29 de dezembro de 2010

Graphic Women. Hillary Chute (Columbia University Press)

Apesar deste ser o primeiro livro de Hillary Chute, o seu nome é reconhecido no círculo dos estudos de banda desenhada, sobretudo nos Estados Unidos, graças sobretudo a alguns dos seus artigos, alguns dos quais com amplas consequências teóricas, o seu insistente estudo de Maus, de Art Spiegelman (sobretudo o que se inclui no muito esperado MetaMaus, pela Pantheon, em 2011), e ainda ao seu trabalho como editora de um número da Modern Fiction Studies dedicado à banda desenhada. Este volume reúne algum do seu trabalho em artigos, entrevistas ou resenhas críticas, mas reelaborado enquanto estudo contínuo e coeso de um grupo muito especial de autoras de banda desenhada, mulheres que utilizam este meio artístico não apenas para contar as suas histórias mas para o fazer de um modo particularmente feminino. O subtítulo, “Narrativas de vida e banda desenhada contemporânea” parece querer apresentar-se de um modo relativamente neutro, mas não pode haver dúvida de que pelo menos parte do propósito do trabalho de Chute é ético e político, relacionando-se profundamente com o feminismo contemporâneo de Luce Iragaray, Drucilla Cornell ou Judith Butler. (Mais) 

Graphic Women apresenta estudos sobre cinco autoras, ora afunilando as análises a um só título ora abrindo-o à produção total: Aline Kominsky-Crumb, Phoebe Gloeckner (com destaque para A Child's Life), Lynda Barry, Marjane Satrapi e Alison Bechdel (quase exclusivamente Fun Home). De gerações diferentes (Kominsky recua à primeira geração dos underground comix, Fun Home é um livro de 2006), quase todas elas têm uma produção que as torna famosas num círculo relativamente vasto e informado na banda desenhada contemporânea mundial (Satrapi sendo o caso mais extremo), e todas elas são autoras importantíssimas em qualquer visão desta arte, seja qual for a perspectiva (a menos que seja uma perspectiva tão circunscrita a determinados géneros ou presenças comerciais que impeça o leque de as abarcar), mas Chute pretende estudá-las a partir de uma visão de facto diferenciadora em termos de género. Ainda hoje, a separação, na banda desenhada (ou em qualquer arte), das mulheres, apenas sublinha um enfoque empobrecido, que não procura uma integração naturalizada, mas a verdade é que por vezes é ainda necessária enquanto movimento de correcção de perspectiva, esforço de inclusão ou, caso deste estudo, modo de perscrutar especificidades que possam de facto existir relacionadas com o género [gender] das criadoras. Apesar da grande diferença estilística, de género [genre] (literário) do seu trabalho, de abordagem criativa, de humor, etc., entre estas autoras, Chute procura ser atenta aos modos diversos de cada uma delas mas para responder às mesmas questões colocadas a todas: como é que procuram estruturar a auto-representação? Que representação da mulher fazem elas? Que relação estabelecem com os seus próprios corpos (auto-representados) e com que fito o fazem? Que posicionamento tomam face às suas memórias pessoais, aos traumas, à inscrição, às heranças e à agência que reclamam? Que voz moldam e devolvem?

Uma das especificidades de género – que poderá ser partilhada por homens artistas, mas que terá maior incidência nas mulheres – e que estas autoras cultivam é aquilo a que autora chama de “idioma da testemunha, uma forma de testemunhar que põe em funcionamento uma linguagem visual quer a favor quer contra o verbal, de forma a incorporar [embody] a experiência individual e colectiva, dando forma a uma série de si-mesmos e histórias contigentes” (nosso sublinhado, pg. 3). Chute refere-se aqui à maneira das autoras procurarem, no interior da mesma narrativa, vários modos de auto-representação, “registos discursivos múltiplos”, reconversões. A questão do corpo tornar-se-á muito produtiva, como se nota pelas close readings de Chute, mas também pela forma teórica como ela procura estabelecer os instrumentos dessas leituras. Por exemplo, repare-se nesta frase relativa a Kominsky: “Povoada por corpos 'excessivos', o seu trabalho, muitas vezes dito incivilizado, que perturba uma economia masculina da produção de conhecimento, demonstra que uma parte fulcral do esforço para representar as realidades do género para além da diferença sexual envolvem as nossas elaborações estéticas de escrita – e de desenho – das formas diferentes de se ser com a sua própria sexualidade” (pg. 30). Quase todas as autoras exploram questões de representação dos corpos e da sexualidade que são um sinal absolutamente contrário, ou pelo menos desviante, da sexualidade erótica que impera na esmagadora maioria dos conteúdos das estratégias visuais mais banais da cultura (necessariamente sob o domínio masculinizante). Essa estratégia “contrária” é conseguida através daquilo que Chute chama de “prática textual”, o que engloba os elementos visuais, uma prática que estabelece de vários modos um olhar contrário ao ser-se-olhado típico do corpo feminino (enquanto objecto erótico ou corpo passivo de recepção sexual). Há uma forma própria de “olhar, desenhar e emoldurar – que a forma da banda desenhada torna legível” (pg. 83). Uma outra dimensão dessa mesma acção tem a ver com a forma como as autoras mesclam ou separam o privado e o público, o íntimo e o político, como inscrevem na tessitura da História (colectiva, partilhável, herdada) o quotidiano, as suas próprias pessoas, de uma forma mais integrada do modo “masculino”, em que se assumem vincadamente os papéis de agentes activos. De certa forma, a autora encontra nessa instabilidade da própria banda desenhada, enquanto meio, um veículo privilegiado do posicionamento feminino; a propósito da forma como a personagem principal de Fun Home, representação de Alison Bechdel enquanto criança, rabisca as palavras do seu próprio diário com um V invertido, uma espécie de correcção pela dúvida, escreve Chute: “as palavras são instáveis, por isso ela protege-se com o visual” (pg. 189).

Se bem que seria incomportável recontar toda a história da banda desenhada, mesmo somente a norte-americana, a autora peca num aspecto ou outro por fazê-la reduzir a uma linearidade autóctone e estanque, se bem que se preocupe mais – e bem – em querer construir a sua própria tradição, ou melhor, a tradição específica que criaria o contexto em que estas autoras estudadas medrariam. Para uma inflexão mais vincada do seu território, e fazendo valer a sua especialidade académica, Chute procura navegar por entre toda uma série de referências literárias, não-ficcionais ou mesmo documentais (e teóricas, claro) relativas ao feminismo ou aos “women studies” para encontrar pontos de comparação, inflexão e consolidação dos instrumentos com que constrói o seu discurso e ponto de vista das autoras de banda desenhada.

Esta académica partilha aquele mito do “autor completo”, em que se quer necessariamente encontrar uma superioridade criativa naqueles autores que dominam todos os instrumentos necessários à prossecução de uma banda desenhada, sem jamais procurar formas de encontrar restrições a essa mesma perspectiva. Ora, a nosso ver, não é tanto uma questão de querer encontrar nesses autores algo de particularmente mais forte à partida do que alianças entre autores – um do texto e outro do desenho, o que levaria imediatamente a listagens infindas de “obras-primas” em que isso se verifica – do que um posicionamento ético-estético que impede de encontrar casos diferenciados. Se, usualmente, os casos terão a ver com um autor-desenhador a dar “voz” a um autor-escritor, tanto se podem encontrar exemplos banais e simples (!) como os de Harvey Pekar e colaboradores como mais matizados na colaboração de Alan Cope e Emmanuel Guibert, ou os variadíssimos entrevistados de David Greenberger, depois dados à estampa por uma variedade de artistas. O inverso também é possível, como o trabalho de burilamento de texto que o companheiro de Dominique Goblet fez em relação a Souvenir d'une journée parfaite. Porém, esse posicionamento tem a ver com aquela questão da representação do eu que se torna tão premente neste estudo, já que se dá uma “narração duplicada que representa visual e verbalmente o eu”, de tal modo que “as palavras e imagens se entrelaçam mas jamais se sintetizam” (pg. 5). Sublinha-se, portanto, o seu valor “afectivo” junto a estas autoras, em que as imagens “nem sempre são traduzíveis no interior de estruturas predeterminadas de sentido” (pg. 70); essa será outra diferença geral com os autores masculinos, cujos discursos se estruturam no interior dessa clareza de significado. E sejam as imagens aparentemente amadoras de Kominsky-Crumb, o virtuosismo anatómico mas informado por estratégias caricaturais de Gloeckner, passando pelos sistemas iconográficos de Satrapi e pela simplicidade realista de Bechdel, ou a multiplicidade de materiais de Barry, todas elas concorrem para a emergência desses sentidos para além de uma representação conotativa, uma re-imaginação, nas palavras de Chute. “As narrativas gráficas feministas, que discuti no início deste capítulo como sendo intervenções na prática cultural do acto de representação – mas não de fechamento – das pouco representadas realidades vividas pelas mulheres, (re)imaginam a diferença e alteridade” (pg. 91). Tratando-se de narrativas da subjectividade, estarão mais próximas do processo e da composição em curso do que de um produto final, e a teórica encontra nas práticas de reapropriação, de teatralidade, de re-identificação com um eu do passado (as mais das vezes infantil), de refiguração levada a cabo pelas autoras como parte desse vocabulário pragmático feminista.

A consequência dessas especificidades reside numa questão que a autora explora profundamente e que tem a ver com a presença dos corpos das autoras não apenas como matéria de representação mas também enquanto traço ou marca deixado na obra, de “indício” no seu sentido peirciano. Apesar das diferenças de estilo (uma palavra pela qual Chute não tem preferência, como verão na entrevista) entre estas autoras, todas elas empregam vários instrumentos, aparentemente contraditórios ou paradoxais, para a construção de significado desta arte em particular, para a “forma utilmente instável da banda desenhada, que cria uma ponte entre a cultura de massas e a alta cultura dado que é produzida massivamente mas ainda assim é escrita à mão e artesanal” (pg. 121).
A autora segue de perto Scott McCloud em alguns aspectos, como por exemplo a ideia de que o espaço intervinhetal é necessariamente o espaço essencial onde se tece o significado da banda desenhada (como se as imagens nas vinhetas fossem de alguma forma secundarizadas), ou procurando uma diferenciação entre a banda desenhada e o cinema devido ao factor do tempo. Quer num quer noutro caso estamos perante questões teóricas fundamentais e importantíssimas que gostaríamos de ter visto abordadas de uma forma mais cabal. Aliás, a própria fundação da ideia da banda desenhada enquanto literatura é, como quer um estudo recente de Jan Baetens, uma das grandes diferenças entre os estudos académicos norte-americanos e os francófonos ou europeus, que insistem mais pelo lado das artes visuais, e o ponto de partida dessa diferenciação é precisamente aquela que opõe a interpretação da banda desenhada pela parte dos académicos norte-americanos como uma arte do tempo (cf. Charles Hatfield, por exemplo). Isto não só é algo de extremamente complexo no interior desta área em particular, como ainda se unirá a discussões milenares da diferença entre as categorias do tempo e do espaço, imagem e texto, arte intelectual e artesanal, etc., e que papel elas têm em relação à criação humana, logo impossível de se abordar aqui. A autora sumariza os seus pontos de vista na seguinte afirmação: “Não se trata apenas [Fun Home, de Bechdel] de uma referência importante na narrativa gráfica mas também nas possibilidades e alcance da literatura contemporânea em geral (...) É um exemplo crucial em como a forma da banda desenhada expande o que a 'literatura' é de uma tal maneira que consegue exercer uma pressão produtiva na academia, na indústria editorial e no jornalismo literário” (pg. 178).

Não poderá o nosso texto ser senão uma sumaríssima apresentação de todos os argumentos e discurso de Hillary Chute. Trata-se de uma leitura exigente e estimulante, que abre muitos caminhos novos (sobretudo no que diz respeito à aproximação entre os “trauma studies” e a banda desenhada, que nos interessa particularmente), provoca reacções de pensamento fortes em relação a muitos dos aspectos teóricos (mesmo que sejam de discordância) e levantam a bitola no tipo de discursos possíveis de tecer em torno desta arte. A escolha das autoras é extremamente produtiva e inteligente, face ao objectivo de Chute.
Se pudermos reduzir cada uma das autoras estudadas a uma rápida e simples apresentação, diríamos que a importância de Kominsky-Crumb está no modo “crucial e convincente como desmistifica o sexo ao mesmo tempo que sexualiza o quotidiano”, a de Phoebe Gloeckner no modo como “utiliza ferramentas visuais – ilustrações, banda desenhada – para apontar e desfazer o olhar predatório masculino da cultura”, que “o trabalho de Barry é sobre o processo: de relembrar, de reconstruir, da narrativização; recordando neste sentido o conceito de si-mesmo [selfhood] de Seyla Benhabib e o papel constitutivo da narrativa em que 'fazer sentido' envolve (...) a 'capacidade psicodinâmica de continuar, recontar, re-lembrar, reconfigurar”, que Persepolis, de Satrapi, “o testemunhar é, em parte, um ethos inclusivo e colectivo”, apresentado de uma forma “realisticamente errónea mas emocionalmente e expressivamente informada”, e a de Bechdel exposta pela própria na seguinte afirmação: “sinto que me apercebi que, se não podemos confiar na linguagem, e as aparências iludem, então talvez pudéssemos fazer uma triangulação entre as duas e assim chegar um bocadinho mais perto da verdade”.

A autora teve a amabilidade de responder a algumas perguntas, que deixamos aqui.
Nota: agradecimentos à editora pelo envio do livro; com excepção da capa do livro, as imagens respectivas a cada artista foram colhidas na internet.

5 comentários:

  1. Estudos feministas säo simultäneamente interessantes e deprimentes; o ghetto delas, as particularidades delas, a minoria delas etc...e é como pensar constantemente sobre o bater do coracäo ou tentar tomar consciencia 24 horas que se está a respirar
    Como autora de bd só posso dizer que qd trabalho nunca penso que sou mulher,apenas sou pessoa (ao contrário daquilo que tu disseste sobre mim,e outras algures numa critica acerca do trabalho delas (pt)

    Se calhar o que é interessante é perceber pk é que o trabalho deles se tornou normalidade e o delas desvio.

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  2. É inevitável que existam sempre maneiras diferenciadoras de ver "mulheres" e "homens" (já nem falo de outras categorias) enquanto as diferenças sociais, políticas e económicas continuarem, como o são - não sejamos ingénuos. Eu não diferencio entre autores com pilinha e autores sem pilinha (vês?, expressões falocêntricas!), mas em termos de identificação de características formais e éticas, elas existem de facto, e o "feminismo" pode ser exercido por homens. Há que ler a Chute para perceber não ser um estudo deprimente, mas sim estimulante...
    Bom ano!
    Pedro

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  3. ui, o futuro do feminismo säo os homens...feministas
    bom ano para ti tb

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  4. tudo o que fale de metades,como se de minorias se tratassem será sempre deprimente, essa necessidade é a voz do desiquilíbrio

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  5. Wow! Caro Direito Penal (nunca pensei chamar isto a alguém), tenho a certeza que os leitores e leitoras que tenham o mínimo de interesse por estes temas feministas ficarão muito felizes por saber de um blog onde as mulheres podem encontrar os melhores rolos e rouges para se tornarem mais bonitas e conformes as expectativas!
    Obrigado,
    P

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