Há alguns anos, tivemos a oportunidade de escrever na revista Número sobre banda desenhada, ao que pensávamos então ser algo que iniciava um exercício a continuar, mas que se revelou uma experiência sem repetição. A regra que havíamos instituído era tentar escrever sempre sobre dois títulos, contemporâneos, sem quaisquer associações superficial e imediatamente perceptíveis (mesma editora, mesmo tema, coincidência de autores, etc.) mas que estabelecessem entre si um qualquer tipo de afinidades que nos interessaria explorar criticamente. Essa experiência levou-nos à aproximação breve entre um livro de Vanoli e de Huizenga, que deixámos conhecer aqui. Este tipo de abordagem já foi aqui tentada outras tantas vezes, mas ela é ditada pelas circunstâncias. Tem mesmo de ser ditada pelas circunstâncias, uma vez que não criamos aqui um espaço de discussões históricas, ou retrospectivas, mas na maioria das vezes de perspectivas sobre a contemporaneidade. Essas circunstâncias podem, de quando em vez, levar a momentos felizes, ou até mesmo, na navegação mais ou menos livre por entre aquilo que vai sendo publicado neste território, e que conseguimos dar conta (não só lendo, como escrevendo), chegar àquela situação que os anglófonos chamam de “serendipity”. É isso o que ocorre com a chegada, em pouco tempo, às nossas mãos destes dois livros. O primeiro, da Top Shelf, publicando o novo título de um autor que deveria dispensar apresentações em sociedades cultas, Eddie Campbell, numa colaboração com o escritor´(afinal também britânico e a viver na Austrália) Daren White, e o segundo, de um autor de vulto da nova banda desenhada francesa dos anos 1980, Jacques de Loustal, num livro escrito pelo escritor e argumentista Tonino Benacquista.
Comecemos, porém, pelas “associações superficial e imediatamente perceptíveis” entre estes dois livros. Em primeiro lugar, são ambos oblongos, tendo quase o mesmo comprimento, mas o de Loustal e Benacquista é mais alto. Ambos têm os dois lados das páginas impressos. Estes aspectos levam a que o comportamento motor da sua leitura seja idêntico, têm os dois a mesma “mão”... predisposição que é corroborada por mais dois aspectos estruturais do texto em si: para já, a matéria verbal é apresentada sobretudo sob a forma de legendas, sendo raro (ainda mais em The Playwright, mas onde as legendas se apresentam em posicionamentos diferentes na composição da prancha, por vezes de modo “incrustado” na própria imagem) a presença de discurso directo e de balões de fala; depois, porque as narrativas são apresentadas de modo fragmentado, The Playwright em dez capítulos de extensão desigual mais ou menos seguindo um progresso cronológico mas coalescendo-se como que em nódulos temáticos, Les Amours Insolentes propondo dezassete contos curtos, todos de seis páginas com duas vinhetas cada, sem relações diegéticas entre eles.
Há ainda outros aspectos circunstanciais idênticos mas importantes para entender a natureza destes projectos. Os dois livros são assinados por artistas cujo nome é muito valorizado nos seus círculos respectivos, ou para além deles (Campbell somando a sua carreira enquanto escritor ou argumentista), e são feitos em colaboração com pessoas associadas a outras áreas criativas da escrita para meios visuais: Daren White também já escreveu mais títulos de banda desenhada, destacando-se uma colaboração anterior com Campbell no título Batman: The Order of Beasts (um dos mais divertidos e melhores estruturados exercícios da Elseworlds), Tonino Benacquista é escritor literário, e foi também quem escreveu o magnífico filme realizado por Jacques Audiard De tanto bater o meu coração parou. Estamos perante dois livros, portanto, que não devem nada aos géneros clássicos de banda desenhada nem procuram integrar-se em linguagens generalistas e de grande público. Bem pelo contrário, são livros que exigem um esforço e entrega da parte do leitor, uma vez que ambos os livros exploram algumas das camadas mais urgentes da existência humana, a saber, a dificuldade, enquanto animais sociais e de língua, de sabermos viver em sociedade, de saber comunicar, de saber transmitirmos os nossos sentimos, de nos amarmos. É por isso que ler estes dois livros em conjunto se torna algo de tão produtivo, interessante e despertador.
The Playwright. Apesar de não nos ser jamais revelado o nome do dramaturgo, a forma como testemunhamos a sua vida recordar-nos-á o mesmo tipo de atenção que vimos em livros tais como Wilson, George Sprott, ou outros, em que são os momentos da vida de uma personagem, habitados por vários dos seus interlocutores e parceiros nas relações que desenham a sua própria personalidade. Este escritor é algo patético e apático, e a maioria das informações deixam-nos sempre a sensação de não serem totalmente compreensíveis ou pelo menos completas, mas ainda assim acumulam-se num significado que faz um sentido, protelado.
Se não temos acesso directamente às palavras do protagonista, através de diálogos e balões de fala, todo o discurso parece ser construído no clássico modo indirecto livre, em que temos acesso aos sentimentos, perspectiva e posicionamento da personagem. Por exemplo, em vários momentos, ficamos a saber que ele é autor de uma peça de teatro premiada, de uma série de televisão com excelente recepção, mas poderemos confiar nessa informação? Será uma projecção fantasiosa do próprio protagonista? É essa ideia que nos faz desconfiar que, na verdade, aquilo que atribuiríamos a um narrador externo e desapaixonado não é mais do que um exercício do protagonista em construir uma imagem fora de si, pretensiosamente objectiva, sobre a sua vida e obra. Sempre que se falam dessas obras, com os encómios associados, descreve-se um qualquer momento da sua vida ou sentidos secundários que a crítica descobre e que lhe pautam a existência. E então é como se ele apenas pudesse viver a vida e as relações através dessa dupla projecção, a das peças criadas e aquela que se desenrola no próprio texto de The Playwright.
Revisitamos momentos da sua infância, da sua educação, de episódios esparsos da sua vida anterior àquela do “presente” desta narrativa, para o descobrir derrotado em vários aspectos: ele é um animal solitário, fantasioso e que muito a custo sabe aproximar-se de outros seres humanos. O irmão dele, que sofre de uma doença mental, vive com ele os últimos dias da sua vida, mas nada o desperta em termos emocionais, nem mesmo a morte esperada. Só alguns dias mais tarde, ao ver um documentário sobre a classe trabalhadora e menos favorecida, e um dos entrevistados explica que o que mais inveja não é tanto o sucesso dos outros mas “a sua falta de criatividade em aproveitá-lo”, o escritor desata a chorar. Será uma emoção genuína a responder ao que viu e ouviu, ou apenas uma forma de chorar a morte do irmão com uma outra desculpa? No final, quando ele entrosa o fim da sua escrita e uma felicidade possível com a mulher que escolhe, tudo nos leva a crer que essa criatividade literária não era uma criatividade em si, mas um filtro ou barreira que o impedia de tocar nos objectos e pessoas que o rodeavam, mas não faziam parte verdadeiramente da sua vida. Eram meros satélites da sua fantasia.
Os desenhos de Campbell, pintado a aguarelas pouco naturalistas, e cujos traços de contornos seguem aquela via conhecida dele em escrever desenhando, tornam o ritmo de The Playwright de uma acalmia tensa, em que certas metáforas visuais ou a projecção das memórias, fantasias e desejos do protagonista ganham um peso idêntico à representação da realidade em que vive. Tendo em conta que um dos temas mais revisitados é o sexo (mas também a morte, como se os princípios das pulsões fossem sublinhados claramente), a arte de Campbell atinge uma estranha sensualidade, que nada deve a modelos publicitários ou explorações de facilitismo erótico, mas respeitam a carnalidade mais prosaica das pessoas reais. As últimas três páginas apresentam diferenças subtis do resto do livro – mais pormenor no traço, cores mais vivas, um grau de juventude no protagonista, uma dinâmica maior no seu corpo – que funciona como uma belíssima e perfeita pedra de fecho neste pequeno, simples mas profundamente tocante objecto de banda desenhada.
Les Amours Insolentes. Como explica o próprio sub-título, este livro apresenta “dezassete variações do casal”, num desses exercícios de série que encontramos em projectos literários como Gómez de la Serna (Senos), Juan Manuel de Prada (Conos) e Julían Ríos (Chapéus para Alice): elege-se um objecto e depois procuram-se explorar todas as suas variações. Nas imagens isso também é possível, e bastará recordar-nos dos Fuji de Hokusai e Hiroshige para termos dois casos magistrais. E onde esses exemplos literários olham para apenas uma parte anatómica do corpo da mulher (o livro de Ríos permite que isto seja escrito desta maneira), este livro olha para esse animal compósito a que se dá o nome de casal. Se por um lado, os autores parecem respeitar aquele mito contado por Aristófanes de que um casal é composto por duas metades que haviam sido separadas, a verdade é que não há aqui uma procura por nenhuma fórmula de amores perfeitos. Ou melhor, quase todas estas personagens exploram o que há de mais imperfeito nas relações amorosas, nos seus respectivos pares, para encontrarem depois que é mesmo respeitando esse caminho que encontram as suas possíveis realizações. Ou melhor ainda, é apenas no seio da insolência desta particular tipologia de paixões que se estruturam os fundamentos de um amor mais blindado às circunstâncias.
Quase todas as histórias apresentam sempre casais heterossexuais, e mesmo na história que o não faz, ironicamente intitulado “un homme et une femme”, é para juntar mais uma dessas unidades aceites na nossa sociedade ainda conservadora – se bem que com pequenos rearranjos ou desvios cómicos. Há os casais que têm um dia por ano de total liberdade, em que cada membro do casal prova a si mesmo que não haverá jamais outra pessoa. Há o casal que se separa e experimenta tudo para retornar à casa primeira. Há o homem que prova a teoria dos seis graus de separação, para se unir à mulher pela qual se apaixona. Há as duas pessoas extremamente diferentes mas cuja atracção é inegável.
Em nada destoa este livro da obra de Loustal, cujos livros mais conseguidos são usualmente escritos por um outro autor (sendo, discutivelmente, os de Paringaux, o seu maior colaborador, aqueles que sobrevivem mais), cujos instrumentos se dedicam mais ao devolver um ambiente do que uma transformação narrativa da história original. Isto é, há como que a sobrevivência de duas faixas relativamente separadas, a do texto, que se pode ler em voz alta e saborear palavra a palavra, e a da imagem, subsumida à primeira, é certo, mais ainda assim moldando um universo encerrado na sua clareza auto-suficiente, à la Hopper ou Hockney. Sendo desde logo a arte de Loustal mais afecta a um entendimento da ilustração do que da banda desenhada clássica - isto é, há menos uma decomposição de gestos, movimentos, ou momentos concentrados do que a estruturação por cenas mais isoladas e espaçadas no tempo, buscando a possível pregnância das personagens retratadas -, é natural que a exactidão com que se encaixa com estes curtos mas cronologicamente longos contos seja nítida. São vidas encapsuladas, exempla que jamais serão repetidos por outras personagens ou mesmo pessoas, as mais das vezes confortáveis em modelos mais banais e expectáveis. A falta de dinâmica de Loustal não é, de modo algum, um defeito, mas antes torna-se uma maneira de dar acesso aos momentos em que as personagens parecem pensar, solitários mesmo quando acompanhados, ensimesmados mesmo quando em sociedade, profundamente mesmo quando em situações de distracção. A comparação àqueles pintores citados faz emergir precisamente essas leituras.
Uma das canções mais famosas dos Les Rita Mitsouko insistia: "les histoires d'amour finissent mal...en général". Mas quando o "mal" faz parte inerente desse mesmo amor, só podemos esperar os finais mais felizes. Calmos ou tempestuosos, insinuantes ou intempestivos, a maior insolência destes amores é conseguirem ser comovedores.
Nota: agradecimentos a ambas as editoras, pelas ofertas dos livros.
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