Lisboa no fim de Julho, incio de Agosto?
Obrigada,
Corinne Saulneron
Librairie portugaise & brésilienne
www.librairieportugaise@wanadoo.fr
Respondi por email... Espero que possa ajudar, Corinne. E espero ver-te em breve!
ResponderEliminar