19 de maio de 2010

Sai do meu filme. Tiago Manuel (Ao Norte)



O que se encerra num nome? Esta pergunta faz sentido quando nos deparamos com este livro, que podemos dizer ser o primeiro livro de narrativa com imagens assinado por Tiago Manuel, que se “despoja” do seu trabalho heteronímico anterior. Não é nenhum segredo que é Tiago Manuel o autor empírico, real e tangível de outros livros da mesma natureza (e que natureza tão diversa e díspar!) que surgiram sob os heterónimos de Max Tillman, Tim Morris, Marriette Tosel, Terry Morgan, Murai Toyonobu e Tom McCay. No entanto, se até à data jamais recorremos ao nome “real” do autor, é porque não somente essa evidência está patente na sua assinatura, literalmente, em cada uma das páginas, como pensamos que cada um desses trabalhos não lhe devem ser atribuídos senão de um ponto de vista biografista, historicista e sociológico. Em termos estéticos somente, de voz, de respeito para com a personalidade autoral, esses livros apenas pertencem aos nomes (e voz e rosto, mesmo que diluídos-transformados nesse exercício de projecção) que surgem nas suas capas. [veja-se a "nota sobre heterónimos" aqui]
Tiago Manuel assina outros trabalhos, usualmente de fotografia, ilustração e uma longínqua pintura, mas este é o primeiro livro editado com o seu nome (e que fará parte de outros dois – para já – que surgirão ainda este ano, repescando duas séries de trabalhos expostos em contexto galerístico, um em torno da figura de Dante, Psicopatias, na galeria Palmira Suso, e outro em torno d’O Marinheiro que perdeu as graças do mar, de Yukio Mishima, com Manifesto das Lâminas, no CCB). O aspecto mais surpreendente, ou bem pelo contrário mais expectável, é o facto de Sai do meu filme (também) ser auto-biográfico, ou de auto-ficção. O que se lê são confissões já sem máscara (mas não é uma “máscara” que se deve dizer frente aos heterónimos, não é bem isso...), do próprio Tiago Manuel, que visita a um só tempo a infância, o sonho e o desejo.
O livro está dividido em duas partes, se bem que a primeira possa ainda ser vista como uma falsa introdução, ou uma preparação textual para a narrativa principal. De facto, Sai do meu filme começa com uma série de cinco páginas intituladas “takes”, nas quais se apresentam pequenos contos textuais do que parecem ser experiências ou memórias do encontro com o cinema na infância do autor. No entanto, dessas cinco narrativas, relativamente encaixadas pela temática – os rituais dos Domingos, com “A missa da manhã, o almoço melhorado e a tarde de cinema no café” – centram-se sobretudo nos estratagemas do menino Tiago para escapar à missa e sua moral de batina, às traquinices que arreliam e baralham a mãe, e se centram na grande recompensa cinéfila, visto como provável único escape de um determinado peso à terra. Aliás, há como que uma sensação que a figura maternal é vista como uma força de conservadorismo moral e intelectual contra a qual o autor tem de lutar, com os instrumentos que lhe estão disponíveis. Há como que uma novela familiar, subtilmente tecida, dada a ver com pequenos pontos: um pai quase ausente mas que lhe é cúmplice, uma mãe austera, cheia de regras, que apenas parece estar ali para ser evitada ou confundida, as tardes de berlinde, cromos e cinema como o seu particular “aleluia” e das quais sente “saudades”. Essa camada confessional serve como intróito, dizíamos, à narrativa central de Sai do meu filme, a banda desenhada propriamente dita, mas que veremos ter elos de ligação com estes “takes”.
O que vemos é o seguinte: uma pequena personagem – o “pequeno duende” – que parece habitar por entre o estirador do artista “escorreg[a] pelo desenho abaixo” e vai dar a um pequeno limbo, onde encontra um “palhaço”. Juntos, tentarão encontrar o caminho de regresso do duende, mas isso fá-los-á atravessar um onírico panorama, à la Slumberland ou Yellow Submarine. Esta acção é relativamente linear em termos narrativos, não apresentando tramas complexas, reviravoltas ou desarranjos temporais. É até simples demais. A razão disso é simples também. Não se podem ler estas personagens nem esta sua travessia como algo de superficial.
A identificação das duas personagens poderá ser tentada da forma seguinte. Aquela que assume o nome e contornos do “duende” pode ser vista a partir de uma perspectiva duplamente popular, inscrita no território específico da banda desenhada, e erudita, com raízes no berço da nossa cultura, no cadinho grego clássico. A primeira raiz enleia-se em figuras cujas origens se encontram ora na história da animação (Cohl, Palmer, Blackton) e numa obra-maior da banda desenhada portuguesa, O Boneco Rebelde, de Sérgio Luiz. Em todas essas referências, encontramos um autor na tarefa de criação de uma qualquer personagem, a qual, súbita e magicamente, se rebela contra o próprio autor no interior da ficção que habita e ganha uma autonomia e vida própria (parte dessa meta-ficção, evidentemente). Mas essa linha apenas se revê em Sai do meu filme à superfície da narrativa. É num outro nível, mais profundo, que encontramos a perspectiva erudita, que tem a ver com o carácter demonológico das criaturas de sombra (de que as tintas deste livro são uma continuação, por via das artes visuais fundadas no mito de Plínio), os daimons, uma subtil emanação de uma criatura mediadora e benevolente. Este duende não é mais, portanto, do que uma projecção, sombra, elucubração do ego, do próprio autor, talvez do seu eu-infantil que fora introduzido no início, talvez de um eu-onírico (reduzido a um “nada”, a um Nemo, o qual tem acesso exclusivo ao mundo do lado de lá).
É a mistura de sonho, mundo baixo das sombras, dos mortos, da ficção, à qual ele desce, que nos permite tentar a próxima leitura: o palhaço é também um daimon, mas desta feita figura protectora, equivalente ao Virgílio de Dante. Uma figura tutelar, que aqui apenas mais tarde é revelada com um rosto e nome próprios, mesmo que de fugida, como soe nos sonhos, cujo sentido apenas se adivinha no imediato momento antes da sua dissolução (a vigília, o despertar). É o palhaço quem guia o duende pelo caminho de regresso, que lhe explica a paisagem e os seus habitantes. E que o abandona, mal o duende chega a um ponto em que já regressou. Esta associação a Dante não é de todo desprovida de sentido, se notarmos, mesmo que superficialmente, que a descida das personagens ao mundo onírico se faz passando por vários “círculos” de personagens que “pecaram” em relação aos sonhos: os medrosos, os pesadélicos, os verborreicos (creio estar preso com um pé neste círculo), etc. Tiago Manuel estabeleceu um diálogo importante e musculado com a obra de Dante com a sua exposição Psicopatias, a qual será alvo de uma edição em breve, como dissémos, mas ainda que em Sai do meu filme esse trabalho seja “simplificado” pela via do aparente instrumentário infantil, os ecos são por demais evidentes.
Mais importantemente, deveremos pensar na associação subtil deste palhaço àquela que se revela no exacto momento da sua desaparição: Charlot, que de resto julgamos poder ser aqui figura metonímica de Keaton e outros gigantes dos primórdios do cinema-espectáculo, primeira maravilha de toda uma geração de amantes do cinema, na qual se conta Tiago Manuel. Pensemos naqueles versos de Inferno, em que Dante confessa a Virgílio, reconhecendo-o e apercebendo-se ser esse o seu cicerone nos círculos baixos: “Pois tu és o meu mestre, o meu autor;/és tu aquele só de quem tirei/o belo estilo que me deu valor” (Inferno I, 85-87). Isto é, há uma apropriação de uma figura morta no tempo deste autor, transformada num mentor, tutor, acompanhante no reino das sombras (equivalente quer do mundo dos sonhos como do da morte, uma vez que em ambas encontramos as “almas”, sinónimo de “sombra” se pensarmos nos contos e novelas de Chamisso, Andersen, Hofmannsthal, e até na figura de Peter Pan). Mais, são os contornos dessa personagem que informam o trabalho, desejado, do autor que lemos agora. Neste caso, e tal como é revelada no fim do livro, essa figura é a de Charles Chaplin, ou melhor, a sua personagem icónica, Charlot: um palhaço, sem dúvida, mas uma muito especial figura de um cómico dramático, sofrido e profundamente subtil e atento à crítica social, económica, política e até filosófica do seu tempo. Confundir os filmes de Chaplin com “fitas para rir” (ou somente isso) é errar o alvo por centenas de metros.
O duende é diferente de Dante, no sentido em que não reconhece o seu próprio Virgílio. Apenas vê um palhaço, simples, de circo. Talvez queira essa visão demonstrar ainda a perspectiva infantil, natural, sobre a qual não há nada que ter vergonha e que pauta os laivos de nostalgia, nada lamechas porém, de Sai do meu filme. Nemo e Flip, sem a maldade do último. Só mais tarde é que o Duende reconhece a figura, os seus verdadeiros contornos e, como na experiência fílmica e do sonho, no preciso momento da sua dissolução (sair da sala de cinema, acordar). E tal como Virgílio subitamente desaparece (Purgatório XXX, 49 e seguintes) com a chegada de Beatriz, também o palhaço-Charlot desaparece antes do surgimento da terceira figura feminina deste livro, Fátima. E atentemos às moventes palavras de Dante, no preciso momento da desaparição de Virgílio: “...voltei-me à sinistra [esquerda] com o fito/com que à mãe o menino corre e clama/quando tem medo ou quando está aflito,/...” (idem, 43-45). Esta ligação à figura materna, protectora, contrasta com as palavras dos “takes”, sem dúvida, mas ao mesmo tempo permite, e ainda com a imagem da mãe-gaiola da cena onírica, uma reconciliação final.
Esta ligação dupla a linguagens que se inscrevem numa tradição popular e noutra erudita ganha substanciação pelo próprio facto descritivo deste objecto: “livro ilustrado”. Este tanto poderá ser entendido como o “livro ilustrado” tout court – que nasce com o próprio advento do codex, ganha uma inflexão pelo território do infanto-juvenil, do pedagógico e do enciclopédico, ganha um terreno próprio no século XIX e desemboca em inúmeras experiências no século XX, naquilo que em inglês muito claramente se designa por picture book – como com o “livro de artista” – cuja raiz mais forte está nas vanguardas russas, e aponta para objectos-livro totalmente concebidos e estruturados pelo seu autor único, como forma de expressão da “política de autor”. Não é inaparente que Tiago Manuel funde, de certo modo, uma linguagem muito específica, quase até uma nova linguagem, mas é uma linguagem que não nega a sua história anterior possível, não repudia a sua possível inscrição retroactiva nesses dois terrenos, aparentemente antagónicos.
É possível que Tiago Manuel também se sinta na “metade da sua vida”, ao ponto de lançar uma sua sombra numa catábase muito pessoal. É bem possível ainda que a colação de informações das suas circunstâncias de produção iluminassem alguns dos princípios de interpretação: este livro é o corolário de uma relação muito íntima com a associação Ao Norte, de Viana do Castelo, o seu 15º aniversário, e os 10 anos dos Encontros de Viana, dedicados ao cinema; o facto de que Tiago Manuel, através dos seus heterónimos, foi construindo um coerente e atento público, talvez lhe possibilite o retorno à sua própria pessoa; o lançamento centrífugo dessas outras “pessoas” talvez lhe incuta o desejo de operar uma expressão centrípeta, de retorno, de nostalgia, isto é, etimologicamente, “as feridas do regresso”. Não abordaremos directamente estas questões, mas são elas que nos permitem o próximo passo, e que tem a ver com essa dor.
Há um aspecto visível em Sai do meu filme, se colocado lado a lado com a restante “obra”, o corpus dos seus alter egos. Este é o livro mais suave, pelo menos aparentemente. Estão lá os mesmos dedilhados e texturas; estão lá os mesmos objectos metafóricos que fundem seres animados e coisas; estão lá as cores baças mas carnais; estão lá as tiradas de uma apurada ironia. Mas há uma maior concessão à narrativa (ainda que haja desvios), e ao acompanhamento das personagens (se bem que haja variações mínimas internas significativas), e a uma entrega à cor que parece prometer menos escolhos (ilusão). Recorda Topor, de quem há ecos, na sua vertente mais doce. E se falámos de catábase, é porque se sente aqui uma descida. Uma descida, para já, à infância do autor. Este é um livro abertamente autobiográfico, pelo menos naquela primeira parte dos sucessivos takes textuais. Mas descida também aos seus mecanismos de criação, desvelando através deste livro o modo de funcionamento e construção da sua obra heteronímica: encontramos vários dos objectos-metáfora que vivem nas obras de Tim Morris, a parcimoniosa ainda que irónica prosa de Marriette Tosel, as cores baças da infância revisitada e deixada a uma distância segura de Terry Morgan, os pequenos descentramentos das personagens de Tom McCay. Para chegar a todo o lado, de outro modo.
Tais como tantos outros livros que se poderiam coligir a esta leitura – e fomos dando conta das tradições nos quais os podemos encontrar –, também Sai do meu filme faz advir aquele fenómeno típico do livro ilustrado de apresentar imagens estáticas, separadas, mas que dada a sua estruturação em série, espoleta o “horizonte diegético” de que fala Barthes (citado no artigo anterior, sobre os posters). O famoso semiólogo discute o cinema em Imagem, Música, Texto, mas são vários os elementos que nos permitem auferi-los e reempregá-los nesta outra arte. É no interior de cada imagem que se nutre a potencialidade da acção e do significado, e no choque entre elas, como átomos, que se gera a energia total. Não quero desta maneira vir a concordar com a ideia de uma “terceira imagem”, ou “imagem intervalar”, no sentido em que entre cada duas imagens, no seu intervalo, existiria uma terceira imagem invisível criada pelo leitor-espectador, pois essa descrição levaria à criação sempre de novos intervalos e sucessivas novas terceiras imagens, ad infinitum, até se dissolver qualquer especificidade entre esta linguagem e a percepção da realidade. Mesmo enquanto exercício mental, abstracto, necessariamente único a cada leitura individual (mesmo no interior de um só indivíduo, o qual sempre pode fazer várias leituras), essa promessa esbateria a natureza de relação imagem estática-leitura dinâmica que é o seu fundamento. O que sucede, a meu ver, é uma construção de desequilíbrio até certo ponto, lançando o leitor-espectador num intervalo onde nada se decide, onde se encontra uma espécie de gravidade zero, de abertura ao puro virtual, e depois caímos numa decisão. É essa dinâmica, esse cinetismo, que nos impele à sua contínua leitura, a não nos perdermos na sua leitura-interpretação (isto é um pouco pleonástico, já que a leitura é interpretação). Todavia, é precisamente identificando os momentos de crise dessa mesma passagem que notaremos as forças de um autor. Isto é, são os momentos ou pontos onde continuam a ecoar o desequilíbrio ou onde nenhuma decisão pode alguma vez ser tomada, que nos servirão de plataforma de pesquisa dos sentidos mais subtis e que tornamos densos, mais ocultos que arrancamos à luz do dia, mais obtusos que tornamos mais transparentes. Ou pelo menos tentamos.
Nessa óptica, foquemos a nossa atenção no momento mesmo da metamorfose – nova transformação ou desvendamento? – do palhaço em Charlot. Tão só ele se “despede” do duende, que este também se funde na colcha de estrelas, e com o virar da página, desaparece (exceptuando o seu último papel no colófon). São várias as páginas nas quais as composições parecem prometer uma estruturação clássica de banda desenhada (dita retórica por B. Peeters) para fazer pequenos desvios e desequilíbrios. São vários os momentos em que os sentidos são construídos pelas palavras nas legendas, deixando as reacções ou fechos de acção na boca e gestos das personagens. A viagem dos dois protagonistas por esse mundo não obedece totalmente a regras de lógica: quando é que entraram no comboio-serpente?, visitam todos os espaços que nós próprios vemos ou não?, qual a relação entre eles e o “mundo do artista”, onde os brinquedos se encontram desarrumados?
A derradeira cena, do gato culpado com as vestes do duende, são um mecanismo mais ou menos expectável das narrativas oníricas, que sempre têm de revelar no seu fim o retorno absoluto ao mundo da vigília, ainda que deixem pistas para a sua realidade. Recordemo-nos do gato de Alice no fim de Do outro lado do espelho. No entanto, as vestes, como disse, são prova do real da experiência do duende. O que quero dizer com isso é que mesmo tendo em conta a falta de palpabilidade da experiência do sonho, mesmo tendo em conta que o sonho de celulóide se dissipa de imediato ao ligar as luzes, a memória dessas mesmas experiências é tão real e significativa quanto a das experiências ditas reais. No plano do subjectivo, todas elas concorrem para a sua construção. Sai do meu filme faz concorrer memórias de infância, a experiência do cinema, o sonho, a projecção autoral, o desejo, num mesmíssimo plano (o do livro, o das imagens), acusando essa mesma ideia e posicionamento. Molda aquele movimento que Ruy Belo diz num verso “inconcebíveis e por isso concebíveis”. Onde tudo se suspende e tudo se pode projectar, tudo se forma.
Uma última palavra ainda a um “material complementar”. Por ocasião do aniversário da Ao Norte, dos X Encontros de Viana, e do duplo lançamento deste mesmo livro e de O Sangue por um Fio, de Sérgio Godinho, e ainda a exoposição dos originais de Sai do meu filme, uma brochura vogava pela cidade, que aqui reproduzimos. Não se tratará este flyer de um desses efémeros e perecíveis materiais que aumentam a “portabilidade” de que falava Victor Burgin, que citámos a propósito do poster de Manuel Tiago para Ruínas? Aqui temos uma pequena banda desenhada, um encontro entre trailer, teaser e intróito externo a todos os encontros possíveis, sob o signo do cinema, e que nos prepara para a voz autónoma e ortónima de Tiago Manuel (auto-representado nesta mini-história, primeiro no seu estúdio, logo depois numa hipotética sala de cinema) de Sai do meu filme.
Perguntámos ao início o que haveria num nome. Para terminar, perguntaremos: o que há num título? Afinal, será Sai do meu filme um título exacto, ou irónico? Não será antes um disfarçado convite a entrar e participar nesse filme? Ou será antes, como na colecção que o autor dirige, uma ideia de convite a procurarmos o nosso próprio filme?
Nota final: agradecimentos a Tiago Manuel, pelo envio do livro. E ao Silvestre, pela participação no vídeo, chamado pelo Calvin.

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