5 de abril de 2010

Daredevil. Brian Michael Bendis e Alex Maleev, Ed Brubaker e Michael Lark, et al. (Marvel)

Quando discutimos aqui algumas das nossas mais contínuas leituras do género dos super-heróis, deixámos claras as razões pelas quais não deixávamos mais claras ou constantes essas mesmas leituras, as quais se prendem à natureza própria do género, sobretudo no que diz respeito à “abertura” das suas histórias, dado que a esmagadora maioria delas está relacionada com uma utilização constante de marcas registadas, as quais devem garantir um valor comercial igualmente constante. Também se discutiu o facto de que há, até certo ponto, alguma diferença naquilo que hoje é criado por alguns autores no interior desse universo (a esmagadora maioria é, de facto, maiqueísta, derivativo, aborrecido e mesmo ridículo), os quais conseguem ultrapassar os lados mais patetas destas personagens para conseguir trazer à tona algo de mais interessante e moldado.
Dois dos autores (escritores) que citámos, e relacionados com a mesma personagem, são Brian Michael Bendis e Ed Brubaker, sendo a personagem o Demolidor, ou no original inglês, Daredevil. Falamos deles agora pela série assinada por Brubaker ter terminado há relativamente pouco tempo.
Não nos esqueçamos que estamos a falar de uma indústria cultural muito particular, em que as personagens (os super-heróis) são antes do mais marcas registadas, propriedades das empresas respectivas (neste caso a Marvel), e que fazem muito dinheiro (hoje em dia, mais no merchadising e no cinema do que na produção da própria banda desenhada; há quem diga que os comic books quase voltaram à sua natureza original, de comodidade baratíssima de panfleto de oferta, apesar de serem ainda vendidos, e nem sempre baratos). Ou seja, estes autores são contratados durante um determinado período de tempo para trabalharem essas personagens e garantirem a sua sobreviência comercial (de certa forma, aparentados com os treinadores de futebol?), trabalhando no interior de toda uma série de esparilhos, parte deles editoriais (directrizes do que podem ou não fazer no programa mais generalizado da empresa, respeitando a “continuidade” da história da personagem, a gestão narrativa de todo o “Universo” – a rede de personagens da mesma empresa, que podem ser angariados para “eventos” que atravessam e aliam vários títulos por estratégias comerciais –, planeando a sua utilização noutras frentes, sendo a mais óbvia a do cinema, que pode ou não exercer peso na banda desenhada: no caso particular do filme Demolidor, nada, pois a inteligência de Bendis não encontra nenhuma repercussão no filme).
Bendis trabalhou durante cerca de 4 anos, produzindo o equivalente a 10 “trade paperbacks” (ou “tpb”, os volumes em formato de livro que coleccionam os comics), usualmente desenhados por Alex Maleev. Brubaker esteve cerca de 3 anos, atingiu 7 tpbs, e o artista principal foi Michael Lark. Estamos a falar, portanto, de um trabalho desenvolvido desde 2001.
Em relação ao primeiro, havíamos falado do modo como tinha tecido uma apertada “trama familiar, centrada na sua cidade [o bairro de Hell’s Kitchen de Nova Iorque], com uma história que reúne todas as memórias dos leitores dos mesmos livros dos anos 60 e 70, colocando todas as personagens em situações plausíveis e a escalas caseiras”. Do segundo, abordáramos o facto de que, em relação a esta série e em contraste com outras nas quais trabalhava, que a “circunferência de acção é menor, e permite tratar todas as personagens, mesmo que com os fantasiosos super-poderes, como se encerrados numa rede ‘controlável’ de relações e de peso”.
mbos os escritores têm uma formação específica da escrita no noir, ou no hard-boiled, muitas vezes entregando-se a alguns dos seus elementos mais padronizados, mas conseguindo um equilíbrio excelente entre a suspensão da credulidade típica do género da fantasia dos super-heróis e aqueles outros elementos que nascem de uma sua inscrição na modorra do quotidiano possível (as relações interpessoais, os casos amorosos, as pequenas chatices diárias, etc.). Haverá mais do que um contraste entre o trabalho de Bendis e o de Brubaker em cada um dos seus respectivos “runs” (que é o termo utilizado quando se quer referir ao tempo que um determinado autor, usualmente o escritor, domina um determinado título de uma companhia), mas julgo que o mais óbvio tem a ver com a típica estratégia de Bendis escrever diálogos curtos, em tiradas rápidas e rapidamente trocadas entre personagens, muitas vezes espargidas de hesitações, frases abortadas, humor, e pequenos nadas, e a de Brubaker em confiar parte da narração a legendas, que tanto corresponderão a um narrador externo, superior à diegese (não para simplesmente descrever a acção representada, como desde o reino de Stan Lee e quejandos, mas para perscrutar o que não é nem mostrado nem dito), como à voz interior, introspectiva, da própria personagem, às vezes mesmo complementando um diálogo que está a ocorrer (sempre naquele mergulho interior). As diferenças de Maleev e Lark são também consideráveis, sobretudo a pátina fílmica do primeiro, mas mais rapidamente se encontrarão aspectos em comum – para já, a paleta controlada, de grande contraste, obscurecida, graças ao trabalho do colorista Matt Hollingsworth [cujo contributo se pode ver na imagem de Lark aqui mostrada antes e depois da cor], mas também o tipo de estruturação de página, alguns desvios por estilos drasticamente diferentes, etc.
Um dos problemas deste género em particular é que as personagens não só não têm espaço de manobra para o seu desenvolvimento – da sua personalidade possível, de um crescendo psicológico, da rede familiar, numa palavra, nas sua novela – como muito provavelmente têm um peso ontológico que as impede de encontrar esse desenvolvimento. É difícil querer trabalhar com uma personagem como o Super-Homem, necessariamente infalível, para lhe descobrir medos, fobias, desarranjos, preocupações do quotidiano, já que é, pela sua própria natureza (quer aquela fictícia do seu universo quer a do seu mecanismo literário), impermeável a tudo isso. Tal como outros géneros da banda desenhada, nomeadamente os humorísticos, os infantis, ou até mesmo outros em que o mecanicismo é parte integrante do seu ser, nos super-heróis não se espera outra coisa. Como escreveu Rick Veitch em 1996, a maioria destas personagens constitui “propaganda oca, estúpida, e sectarista (...). O próprio conceito de um vingador semi-divino ou mascarado tomando a leis nas suas próprias mãos não tinha nada de heróico e era basicamente uma mentira horrível”. Diametralmente oposta, encontra-se a vantagem, típica das personagens da cultura popular: a sua unidimensionalidade permite constante reemprego, reapropriação, reinvenção e projecção de novos desdobramentos de personalidade sobre esse “corpo”.
Ora, é aqui que encontramos autores que conseguem fazer o seu papel de excepção. No caso particular do Demolidor, Bendis e Brubaker, pela oportunidade que tiveram em fazer desenvolver histórias longas durante muito tempo e muitas páginas, entregaram-se ao luxo de pautar as suas histórias de um modo totalmente diferente dos escritores anteriores. Parte dessa responsabilidade tem a ver com a própria história do género que, inevitavelmente, tem de dar espaço a outras estratégias mais contemporâneas e diversificadas. Por outro lado, esta personagem não tem o mesmo perfil comercial dos X-Men ou do Homem-Aranha, em que o risco é maior e onde se procura ser-se menos inovador ou “escrever fora” da expectativas dos fãs.
Parte dessa história tem a ver com o formato da publicação, o comic book mensal, o que obrigava a “uma aventura por comic”, ou pelo menos “um combate por comic”, tornando expectativas mais alargadas, narrativas mais estendidas muito difíceis de garantir num tempo de apreciação básica de leitura (curtir e deitar fora). Ou seja, o comic tornava-se a unidade narrativa por si mesmo. Existindo enquanto formato comercial, e óbvio que se pauta igualmente pela mesma estrutura de nódulo, com um gancho no fim que obrigue à leitura do próximo, mas ambos estes escritores fazem-no de um modo mais espaçado, em maiores arcos, que se vão desenrolando e desenvolvendo lentamente, chegando mesmo a momentos de cozedura lenta (sobretudo Bendis), antes de ferver. E nunca chega a deitar por fora, no sentido em que todos os elementos são necessários à diegese, como queria Artistóteles.
É possível que possamos dizer que encontrámos as raízes desse desenvolvimento noutros autores, de Frank Miller a Moore, claro, mas outros também (discutidos brevemente no texto sobre super-heróis). Mas há algo de complementar nestes dois escritores, nesta série em particular. Portanto, o “passo em frente” consistiu na ideia de, em vez de utilizar separada e alternadamente algumas das personagens recorrentes, considerar aquela circunferência de acção como um espaço relativamente coeso e fechado, e tecer uma malha mais apertada entre elas, para depois jogá-las como se se tratasse de um complexo tabuleiro. Hell’s Kitchen, Nova Iorque e o Universo Marvel tornaram-se os círculos concêntricos nos quais se colocou o Demolidor como peça central, o centro de gravidade das restantes personagens, jogadas em relação a ele (contra, a favor, em torno...). Outros autores já o haviam tentado antes, e poder-se-á fazer uma história de crescendos e aproximações, mas este é o ponto contemporâneo de exactidão conseguido. Outros possivelmente se segurão.
Alguns desses elementos são todas as personagens usualmente associadas ao Demolidor (os colegas de trabalho, a mulher, os inimigos do costume), outras são outros super-heróis que partilham a sua cidade (e o Universo Marvel), puxando assim várias vezes a agulha no pano, para depois puxar o fio e revelar a tal trama apertada.
Essa trama serve então de palco às histórias, não apenas informadas pelo típico e recorrente ciclo de acção-reacção pejada de espectacularidade, super-poderes, ninjas, etc., mas com elementos do policial (idas à prisão, sessões de tribunal, perseguições, tiroteios, pressões e interrogatórios), do detectivesco (pesquisa, perguntas e respostas, disfarces), e do novelesco (enganos de amor, humor, aborrecimentos entre amigos, crises que crescem e nunca se desfazem). A circunferência aumenta por vezes para se visitarem países afastados daquele centro (Japão, Espanha e até Portugal), mas sempre como uma forma elástica de fazer devolver as consequências ao tal centro nevrálgico de Hell’s Kitchen.
A própria camada, digamos, psicológica do protagonista é desenvolvida de um modo mais cabal e moldado, trazendo a um nó complicado as suas relações pessoais, as memórias das paixões anteriores, assasinadas pelo seu inimigo, Bullseye/Mercenário, o novo casamento, a vida profissional como advogado, os problemas inerentes a esse sistema, os inimigos de todos os níveis, as amizades e alianças, a sua relação com a seita de ninjas The Hand, e a consequente herança de toda essa seita, tornando-se o seu líder, os traumas e memórias de toda a sua história (quer dizer, ambos os autores, sobretudo Bendis, porque em primeiro lugar, é que pegou nessa massa de histórias e as formou enquanto memória activa da sua personagem), mas também os sonhos e fantasias do próprio Demolidor... E é neste desenvolvimento que se encontra o cerne do valor destes runs.
Um problema, mas esse inevitável no género, sobretudo das grandes personagens (grandes marcas) das grandes editoras (companhias), é que entraremos sempre a meio da história e se dela saírmos, sairemos sempre a meio. São estratégias de fidelização de público, claro, e é aí que se revela uma maior preocupação enonómica destas empresas (e destes géneros), colocada acima de outras (estéticas, etc.). É isso mesmo o que torna difícil a entrada de novos leitores que estivessem interessados em apenas ler uma história, e não sentirem-se na obrigação de conhecer 50 anos de história ou verem-se na obrigação de consumir dezenas de títulos, para poder apreciar uma narrativa. Mais, é isso o que torna uma determinada temporada de um escritor num determinado título interessante, mas logo depois derrubada pela desastrosa gerência de um próximo (os exemplos mais banais são os das mortes e ressurreições destas personagens, cuja carga dramática se esgota quando nos apercebemos não serem mais do que pontos de intriga e soluções baratas de comercialismo; neste caso particular, o arco que se seguiu, escrito por Andy Diggle, afundou o edifício que havia sido construído). Ou seja, não permite tanto leitores ocasionais como fãs (incondicionais das personagens) e não-leitores (que se negam a querer sequer conhecer uma história acima da média com aquela personagem). Em ambos os casos, estes dois escritores e a sua equipa de desenhadores, conseguiram construir uma narrativa relativamente estanque, e de estrutura clássica, satisfatória (apesar da de Brubaker continuar a de Bendis; e a de Brubaker ser agora continuada por outra equipa, e assim ad aeternum).
É preciso compreender (de novo?) que estas distinções se devem fazer apenas no interior deste campo da cultura popular, e deste género em particular. Não é a qualidade deste género e suas circunstâncias que tornam estas séries superiores intrinsecamente a outro tipo de abordagens a este campo de expressão – por exemplo, considerar que as suas histórias são “melhores” ou mais “bem esgalhadas” do que as de autores que se dedicam à exploração do quotidiano, do banal, do ordinário – ou necessariamente inferiores – porque não são tão encaixadas numa altiva e majestosa busca pela reinvenção do género, da linguagem, da expressividade pessoal, etc.
Por isso, apesar do aparelho comercial em que são criadas, e vistas na sua especificidade genérica, perguntamo-nos se não sera possível ainda assim, para cultores do policial, ou das potencialidades narrativas que os super-heróis podem criar, apreciarem estas duas correntes criadas por Bendis e Brubaker.

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