Mas há outra dimensão, que é a da forma, de extrema importância em Ware (e que se se separa, é para ser devolvida de modo mais forte). Ainda que um leitor forte de banda desenhada seja atencioso para com todos os factores implicados num dado texto de banda desenhada, as mais das vezes o próprio acto da sua leitura é pautado por certas escolhas: uma direcção da leitura, uma inclinação para decifrar de uma forma mais decisiva uma das facetas do trabalho em detrimento de outra, e por aí adiante, revelando portanto algum grau de limitação natural (que se relaciona com a atenção humana, a capacidade perceptiva, etc.). Mas o trabalho aparente ou ilusoriamente minimalista de Ware força o seu leitor a ler tudo. Não apenas a óbvia “história”, os diálogos e legendas, e a sequência principal das acções visuais, mas também a estrutura da página, a escolha do formato, tamanho e distribuição do painel, etc. Todos esses aspectos estão sempre revestidos de significado (diegético, estético, etc.), mas na obra de Ware fazem parte intrínseca da matéria legível e formadora do significado das suas ficções. Não são mero embelezamento ou floreado de expressão. Sem a atenção devida a esses mecanismos, o sentido não se forma completamente.

Todos os elementos constitutivos da banda desenhada (sejam eles vistos como forem) são acumulados camadas sobre camadas até que elas ganham uma densidade incrível, uma presença ancoradíssima. Sem querer hierarquizar aqui quaisquer estilos, géneros ou mesmo pessoas, temos ainda assim a ideia de que Chris Ware foi capaz de trazer algo de genuinamente inovador à banda desenhada (corroborado, defendido, ensinado por todos estes textos). Mas essas inovações estão imersas num ar de familiaridade. São facetas, a um só tempo, novas e habituais, por assim dizer. Algumas das bandas desenhadas de Chris Ware são como mapas de pensamento, capazes de representar bidimensional mente a liberdade de direcção da percepção, memória e razão da nossa existência humana.
Em alguns aspectos o trabalho de Ware é similar às instalações do artista suíço Thomas Hirschhorn, no sentido que o este nosso artista também emprega uma “micro-galáxia de materiais, objectos, textos e temas históricos e correntes” (como se lê num catálogo italiano de Hirschhorn) para criar um ambiente impregnador no qual o leitor-espectador entra, mergulha e sobre o qual age. A banda desenhada de Ware é mais “limpa”, claro, e todo o material dos seus livros são comprimidos, passam pelas suas próprias mãos, o seu estilo, por isso não temos aqui uma colecção de objectos heteróclitos reciclados como no caso do artista suíço. Ainda assim, também sentimos que as suas páginas são os pontos nodais nos quais materiais diversos convergem e interagem para criar aquele ambiente indicado. É como se a obra de Ware trabalhasse, ao mesmo tempo, a um nível furtivo, subtil, até quase subliminal, e a um outro mais visível, presente e claro.


O primeiro ensaio, de Jeet Heet, é um daqueles textos que “toca todos os botões” de parte da pesquisa que se vai aqui tentando, de vez em quando, neste blog. Heer foca a forma como Chris Ware, não apenas através da sua obra de banda desenhada, mas através de todos os seus gestos criativos – o que passa pelo design, a edição, a escrita, etc. – funda os seus próprios antecessores. Assim sendo, a genealogia de McCay, Herriman, King e McGuire não é apenas uma questão de “fontes” em relação a Ware, mas sim como um território relativamente delimitado no qual Ware se deseja inscrever. Ao criar esses antepassados, Ware cria um espaço que lhe é próprio. Ora, estas são precisamente as questões que abordamos aqui repetidamente, sob o signo da “recuperação da memória” da própria banda desenhada, um dos aspectos pelos quais, independentemente dos problemas de mercado, acreditamos viver num momento de consolidação artística, uma vez que a memória do campo da banda desenhada se começa a formar de um modo que não se voltará, cremos, a dissipar. Parte dessa consolidação passa necessariamente – e aqui estamos em total desacordo com aqueles que crêem que pensar, analisar ou fazer crítica “académica” (na verdade, só há crítica de contornos académicos, aquilo que se passa por crítica nos circuitos jornalísticos não é um exercício crítico, mas de comentário) enfraquece a capacidade de criar ou de ler prazenteiramente uma obra de arte – pelo círculo dos estudos universitários, e aqui também, no que diz respeito aos Estados Unidos, vemos uma inflexão para a fundação de um corpus coeso. Num texto anterior, havíamos contraposto os estudos de banda desenhada francófonos, onde exista um grupo coeso de académicos que procuravam responder-se entre si e, desse modo, criar uma massa crítica substancial (sob a forma de instrumentos, conceitos, análises, corpus analisados, e até mesmo alguma ideia de cânone), e os norte-americanos, em que cada novo autor parecia ter de refundar a disciplina. Ora, com este volume, e não é surpreendente que isso aconteça com Ware, um dos autores mais globalizados do momento, encontramos toda uma série de textos que utilizam a bibliografia existente, citando extensiva e pertinentemente os livros e papers existentes na bibliografia norte-americana que abordam questões directa ou indirectamente associadas aos temas ou prismas abordados. Nesse sentido, este livro é também um passo importante para a consolidação dos estudos de banda desenhada.

Curiosamente, apesar de muitos dos temas quase estarem perto, não encontrámos (ou então isto é fruto de distracção), estudos que aproximassem Ware de Bem Katchor, Tony Millionaire, Martin Vaughn-James ou outras experiências contemporâneas da banda desenhada que se poderiam mostrar produtivas, ou até mesmo a um romance como La Vie, Mode d'Emploi, de Georges Perec, que terá ecos seguramente em Building Stories.
Conclusão
Não sendo estes os primeiros livros/monografias dedicados a Ware, pois em 2005 havia surgido o volume de Daniel Raeburn, de que havíamos dado brevíssima conta, e Chris Ware (La secuencia circular) de Ana Merino (pela espanhola Sins Entido), estes dois livros tornam-se porém, logo à partida, blocos fundamentais não apenas para aqueles interessados numa abordagem analítica e crítica em relação à obra deste autor, mas também pelos estudos de banda desenhada em si mesmos. Ware torna-se, desta forma, um autor capaz de não apenas obrigar-nos a repensar na sua totalidade os propósitos, estratégias, e modos da banda desenhada enquanto modo de expressão, disciplina artística e até mesmo o seu papel na função sócio-económica, como a providenciar um corpus capaz de consolidar o campo de estudos específicos desta área.
Nota: agradecimentos às editoras respectivas, pelo envio dos livros.
Penso que terei deixado escapar este seu post, e não, não li de todo nenhum deles: se tivesse lido, muito provavelmente teria ficado caladinha no meu lugar. Não porque ousasse pensar que estaria a fazer descobertas, mas porque é tão bom chegar lá através dos nossos mecanismos imensamente ignorantes e depois dizer que se chegou, em jeito de comentário básico mas de algum modo orgulhoso. Este seu texto expõe de facto uma série de reflexões que eu sem querer (embora soubesse existir por força da obra incontornável de Ware) "copiei". Primeiro sorriso. O segundo saiu quando diz que não concorda com quem diz que a leitura académica (ou seja, fundamentada numa série de estudos "outros" e na multiplicação de sentidos por força de cada área?) tire o prazer da leitura da obra. Pois eu estarei entre o concordar e o discordar. De facto, quando se expõe uma obra analiticamente - e por ser ela mesma uma experiência múltipla, ancorada no registo perceptivo de cada leitor - está a formar-se necessariamente uma perspectiva em detrimento de outras. Uma perspectiva académica. Isto parece mesmo tolo, eu sei, mas vou continuar, porque me apetece dizer que, por um lado, gostaria muito de ler estes livros - é óbvio que enriquecemos a nossa experiência e, logo, multiplicam-se as nossas possibilidades combinatórias - por outro, todo o encantamento de abrir portas e serem essas portas as minhas escolhas (por razões que posso vir, no processo, a descobrir) e de trazerem atrás delas outras portas e descobertas, está no centro do prazer da nossa leitura. Ou seja, como diz no seu texto, estes artigos académicos obrigam-nos a reler a obra de uma outra forma, de outras formas, de ver o cotão que nos escapou e que era importante, mas retiram também a oportunidade de vermos o cotão por nós e de o espalharmos a nosso bel-prazer. É como chegar ao resultado antes de tentar fazer a equação.
ResponderEliminarMas não pretendo estar a provocar uma conversa sobre assuntos batidos.
Vim mais para agradecer a orientação. E depois escorreguei.
Obrigada,
Isabel
Cara Isabel,
ResponderEliminarNão penso que tenha "escorregado" de forma alguma. Está no caminho certo, se é que se me pode permitir dizê-lo. Encontrarmos afinidades com outros autores é excelente. Há uma mistura de alegria, orgulho e presunção quando pensamos uma coisa e vimos a descobri-la escrita por um autor, e mais quando - e falo apenas por mim -, esse outro autor expõe essa ideia de uma forma nítida, completa e magnífica, como não poderia jamais pensar em conseguir fazer.
No entanto, e mesmo na possibilidade de a estar a entender mal, ou estar a fazer uma sobreintepretação das suas palavras, continuarei a defender que a leitura "académica" ou "analítica" é uma mais-valia.
Não há qualquer problema de moral ou de valor numa leitura epidérmica, sensual, superficial, sobretudo quando é de modos artísticos que não compreendemos. Por mim falo, novamente: a minha fruição da música e da dança contemporânea, sendo feita no seio de uma completa ignorância das suas “gramáticas” não pode ser feita de outro modo. No entanto, e mesmo que esteja a arrogar-me de uma compreensão que, no fundo, não terei, já a leitura da literatura, do cinema e da banda desenhada se pauta por alguns instrumentos que ajudam a compreender melhor os textos. Dizer que apenas a primeira abordagem é “suficiente” que a segunda (por exemplo, “sentir” um poema em vez de o “analisar/ler”) é uma ingenuidade aceitável; que é “melhor” é um perigo de ignorante; que é “mais verdadeira” uma estupidez. Bastar-nos-iam uma mão cheia de exemplos de vários meios para demonstrar como uma mais atenta análise de um certo texto desvendaria sentidos mais profundos do que a mais cursiva das passagens, e assim se pode atingir uma leitura mais “verdadeira”, ou pelo menos “melhor”. O que depois permitira, talvez, demonstrar que se pode argumentar (mas nunca provar) a superioridade de uma obra de arte em relação a outra.
Tema que se desenvolveria ad aeternum…
Pedro