Já em várias ocasiões falámos aqui de que a linguagem da banda desenhada, se é de facto assim entendida, como quer Neil Cohn, poderá ser empregue para mais do que o fim que usualmente lhe está associado, o de “aventuras fictícias empolgantes de personagens interessantes”. Mas mesmo que nos fiquemos pelo território da ficção, entender-se-á ser-lhe possível cobrir todos e quaisquer géneros concebíveis, emprestados ou não de outras áreas, usualmente a literatura. E tal como nessa outra área, será possível encontrar todos os graus de prossecução dos seus elementos.
Petites Eclipses não é, de modo algum, um livro que empregue todos aqueles elementos usualmente associados à banda desenhada enquanto meio de espectacularidade. Quer um quer outro dos seus autores, Thierry “Jim” Terrasson e Stéphane “Fane” Deteindre, trabalham sobretudo em campos secundários da banda desenhada, como aquelas bandas desenhadas de uma prancha publicadas no final de revistas dedicadas a temas específicos (motards, desportos automóveis, Playboys e quejandos). São ambos escritores e desenhadores deste livro. Mas o que trazem a lume aqui é uma pequena novela em torno de um grupo de amigos, que partilham uma semana numa casa de campo para testemunhar um eclipse solar total e, mais importantemente, as suas impressões, desilusões e medos em relação ao facto da idade: todos estão no final dos 30 anos de idade, sentem a juventude a eclipsar-se (óbvio) as e incertezas ou receios de envelhecerem mal a aproximarem-se. Uma espécie de Amigos de Alex. Ou seja, se bem que a banda desenhadas seja um meio visual (com determinações específicas), essa dimensão é ligeiramente secundária neste livro, a sua beleza está subsumida ao seu programa narrativo. No que diz respeito às bandas desenhadas narrativas, talvez não seja esta uma posição partilhável, mas retiramos um maior prazer daquelas que podem ser consideradas “bem escritas” que não possuam uma dimensão visual particularmente inventiva (basta que seja competente, suficiente, clara nesse transporte, e damos o exemplo de alguns dos trabalhos de Warren Ellis na Avatar), do que outras que são seguidas pelos prazeres habituados do desenho do seu artista mas que em nada contribuem nas suas ideias. Dois exemplos são os de Manara (cujo elogio não se cinge apenas à apreciação do métier) ou de Bilal, ambos desenhadores sobejamente agraciados por um público considerável, ambos escritores miseráveis.
Parte dessa “boa escrita” reside nos diálogos. Muitas vezes, encontramos elogios a “grandes diálogos” em escritores como Bendis ou Brubaker, sobretudo por esses autores se entregarem às tiradas “cool” à ping-pong que gere os filmes (norte-americanos, mainstream, de acção) dos nossos dias. Não nego que o conseguem fazer na perfeição, mas no interior desses géneros (e é necessário deixar claro alguns dos princípios em que o conseguem fazer, como discutido aqui). Mas um diálogo bem escrito pode ser pautado por outros parâmetros, e o mais importante, parece-nos, poderá ser encontrado na justeza do que é afirmado. Mas também na credibilidade circunstancial dessas afirmações. Nas armadilhas que elas pregam a quem as diz, revelando a “pessoa” (e não a personagem somente). E nos abismos a que obrigam o leitor/espectador ponderar. Se desviarmos a analogia do cinema de acção norte-americano em relação aos autores do seu mainstream na banda desenhada (mas mantendo uma espécie de maniqueísmo cultural perigoso), os franceses Fane e Jim estarão na peugada de outros tantos realizadores do seu país, uma linha que vai de Pagnol e Clouzot até Jaoui. Ou seja, os diálogos respiram de um modo vivo e verdadeiro, porque rasam a experiência de alguns de nós.
Os temas das conversas rondam as amizades de longa data e as de circunstância, as relações de trabalho, as cumplicidades da adolescência, a sobrevivência dessas ligações, as primeiras relações amorosas e as mais seguras que se seguem, as traições, as cumplicidades e culpas e arrependimentos e refazer das pazes, as passageiras ligações sexuais, os flirts, os breves enganos, a condição dos homens e das mulheres, a picardia entre os sexos, os disparates partilhados por ambos. E vinho. No qual reside sempre a chave da verdade.
Uma das personagens, J. P., um trintão casado que acaba de “conquistar” pela net uma virgem de dezanove anos, diz a um momento “porque é que na minha idade não nos podemos sentir simplesmente livres?”. Outra, um artista que não vê como chegou até àquele ponto da vida e muito menos o que se seguirá, sofisma: “É estúpido sentirmo-nos esgotados estando apenas na metade da vida.../Pensava que com a idade adquiriríamos cada vez mais senso comum e serenidade.../Mas em vez disso, cada aniversário traz-me um novo fardo, de ansiedades, de dúvidas, e cada vez mais esta maldita noção que não ter cometido senão uma série de erros.../...e este cansaço...” Colocando à parte o facto das personagens masculinas terem direito a maior tempo de antena e de desenvolvimento, sobretudo através de monólogos e memórias mais alongadas, e as femininas acabarem por apenas parecerem surgir através de desdobramentos psicológicos em relação, senão mesmo integrados nas relações com “os seus homens”, estas questões, e até mesmo o fraseado, poderia levar-nos a um drástico contraste entre Dante, e a sua vida e expedição no “meio da vida”, e aqueles “pequenos elipses” a que as gerações contemporâneas, desencantadas, têm direito. Mas é precisamente esse cansaço, esse impedimento da liberdade da estupidez adolescente, que é explorado nessa semana de férias.
Todavia, é para isso mesmo que serve esse intervalo e fuga do grupo de amigos, e são esses mesmos diálogos e conversas que os vão revelando como pessoas, e as resoluções que delas nascem (até no confronto com uma espécie de “curandeira afectiva”) é o que os permite serem melhores pessoas do que eram ao início. Apesar de toda a fraqueza e fragilidade, toda a humanidade, destas personagens.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro. Referimo-nos aqui à reedição de 2010, e não à original de 2007, na colecção Écritures.
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