6 de agosto de 2010

Racines. Pierre Duba (Six Pieds Sous Terre)


(na continuidade do texto anterior) O livro de Duba, pelo contrário, é um livro cuja presença física e impacto gráfico se faz sentir desde as primeiras páginas (e até antes, pelos materiais-satélite). O programa narrativo pretende-se suspenso, para que a matéria visual passe à frente. Que deslize, lenta e espessa, como mel.

No entanto, permitam-me começar pelo dessarranjo dos textos “iniciáticos” (não, não é mau uso da palavra: é que alguns destes textos não se propõem simplesmente como apresentação, mas como estatutário de leitura). Quer um texto de introdução na badana quer um posfácio pretendem descrever o livro de Duba como um livro que não contém uma narrativa – “[Duba] deixa-nos, ao longo das cenas, possibilidades narrativas, movimentos, acções que se encadeiam e se misturam em turbilhão até ao seu inelutável fim”. Uma leitura apressada levaria eventualmente a concordar com essas palavras, e a pensarmos que estamos perante uma cadeia mais ou menos livre de associação de ideias visuais estruturadas na sequencialidade própria da banda desenhada) que em nada preveria a organização narrativa. Numa exposição muito recente de desenhos de Jorge Queiroz, lê-se no catálogo como o autor cria “Exuberantes ficções alheias a qualquer narrativa ou guião”. Mas se no caso do artista português a acumulação de materiais e técnicas, figurações e modos do desenho concorrem de facto para um estilhaçamento dos elementos mínimos da narrativa (por exemplo o “equilíbrio, desequilíbrio, reequilíbrio” de Brémond), no caso de Duba não se pode dizer o mesmo. A ausência de um texto contínuo, descritivo, ou até mesmo revestido de uma carga poética significativa não implica necessariamente a ausência de uma narrativa. E existem elementos contínuos e representacionais em Racines que nos permitem – sem quaisquer incertezas ou hesitações – avançar numa narrativa: temos um homem, uma máscara, uma criatura “assustadora”, um quarto que se enche de água e cuja enchente o metamorfoseia, uma passagem a um outro nível de existência, uma queda no “informe” (já lá iremos)... Perante experiências como The Cage, de Martin Vaughn-James, ou algumas das experiências de Le Coup de Grâce ou Abstract Comics, encontraremos fragmentações, esboroamentos, demolições, ou pesquisas de alternativas ao programa narrativo da banda desenhada, mas não neste livro de Duba.

A força de Duba está porém na beleza visual e material que explora essa história que nos conta, ainda assim dificilmente reduzível a uma sinopse clara (e deverão ler o texto de Domingos Isabelinho para encontrar pistas decisivas dessa beleza e fascínio). O protagonista de Racines aparenta ser um escritor, e um escritor em crise: o facto de ser retratado de costas, ou com o rosto incompleto, no centro de uma pilha de papéis acumulados (rascunhos eliminados?), e depois com a boca apagada por um traço branco leva-nos a pensar na ideia das palavras falhadas, na impossibilidade de comunicar com rectidão a poesia que se deseja expressar. Depois de deixar manuscrito (lápis sobre papel) a ideia de “matar alguém que existe em mim mesmo”, uma imagem mostra o mesmo protagonista cindido, após o que monta uma máscara ritual, selvática e tenebrosa, com a qual parece desencadear duas acções: conjurar uma criatura fisicamente aparentada com a máscara e fazer com que o quarto se encha de água caída de um radiador (e é magnífica a forma como se adia este conhecimento, suspendendo-nos como a gota na incerteza da representação). Depois disso, talvez se trate de uma fuga ou de uma viagem, ou de uma transformação do protagonista.

É preciso dizer que existem citações espalhadas ao longo do livro que são colhidas de um livro de poemas do poeta norueguês Tarjei Vesaas (que desconheço e penso não estar traduzido em Portugal). O “monstro” conjurado vomita sobre o protagonista letras (manipuladas digitalmente), letras as quais foram um turbilhão que surgirá bastas vezes ao longo da “aventura” (a palavra não nos parece descabida). Aliás, há letras que se escapam das folhas de um livro lido pelo protagonista, há letras que flutuam no ar e nas águas, há letras vomitadas pelas criaturas que vão surgindo, há letras que coalescem em nuvens abafadoras, há letras que rondam e se transformam no pó que ocupa todo o plano das vinhetas e das pranchas do livro, como se elas pudessem invadir totalmente, ameaçando-a, a obra do próprio Duba (tratar-se-á assim de uma “angústia da influência”?).

Estas indecisões e ligeireza (no sentido de súbito, inapreensível, mutável) dos sentidos impedirão, então, uma leitura mais limitada e regrada (da parte do crítico), e consequentemente a limitação de uma abertura livre do leitor (dito comum)? Não. Mas penso que a promessa, logo à partida, de total liberdade tende a confundir o que significa uma leitura/interpretação. O conceito de Umberto Eco de “obra aberta” é bastas vezes citado, mas as mais das vezes desvirtuado no seu propósito. Eco pretendia apontar para uma certa descentralização permitida, ou criada, pelas obras de arte contemporâneas, que as libertavam do espartilho ora proposto pelos próprios autores ora imposto por alguns dos seus leitores, usualmente aqueles que exerceriam uma certa autoridade (a Academia, portanto, ou as Ordens, Guildas, etc.). Num outro escrito mais tardio, intitulado Interpretação e Sobreinterpretação, Eco como que procuraria corrigir as más apreensões desse seu conceito. Para além da intenção do autor (difícil de determinar e muitas vezes enganadora) e da do leitor (eventualmente pautada por interesses extra-literários), existiria a única “intenção” passível de interrogação verdadeira e permanente, a saber, a da própria obra.

É nesse sentido que se terá de caminhar. Trata-se menos de querer impedir a interpretação livre de um qualquer leitor, mas desejar que esse leitor exerça a sua liberdade sobre aquela obra em particular, e não empregá-la, numa falsa ideia de liberdade, como trampolim para chegar a um fim pressuposto. A interpretação deverá criar-se sobre algo existente, elementos presentes, analisáveis, objectiváveis e partilháveis, e não meras impressões vagas que apelam a uma ideia de sensibilidade superior (da parte do crítico, do professor, etc.). Mesmo que estes elementos sirvam para auscultar os limites do analisável, para perscrutarem as zonas abissais do silêncio, dos não-ditos, conseguindo erguer instrumentos com uma força de pressão suficientemente forte para arrancar algo de concreto do “buraco negro” dessas zonas indescerníveis das obras artísticas e que fazem delas a ressonância fulcral e viva que faz da arte arte. Como um voo de papagaio de papel, cuja elegância apenas é possível pelos movimentos gráceis mais seguros que a mão exerce sobre o fio. É preciso prendê-lo para que voe. Liberte-se o fio e o voo é totalmente livre, mas cedo significará a queda ou a perda.

Para além da influência literária directa e citada de Vesaas, uma outra eventual fonte, ou pelo menos outro cotejamento possível em torno das afinidades, é entre a viagem final do protagonista de Duba e o Virgílio de Broch. No romance do escritor austríaco, A Morte de Virgílio, que visita os últimos dias do poeta latino em Brundisium, o último e quinto capítulo, intitulado “O regresso”, distintamente curto mas densíssimo (quase cinquenta páginas compostas por meia dúzia de parágrafos) e sob o signo do elemento do “éter” (depois dos quatro elementos fundamentais), esse capítulo, dizíamos, retrata as impressões mentais de Virgílio num espaço-tempo que já não é o da vida mas ainda não é o da morte. Encontramo-nos com ele num espaço intervalar alongado em que tudo está suspenso e aberto e passível de metamorfoses mútuas. De certa forma, aquelas ligações entre percepções, memórias, ilusões, sonhos, reflexões, a que aventámos a propósito do livro de Piquet, encontra na prosa intricada e belíssima de Broch a mesma redução (não é a palavra certa; transfiguração absoluta?, essencialização?) a um mesmo heteróclito plano. Nesse superno capítulo, Virgílio mergulha no absolutamente informe: aquele fundo do universo onde se exerce a violência de todas as formas abertas umas às outras, a revisitação possível a todos os níveis da existência, do mineral ao vegetal, do animal ao humano até chegar ao espírito, e finalmente o Verbo, “inconcebível e inexprimível pois estava para lá da linguagem” (última frase do romance). “Informe” não significa “disforme”, mas sim “passível de todas as formas”. O livro de Duba parece por vezes querer explorar, no interior dos seus instrumentos, esse fundo informe. A presença de águas turvas, de sombras, de letras flutuantes, de sangue, parece concorrer para essa ideia. A transformação dos personagens dúbios, a presença de uma boneca infantil que parece enviar para um momento antes das palavras, as palavras do autor que apontam para sinestesias, as citações (supomos) de Vesaas que falam de palavras que não conduzem à compreensão racional, são ainda outros elementos do mesmo movimento.

No mesmo capítulo de Broch, fala-se dos olhos como “estrela impossível de perder”. É por eles que tudo penetra e tudo se compreende, mesmo que não passe pelas palavras. Quando Augusto pergunta a Virgílio qual o objectivo da sua poesia, o poeta responde ser “o conhecimento da morte” e, mais à frente, explicita ainda mais: “fixar a vida, para nela encontrar a alegoria da morte”. No momento da passagem derradeira de Virgílio, são os seus olhos e não as palavras – apenas as de Broch tentam moldar/traduzir/criar as impressões do poeta – que auscultam o informe. Racines quer dizer “raízes”, claro, e há uma óbvia “descida” (catábase?) na ficção de Duba: um autor que se deixa levar por águas que lhe invadem o espaço após ter colocado uma máscara e que através de uma barca alcança um mundo subterrâneo, oculto, atrás do tempo (mostrado aqui na imagem claríssima de se esconder do outro lado do vidro de um relógio de sala). Esse fundo subterrâneo é uma ilha (a de Böcklin?) embrenhada e vários signos mais ou menos óbvios e sequenciais: uma torre, um novelo, uma boneca, uma hoste de coelhos, uma floresta embrenhada, um mineiro escavando (raízes, precisamente), uma metamorfose e um monstro de pedras ou troncos (um golem?), uma tensão entre a violência e o sexual (Eros e Thanatos), uma acção de despejo. Como alguns filmes de Bergman, os símbolos não têm vergonha de se mostrar o mais claramente e despojados possível, pois eles sabem que por mais significados “fechados” e “de manual” que lhe possam ser associados e empregues (como pela crítica, claro), haverá sempre uma margem que escapa ao programa racionalista.
A força de Racines não está tanto na destruição da narrativa, que não acontece, mas sim na criação de uma indiscutível narrativa, descritível, elementar, mas cujos objectos permitem variadíssimos níveis de implicações, que nenhuma leitura poderá jamais esgotar.

Les enfants de l’envie. Gabrielle Piquet (Casterman)


Um dos exercícios mais producentes nas abordagens críticas a seja que objecto for é o da comparação, o da análise dupla a um mesmo tempo, mesmo que essa comparação seja apenas tornada possível pelas circunstâncias superficiais e nada mais levasse, ou até permitisse, a que esse cotejamento se pudesse dar.
Os dois livros que aqui trazemos não poderiam parecer mais afastados um do outro. Seguramente que era possível ainda encontrar outros exemplos de trabalhos que estivessem afastados ainda mais, desde que num mesmo espectro. Neste caso, o espectro comum é o do campo artístico e social conhecido por “banda desenhada”, e ainda no seu interior uma banda desenhada que tem algum tipo de programa narrativo, de exploração da expressividade dos desenhos como elemento concorrente na criação de sentido, de fundação de actos de leitura, e por aí adiante. Estamos, portanto, quer num caso quer no outro confortavelmente encaixados em mais do que alguns dos factores correntes deste campo. Por outras palavras, não será confuso imaginar que ao entrarmos numa livraria ou numa biblioteca que encontraríamos estes dois livros na mesma secção generalista, que ao folhearmos antes da leitura os coloquemos no mesmo mundo.
Se quiseremos acreditar na redução, mesmo que seja apenas para os efeitos deste momento, que a banda desenhada é um encontro ou compromisso ou equilíbrio entre uma parte da narrativa – “contar histórias”, mesmo que se procure fazê-lo através de imagens – e uma parte da imagem – explorar as suas capacidades expressivas, mesmo que estruturando-as numa narrativa – o livro de Piquet parte da primeira parte, tal como o de Pierre Duba parte da segunda. Em termos brutos, são estas as duas grandes tendências que se poderiam eleger como os gestos inaugurais deste campo, se bem que o da narrativa, o da legibilidade, seja bem mais visível e premente. Claro está que existem outras forças em jogo, desde as do design às da associação comercial, da pesquisa poética à exploração expressiva dos materiais, mas fiquemos por estes dois campos mais imediatamente perceptíveis. Por exemplo, no interior do mercado francófono, em que Piquet e Duba se inscrevem, estas duas tendências são notáveis quer em trabalhos crassamente comerciais e de baixa qualidade (por exemplo, as famosas séries XIII e Le Tueur vivem mais pela narrativa do que pela imagem, ao passo que muitos outros autores se cultivam mais pelo pin-up do que pela qualidade literária), quer em círculos mais alternativos e/ou independentes (como no caso de uma dicotomia que se poderia criar entre os autores originais de L’Association, cuja pesquisa está mais do lado da narrativa, da construção e desenvolvimento das personagens e implicações emocionais, e os da Fréon, mais dados à experimentação visual... claro está, essa equação é incompleta, ou mesmo errónea, se der a entender que os primeiros autores não procuram soluções de imagem – com David B., Trondheim e Sfar isso é impossível! – e que os primeiros nada querem saber da narrativa – como desmentiriam os projectos de Frédéric Coché, Deprez e Fortemps).
Não estamos, pois, perante um livro em que o desenho seja colocado em segundo plano, procurando apenas uma básica utilização narrativa, um papel subsumido a algo que lhe é exterior, ou coisa que o valha. É tão simplesmente um reequilíbrio de forças, e a maior, em Les enfants de l’envie, encontra-se na sua narratividade. O desenho de Piquet é feito de um modo tão delicado – apenas linhas que servem para moldar as personagens e os espaços – , e ainda aliada a uma potencialidade de registos vários (alguns dos quais análogos na forma mas não no papel dos “chibi” da mangá), que recorda na verdade toda uma série de exercícios formais da animação mais estilizada, onde a linha impera (Foldés, Deitch, Cavandoli, McLaren, entre muitos outros). Mas no campo da banda desenhada/ilustração também tem os seus parentes diversos: Gébé, Feiffer, Sempé. Mas nada de nervoso; é algo de plástico, redondo, maleável. Uma assinatura elegante. É como se fossem apontamentos de estruturas suficientemente claras e móveis para o transporte da novela em si. Esta visita um tema relativamente “mudo” nas letras francesas, mas muito premente noutros locais do mundo: a herança que a estadia das bases militares norte-americanas, depois de um conflito, deixou e cujas repercussões se fazem sentir a nível social, cultural, político mesmo, mas sobretudo, de forma mais emocionalmente envolvente e dolorosa, em termos de filhos feitos, sejam eles admitidos ou bastardos.
O livro de Piquet na verdade explora um segredo. A personagem principal, um jovem artista da cidade provinciana de Laon, vive obcecado com a ideia da “América”, ou melhor, uma Nova Iorque que conhece mais através dos dispositivos imaginários a que sempre teve acesso, passando pelo cinema, claro está, mas sobretudo pela memória que lhe foi, a um só tempo, incutida e ocultada pela mãe, uma vez que ele é supostamente filho de um tal de “Henry”, soldado norte-americano que por ali passou e se envolvera com a sua mãe. Dessa forma, Basile – uma mancha negra que atravessa visivelmente todo este mundo gráfico de estruturas frágeis de vidro e linhas – encontra na experiência de muitos outros rapazes da sua terra uma forma de inscrição, uma espécie de irmandande entre bastardos e abandonados, e, dessa forma, uma ligação forte com o factor que mais importância dera àquela terra. Na verdade, o segredo familair revelar-se-á bem mais complicado, novelesco, e bem mais doloroso para a mãe, mas esse fantasma tem um peso sobre Basile que não é negligenciável. Na sua vida adulta, o “agora” deste livro – apenas acedemos a todas as outras informações através de analepses ou de projecções falseadas –, as experiências de Basile aumentam-lhe a ansiedade, que se repercute na maneira como se se relaciona com as mulheres, como age sobre a sua arte (telas e telas sobre paisagens urbanas nova-iorquinas), e as brevez amizades na cidade, levando-o cada vez mais perto da resolução, que se desvenda como um tremendo desvio e derrota de todo o imaginário de uma vida. Mas, ao mesmo tempo, essa crise e trauma permitir-lhe-á dar início a um outro caminho alternativo a todos os níveis, eventualmente mais feliz.
Essa flutuação livre de recordações de várias personagens, memórias reconstruídas (nunca a partir de uma perspectiva interna às outras personagens, nomeadamente a mãe de Basile, mas construídas a partir das palavras ditas por elas a Basile, que as molda a seu modo), projecções partilhadas pela população local, imagens “enciclopédicas” (retomo um termo de Fresnault-Deruelle) que parecem querer trazer um qualquer grau de “veracidade”, ou até mesmo de “documentário” à narrativa (mostrando imagens que poderiam ter sido colhidas de fotografias ou documentos de outra espécie), vive em Les enfants de l’envie pela presença de sobreposição dos planos de composição. Independentemente de se tratarem de corpos distintos, de duas figuras ocuparem um primeiro e um segundo planos, de existir uma vinheta analéptica antes ou depois de uma no presente da diegese, ou haver uma projecção imaginária sobre um plano que corresponde à realidade ficcional, poderá dar-se o caso de vermos as linhas dessas mesmas figuras sobrepostas umas sobre as outras. Se num momento anterior às experiências e permissividades gráficas contemporâneas apontar-se-ia esta estratégia como apenas possível num momento de construção, rascunho, etc., ela hoje ganha direito de cidadania como texto final e poderá revestir-se com vários significados: continuidade da matéria gráfica, independentemente das diferenciações a nível narrativo; exploração dos elos contínuos entre percepção da realidade, memória e projecção imaginária, tudo parte da mesma coalescência da experiência humana; modos de lançar os pequenos elos narrativos possíveis entre esses níveis diferenciados; amalgamação das camadas da vida, ou melhor, vida propriamente dita.

Cent pour cent (Cité International de la Bande Dessinée et de l’Image)


Uma outra exposição foi organizada pelo reformado CNBDI – o original, francês, que faz jus ao seu nome de facto – e segundo um modo muito curioso de revisitar e ponderar a história (e a memória!) da banda desenhada: disponibilizando-se exactamente 100 pranchas/arte original pertencentes ao espólio daquela instituição, convidaram-se outros tantos 100 artistas a trabalhar contemporaneamente para as reinterpretarem como bem entendessem. Como reza a apresentação do projecto, “um verdadeiro manifesto sob o signo duplo da memória e da criação contemporânea”.
A questão principal não está na selecção em si das pranchas, que apenas poderia emergir daquela existente no espólio, nem sequer nos artistas escolhidos. O processo é certamente bem mais complexo do que aquilo que se substancia no livro em si: convites não aceites, desafios por cumprir, oportunidades perdidas, más interpretações, falhas de comunicação... que sabemos nós? Poderão encontrar pistas dessas noções no discurso de Jean-Phillipe Martin, comissário da exposição, aqui. Assim sendo, apenas poderemos falar daquilo que se apresenta efectivamente em Cent pour cent.
Não há praticamente época histórica ou pólo de produção, género ou estilo que não seja revisitado (se bem que 100 é um número que automaticamente deixe muita coisa de fora, considerando que o museu não contém exemplos provindos de alguns países que teriam algo a mostrar de interessante, como Portugal). Há pranchas de todos os azimutes. Quanto aos autores que “respondem”, vêm também de variadíssimos países (há uma incidência maior nos francófonos e norte-americanos, como não poderia deixar de ser, mas há uma presença substancial de sul-coreanos, o que mostra ser uma cena particularmente activa na sua internacionalização e processos de contacto), estilos e escolas... Há casos de autores homenageados que também participaram como homenageadores. É o caso de Gilbert Sheldon, que reinterpreta o prazer que tinha ao ler as tiras subtilmente subversivas de Beetle Bailey/Recruta Zero de Mort Walker para o reintegrar na subversão mais aberta dos seus próprios Freak Brothers, e tem uma história retomada/continuada por Ana Miralles; ou de François Schuiten, que “continua” uma prancha de Cuvelier, e tem uma das suas reinventadas por A. J. Gonçalves; ou ainda Killofer, recriado por Kim Dae-Joong e inquirido por Ruppert & Mulot, mas que reinscreve os textos de Aristophane numa interpretação sexual da tensão original. Há ainda os casos das amizades directas ditando os diálogos possíveis, como Trondheim sobre David B., Lécroart sobre Trondheim.
Seria extremamente produtível e interessante transformar este catálogo numa plataforma de discussão histórica, patrimonial, teórica, filosófica e estética da banda desenhada. Aliás, o documento a que chamámos a atenção no início apresenta uma espécie de tipologia – as secções da exposição - dos trabalhos propostos na exposição (olhares cruzados, diferenças, teatros de papel, de um continente a outro, risos e sorrisos, continua, companheiragens, lições de desenho, lembro-me, história, tentação da prancha, um olhar moderno), que convidamos a ler. Tentar compreender a pertinência, por exemplo, de cada uma das reintepretações. Existe um número reduzido de autores que infelizmente partem da ideia de que são capazes de “melhorar” a prancha original, procurando aumentar a história, verbalizar o que não era dito, e acaba por surgir um exercício de fraqueza. Há ainda aqueles autores, também poucos, que dão apenas um passinho em relação à influência, refazendo a história com pequenas nuances. Mas depois há aqueles que, em menor ou maior grau de intervenção sobre a matéria original, ou num grau maior ou menor de exploração pessoal, fazem surgir algo de novo e de reinterpretativo. Por exemplo, Charles Burns redesenha quatro vinhetas de uma tira de Chester Gould, retira-lhes o texto e altera a ordem. O que era originalmente a continuidade das aventuras cómico-dramáticas de vilõs em fuga torna-se uma apropriação muito especial de Burns ao seu “universo” referencial. Baudoin (e poderão ver no vídeo acima essa relação) escolheu trabalhar sobre um pormenor da última vinheta de uma prancha de Buzzelli, as pernas de um cavalo, para mergulhar nas suas conhecidas reflexões sobre a poeticidade do desenho e as consequências da sua expressividade. Posy Simmonds, uma autora maior, utiliza uma tira de Reg Smythe (Andy Capp/Zé do Boné) para apresentar uma contundente e divertida crítica da representação da mulher na banda desenhada (e não só). Loustal aborda uma prancha satírica de Jack Davis para a mergulhar num ambiente hooperiano. Deprez ausculta os fantasmas de David B. de uma forma materialmente significativa. Katchor, a partir de um episódio molecular de Cham, faz desdobrar toda a massa macroscópica que nela se ocultava. Michel Rabagliati expõe o modo como o Gaston de Franquin ocupa a sua vida. E por aí adiante.
Quanto aos autores portugueses, que destaco particularmente no pobre) vídeo, temos Luís Henriques que parte de uma prancha de Frank King (e de uma das suas mais conhecidas estratégias visuais) para criar uma reflexão sobre o significado de Portugal para consigo mesmo e para os “de fora”, Filipe Abranches visita um dos seus autores dilectos, Jacques Tardi, para reinventar com pequenos desvios as aventuras de Adéle... “Noir-Sec” em Lisboa, e António Jorge Gonçalves bebe de uma das pranchas de Brüsel, de Peeters-Schuiten, para mostrar um dos seus mapas-diagramas que também parecem querer retratar Lisboa em hora de ponta.
Até certo ponto, este projecto faz-nos recordar um outro associado ao cinema, Lumière et Compagnie (1995), em que se convidaram 40 realizadores a utilizar o cinematógrafo (a máquina dos irmãos Lumière) para fazerem um filme no interior de um quadro específico. Os resultados são o mais díspares possíveis, com vários graus de integração própria, transformação do processo num questionamento reflexivo sobre o próprio meio, plataforma de experimentação nova, ou mera desculpa para uma leveza breve. Tudo isto cria, portanto, um material de excelência para questionamentos sobre as estratégias visuais da banda desenhada, e as veredas que elas abrem para o pensamento geral sobre a história da arte, da imagem, do meio. Um livro que tanto servirá o propósito de auscultar o passado como de fomentar a experimentação futura. Ao passo que o "catálogo" da exposição do Kunstverein Hamburg procurava eleger uma linha de força contínua entre alguns objectos heteróclitos para compreender uma forma ampla desenhada pela integração, despreconceituada, da banda desenhada (e/ou ilustração) na história da arte/cultura/política, esta outra procura não tanto uma história de fontes ou sequer a estruturação de um cânone, mas fomentar uma atitude plástica para com a banda desenhada, e apesar de em alguns casos se revestirem os resultados de um oubapianismo relativaemnte frouxo, é essa ideia primeira que emerge como a mais interessante e, eventualmente, promissora a outros gestos futuros ou até mesmo como desbloqueadores criativos.
Nota: agradecimentos a Filipe Abranches, pelo empréstimo do catálogo e alerta às informações.

Wo ist der Wind, wenn er nicht weht? (Kunstverein Hamburg)

O título em inglês desta publicação é Where's the wind when it isn't blowing? Political graphic novels from Albrecht Dürer to Art Spiegelman. Este é um catálogo de uma exposição feita em Hamburgo dedicada a uma linha específica da história da arte, a saber, ciclos ou séries de imagens que iluminassem uma qualquer faceta do Político, tecendo uma continuidade entre objectos consagrados, tais como o Apocalipse de Dürer (1496), os Caprichos de Goya (1731-1733), as duas gravuras famosas de Picasso Sueño y mentira de Franco (1937), obras-primas da banda desenhada, dos Kin-der-Kids de Feininger ao Maus de Spiegelman, de Herriman e Calvo a Crumb e Sue Coe, passando por obras outras da mesma área (o Asterios Polyp de Mazzucchelli, a obra de Trudeau, Will Eisner, e outros, passando mesmo pelo Understanding Comics de McCloud), e ainda objectos díspares tais como as imagens dos isótipos de Arntz e Neurath, bandas desenhadas instrutivas-institucionais, muitos mestres da caricatura/cartoon/desenho, as ilustrações com ou sem fito próprio de Raymond Pettibon, a iconoclastia/reinvenção dos irmãos Chapman, as intalações de Fahlström, os murais de Keith Haring... O catálogo abdica de qualquer contextualização, texto introdutório ou até mesmo princípios de organização. Mais, não é um repositório dos trabalhos exibidos, extremamente heteróclitos, mas antes um exercício de pensamento visual, um ensaio visual se preferirem, muito bem informado e amplo, em torno dessa mesma matéria.
De certa forma, é quase um gesto warburgiano, em que se procuram identificar os elos de ligação e continuidade entre o que parecem ser imagens inirmanáveis, e deixá-las “falar por si” (se bem que Warburg previa sempre um texto expositivo, a regra da razão histórica por sobre a primeira linha de associação visual).
Um dos problemas prementes em qualquer exposição de banda desenhada ou áreas contíguas é qual a pertinência de expor material que visaria a sua reprodução e vida final/última num objecto para a legibilidade individual imitando os preceitos das artes visuais propriamente ditas (socialmente). É o que ocorre com esta exposição e com Cent pour cent. Essa é uma daquelas perguntas que devem ser colocadas sempre que se faz uma exposição, mas não terá jamais uma resposta satisfatória. Tentar-se-ão sempre novas soluções que levam a novos questionamentos sobre a disposição, o arranjo, a ordem, a leitura e as relações permitidas na “mostra” da arte da banda desenhada e ilustração. Este objecto é uma longa pergunta. Fisicamente falando, imaginemos que deparamos com este objecto num qualquer local: estamos menos perante um “catálogo” do que um destes muitos livros publicados contemporaneamente que juntam imagens diversas e dispersas, esperando que nessa conjunção possa emergir um qualquer sentido, mesmo que fantasmático. Só que de facto está associado a uma exposição de uma instituição específica, como se compreende pelas poucas informações textuais, que passa pela lista de nomes dos autores presentes na exposição mas não necessariamente no livro que temos na mão.
Não obstante, existem textos que lhe estão associados, e que rondam a instituição... esses textos na verdade são problemáticos em alguns aspectos (por exemplo, considerarem que os livros de banda desenhada são “universais” porque “toda a gente os compreende”, ou que existem poucos exemplos de exploração verdadeiramente política e engajada da parte da banda desenhada), mas tornam mais ou menos claros os objectivos dos organizadores, as preocupações de legibilidade da exposição, as estratégias expositivas, e a associação a outras questões. O título, mostrando uma pergunta que tem tanto de absurdo como de surrealista, obriga-nos a querer procurar uma resposta, mesmo sabendo que não a encontraremos. A segunda parte do título, descritiva, desvia o objecto de atenção, ou transforma-o, e faz-nos pensar que o próprio conceito-chave, o da “graphic novel”, o “romance gráfico”, é algo de permanentemente aberto e discutível, historicamente retroactivo e filosoficamente complexo. Where's the wind when it isn't blowing? torna a amplitude dessa perspectiva o mais aberta possível. Pouco importa se concordaremos com ela ou não, pois o seu objectivo é obrigar-nos a pensar nas possibilidades que essa amplitude permite.
No limite, permite-nos fazer perguntas.