O modo como escolhemos um livro não é simples. As decisões que tomamos para o comprar são as mais das vezes mesquinhas e parvas (ambas contendo o sentido de pequeníssimas), súbitas e circunstanciais, e nem sempre informadas pela via da razão, do argumento, da sapiência. De quando em vez, essa decisão revela-se acertada, mas ela só o é ou não, isto é, só nos aperceberemos do resultado depois do facto. E o facto é, naturalmente, a leitura. Existem dois grandes campos que dividem quase irmãmente essa decisão. Ou temos uma qualquer informação fora do livro que nos ajuda a alcançá-lo, ou não temos nenhuma e recorremos a outras estratégias de aproximação. No que diz respeito ao primeiro, ou conhecemos o autor, ou conhecemos a história de ouvir falar, de uma adaptação, de um artigo crítico, ou confiamos na editora e/ou na colecção, ou no nome da pessoa que assinou o prefácio ou o posfácio, ou interessa-nos algo do tema, sobre o qual nos inclinamos por um qualquer peso anteriormente conquistado. No segundo campo, somos atraídos por questões superficiais que não são mágicos de somenos. Gostamos da capa, por exemplo. Quem afirme de imediato que quem vê caras não vê corações ou que quem vê capas não vê livros não sabe, ou não merecerá talvez, a benesse de ver. Depois há as excepções. (Mais)
Isto leva a que, por exemplo, se protele a compra ou mesmo a leitura de um romance de Lermontov por esperar pelo mesmo numa tradução inglesa de Nabokov e, sobretudo, que mesquinho, uma capa de Edward Gorey! Que se tenha acesso à excelente tradução, e nossa contemporânea, do Orlando Furioso, de Margarida Periquito (na Cavalo de Ferro), mas deixá-la de lado por querer compulsar a tradução em prosa oitocentista de Xavier da Cunha, num vetusto catrapácio gigantesco, pedindo a benesse da muleta de um apoio de madeira para livros, para a ver, à leitura, pontuada pelas gravuras de Doré (é verdade que a nova edição também as tem, mas não é o mesmo, não é o mesmo). E na banda desenhada essa escolha multiplica-se pelas sensações, pelas impressões, pelo ébrio e fino hausto de um encantamento frágil. A capa, a sobrecapa, as guardas, os desenhos que prometem já parcelas da acção que contém, um desvio ou emblema da narrativa que encerra. Quando folheamos um livro de banda desenhada, ou um livro ilustrado, numa livraria, fazemo-lo “ao contrário”, precisamente para sublinhar o facto de que não o estamos a ler, mas antes a vasculhar rapidamente para encontrarmos razões (parva razão) que nos cacem o olho, como que a expressão primeira que “salta à vista” dessa primeira perscrutação...
Nesse vago e pelicular acto de não-leitura, porém, podem surgir-nos fragmentos de uma ideia, que depois fazem faísca entre si e criam uma percepção primeira sobre “o que será” o conteúdo desse livro. Ao olharmos dessa forma breve as imagens de Jolies Ténèbres, livro escrito por Fabien Vehlmann (com ou baseado em Marie Pommepuy) e desenhado por Kerascoët, depois de termos olhado a sua sobrecapa numa montra e até levantado esta para ver a capa interior (que parece imitar as capas antigas dos livros ilustrados da passagem do século XIX ao XX; esta aqui ao lado), a ideia que nos surge é a seguinte. Um livro cujos desenhos se inscrevem numa tendência contemporânea da banda desenhada francesa, largas vezes debatida aqui, e que se expressa com um desenho simples, descomplicado, quase delicodoce. Notamos numa procissão de personagens com aspecto cândido, que nos fazem lembrar meninas lindas e bem-comportadas, pequenos príncipes e criaturas de encantar, desde ratinhos educados do campo a fadinhas, num bosque secreto onde certamente existem pequenas e divertidas tardes de chá e bailes acompanhados por pássaros chilreando. Um misto de novelas da Condessa de Ségur, de Alice no País das Maravilhas, de contos de encantar, tradicionais, da tão britânica Fairie.
E depois lemos. E depois recordamos que As Aventuras de Sofia encerram travessuras que nem sempre têm um contorno de doçura. E que Alice responde torto e abrupta e distanciadamente a todas as tolas personagens com quem se cruza (os adultos estúpidos que apenas têm olhos para os relógios mas não para a falta de imagens). E que os contos tradicionais têm raízes na violência dos mitos anciãos, cuja coroa é sobretudo a crueldade, o sangue a vingança, o castigo da hubris. E que se existe Ariel, há também um Puck, senão mesmo um Calibão.
O próprio título já nos deveria colocar de sobreaviso. Mas a leitura leva-nos à dúvida se o jogo de “Jolies Ténèbres” se trata de um simples oxímoro ou se se trata efectivamente de um roteiro de interpretação. Se o for, o que devemos buscar? A tenebrosa, indizível crueldade que pode ocultar a forçada candura? Ou a doçura que resta no seio do horror?
Este livro nasce de uma premissa contrária a Rousseau, e que já foi explorada por muitos autores. As crianças encerram em si o melhor dos mundos, elas são o melhor do mundo, mas também produzem os seus próprios infernos e os seus próprios monstros, quando não se desenvolvem elas mesmo enquanto infernos ambulantes e monstros. Se O Senhor das Moscas nos havia preparado para um certo tipo de crueldade, a crueldade de Jolies Ténèbres surge-nos um pouco mais crua, por estar embrulhada numa forma tão doce. Convenhamos, não estou a fazer uma comparação directa, e o romance de Golding prospecta as camadas da existência humana de um modo mais complexo, intricado, profundo e matizado do que este livro de uma história relativamente linear, mas não deixa este livro de ser uma experiência da crueldade aventada acima, exarcebada precisamente pelo desvio que propõe.
Sinopse: uma menina, de dez anos, menos talvez, está tombada numa floresta. Aos poucos descobrimos que está morta, sem que se avance a causa, e o seu corpo decompõe-se. Do seu interior brota uma hoste de criaturas delicadas, de sonho, fadas e faunos, princesas e delicadas meninas. Aos poucos têm de se adaptar àquele novo terreno, externo e estranho. Alguns levam essa aventura de um modo quase despreocupado, piqueniquesco. Outros procuram soluções genuinamente abnegadas, frutos para todos. Outros exercem desde logo os egoísmos de que são capazes. Paulatinamente, nasce uma pequena hierarquia de enganos e desenganos, de erros de carácter e vinganças, de atrocidades e mortes. A natureza que os rodeia não se apresenta na plena candura de postal: defeca-se, come-se, mata-se, em todas as ordens possíveis. A morte rodopia todas estas criaturas como uma borboleta cega. Há uma tensão crescente, há várias tramas secundárias que se enovelam, há pequenos mistérios jamais resolvidos, há raptos súbitos e desenlaces inesperados, há uma conclusão terrível.
A personagem principal chama-se Aurore, Aurora, como quem diz Aquela que sobrevem à noite, que lhe sobrevive mesmo.
Jolies Ténèbres foi comprado com a ideia de que se tratava de uma fantasia crepuscular, infantil, doce, que deslizava por um universo de referências que supomos “seguras”… essa percepção estava errada. Todavia, que felicidade! É neste exercício de crueldade que encontramos uma força maximal no livro. Sem dúvida que se trata de um desafio para pedopsiquiatras de cartilha, pedagogos da uniformização, pais com medo da independência dos pesadelos dos filhos. Haverá maior liberdade do que conquistarmos o direito aos nossos próprios terrores?
5 de julho de 2009
Jolies Ténèbres. Fabien Vehlmann e Kerascoët (Dargaud)
Publicada por Pedro Moura à(s) 9:57 da tarde
Etiquetas: França-Bélgica
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