É inevitável que estratégias descobertas por grandes autores, no seio da sua experimentação e pesquisa holística, seja mais tarde transformada em mero tecnicismo por outros autores, o que não é proibido, mas diminui substancialmente a pertinência e a força dessa mesma estratégia, precisamente porque não o é. Repetimos, como uma fórmula: não é uma estratégia, é mero tecnicismo.
Este livro é, de uma forma resumida, sobre o concerto de estreia da 7ª Sinfonia de Shostakovich em Leningrado, no dia 9 de Agosto de 1942, dia em que Hitler havia jurado invadir a antiga Leningrado. A cidade estava sitiada pelas tropas nazis, esfomeada, com frio, moribunda, o peso da política de Estaline fazia-se sentir igualmente, e a última coisa que se desejaria fazer era um concerto de gala. Soldados passaram as linhas alemãs com a missão de trazer uma partitura do já então herói e mestre Dimitri Shostakovich, para que servisse como uma espécie de “música de resistência”, patriótica, da parte dos Sovietes face ao monstro Nazi. Os resquícios da orquestra conseguiram-se juntar, e no dia 9 de Agosto, sob o som dos canhões de defesa, os acordes fizeram-se ouvir pela primeira vez... Bien trovato, e pouco importa se historicamente não é totalmente verdade. Enquanto narrativa, é drástica, melodramática, rimbombante, tal qual os filmes soviéticos de propaganda feitos na época, de que, passe a publicidade, a colecção “Grandes Clássicos do Cinema Soviético”, da Midas, é um bom catálogo (Grigory Chukhrai, Mikhail Kalatozov e Elem Klimov [este último com Vem e vê, sobre o massacre de Khatyn, que o presidente polaco recentemente falecido iria comemorar]).
C]eka, o argumentista, e Joly-Erard, o desenhador, contam a história dos intervenientes neste episódio (uma jovem intérprete de Leningrado, os seus colegas de orquestra, o jovem soldado que atravessa as linhas com a partitura, os oficiais da cidade sitiada, os cidadãos em geral) representando-os como porcos. E é aí que surge aquela transformação de uma estratégia num mecanismo simples. Se em Maus, apesar de toda a controvérsia suscitada, Spiegelman tornava essa opção de representação numa necessidade e princípio ontológico da sua exploração (e à qual metia em causa de quando em vez no interior da sua narrativa), neste caso, qual será o propósito? Os alemães são representados, brevemente, igualmente como porcos. Não há portanto uma busca de diferenciação. Tratar-se-á de uma mera escolha estilística do artista, que usa a mesma linha noutros trabalhos? Joly-Erard confessa em algumas entrevistas (ver o seu blog) que não tinha a “energia” para desenhar seres humanos e que até certos aspectos mais violentos da história, como o canibalismo, acabam por ser menos gráficos desta forma. Mas será isso verdade? Não terá este autor responsabilidade de encontrar nessa representação um valor acrescido de sentido? Não seremos nós, leitores, livres de encontrar aí uma força que poderá não nascer senão das circunstâncias?
Por um lado, poderíamos encontrar nesta escolha como uma espécie de homenagem ao Triunfo dos porcos, procurando um denominador comum de representação e, no seu seio, a diferenciação moral entre eles: “alguns são mais que outros”. Por outro, poder-se-ia pensar num certo grau de desumanização patente pela violência da guerra... Todavia, quer pelo facto de se representarem momentos no “presente” (uma outra apresentação da 7ª Sinfonia em 2006, com os velhos músicos sobreviventes), com as personagens ainda como porcos, quer por se revestir todo o livro de uma espécie de neo-propaganda, da heroicidade russa face aos nazis (tantas vezes preterida em relação aos ingleses ou norte-americanos), nem uma posição nem outra “cola”. Fica-se suspenso na razão dessa representação animal.
Durante uma fase da sua vida, Shostakovich foi por necessidade financeira pianista numa sala de cinema; as suas improvisações eram de tal ordem que havia amantes de música que o iam escutar, independentemente da “fita” que estivesse a passar, já que o jovem músico não seguia de forma alguma as partituras medíocres que existiam como modelos. Uma das consequências dessa fase da sua carreira, ainda que alimentar, foi o ter-se tornado um pianista exímio, acima mesmo do virtuosismo que já revelara em criança. Estas informações servem-nos duplamente. Em primeiro lugar, diegeticamente: ajudam-nos a decidir sobre a identidade de uma das personagens que nos parecera relativamente misteriosa até um determinado momento. Pouco importa se historicamente é impossível ou apenas improvável, ou se realisticamente é pouco plausível. Em segundo lugar, porque nos garante que a dimensão da relação entre a música e a sua funcionalidade iluminará a própria estrutura do livro, a relação entre essa sinfonia e o propósito deste livro. A tal espécie de propaganda a que aventámos antes.
Shostakovich foi um compositor “oficial” da União Soviética, quer na escrita de música para filmes, heróicos, quer nos seus quartetos, quer sobretudo na relação pessoal que foi tendo com os circuitos estalinistas. Todavia, como todas as relações com esse tipo de poder, haveria sempre uma linha de dissensão. É bem possível que Lutte majeure (em francês, a 7ª Sinfonia diz-se de “ut majeur”) explore a dimensão propriamente musical, secreta para quem a não sabe ler, como nós. Lemos algures que o compositor explorava variações e repetições das notas D [Ré], Eb [Mi bemol], C [Dó] e B [Si], a transliteração em alemão – e na sua notação particular, diferente da portuguesa, herdeira da nomenclatura medieval – do seu nome. É bem possível, dizíamos, que existam subtilezas destas a explorar nesta sinfonia e, daí, neste livro. Está porém fora do nosso alcance.
O autor não se coíbe, apesar dessa dimensão de heroicidade do povo de Leningrado, e na sua entrega de corpo e alma, literalmente, para essa resistência através da música, de representar imagens alternativas à perspectiva oficial, e chegando mesmo a garantir aspectos críticos no episódio histórico: aponta-se a cegueira e prepotência de Estaline, ilumina-se o medo da polícia secreta do Estado, com orelhas e bufos por todo o lado, revela-se a incessante propaganda de estado, a terrível mortandade, a fome... e formas de a solucionar horrendas.
Mantemo-nos sempre a uma distância dessa situação toda, com estes personagens-porcos, mas a tensão está lá.
Nota: livro ofertado pela editora.
25 de abril de 2010
Lutte Majeure. Céka e Boris Joly-Erard (Casterman)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:18 da tarde
Etiquetas: França-Bélgica
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