[Introdução, ver aqui.]
Como já havíamos discutido anteriormente, o emprego da palavra “clássico” deve ser, na nossa opinião conservadora, espaçado e merecido. Não basta apenas a mera patina do tempo depositada sobre a obra, nem somente o facto de ser sistematicamente repetida em discursos circunstanciais, é preciso que ela ressoe ora com o mesmo timbre do seu momento originário, ora com um timbre único no seu momento de recepção contemporâneo. Como escreveu Marcuse, “A obra de arte realizada perpetua a memória do momento de gratificação”. Complicado instrumento de construir, mas cristalino no momento do seu toque. (Mais)
Nas discussões históricas da banda desenhada, há um certo fetiche em torno das questões dos primeiros: o primeiro autor, a primeira banda desenhada, as primeiras personagens recorrentes, o primeiro super-herói, o primeiro super-anti-herói, etc. The Kin-der-Kids poderá não ser a primeira série de banda desenhada (de Sunday pages) na qual se verifica uma ideia de continuidade narrativa (isto é, em que a história não se encerra em cada prancha mas se protela na da seguinte semana e assim sucessivamente) - afinal, algumas das aventuras de Little Nemo preconizaram essa ideia, ainda que “interrompidas” pelo “trick” do despertar de Nemo - mas é aquela que quebra essa associação necessária à fórmula, ao “trick”, e passa a ser composta de uma forma absolutamente centralizada na trama. É verdade que essa trama é pouco densa, de uma modelação muito simples e linear - precisamente inscrevendo-se naquele movimento mecanicista e teleológico inaugurado por Töpffer -, e talvez tenha sido essa uma das razões que levaram à sua interrupção (mais uma das “bandas desenhadas que não foram” e que existirão na biblioteca de Hicksville). Como explica o texto introdutório a esta edição, da autoria de Rubén Varillas, o autor ainda colaboraria com o jornal anfitrião, o Chicago Daily Tribune, mas com uma outra série, Wee Willie Winkie’s World (de que se incluem neste volume duas pranchas), mas regressaria à tal construção do “trick”. Neste último caso, trata-se de uma hiper-antropomorfização de todos os objectos observados pelo pequeno protagonista: não apenas as casas e moinhos e comboios e barcos, mas o mar, os regatos, as árvores, as nuvens, as pedras, as poças…
Mas tal como caso do Quadratino de Rubino, ou a obra de Verbeek, estas séries de vida curta tornar-se-iam uma recorrente fonte de maravilhas para todos aqueles que as foram redescobrindo ao longo dos tempos. Parte dessa maravilha reside no facto de, independentemente a fórmula narrativa de continuidade dos Kin-der ou do “trick” de Wee Willie, Feininger ter procurado infundir nestes trabalhos uma qualidade plástica muito particular e diferenciadora dos demais autores do seu tempo. Ao contrário das construções pormenorizadas, hieráticas e obsessivamente organizadas de McCay, mas nada devedor das organizações fechadas de Opper, por exemplo, Feininger não tem qualquer receio de compor as suas páginas de uma maneira quase descontraída, desordenada, em que alguns elementos visuais ou gráficos não parecem contribuir num sentido de legibilidade ou funcionalismo. Se há alguma tentativa de manter a simetria entre as vinhetas de cada prancha, já a configuração de cada vinheta parece obedecer a regras mais ocultas, cortando-se os cantos aqui, abaulando estas outras ali, e depois integrando séries de círculos, triângulos, formas geométricas irregulares encaixadas entre as vinhetas que não parecem ter outro propósito senão o da decoração intempestiva. O autor parece optar por aquilo que Benoît Peeters chamou de “pranchas retóricas”, em que cada vinheta tem uma forma o mais adequada possível à acção ou cena que se quer representar. Por isso temos a prancha em que o limpa-chaminés salva o Bocadetorta com três vinhetas alongadas ao alto de forma a testemunharmos as duas cenas simultâneas, e depois duas mais circunscritas para fechar a “cena” na fuga; ou na subida de balão dos tios, as duas últimas vinhetas são tão grandes quanto as duas tiras anteriores, de forma a dar a ver a totalidade do balão empregue e a preparação da partida (em cima, numa edição norte; ou a última vinheta da prancha em que Teddy luta com homens-fortes se estica para alargar o palco e englobar a entrada dramática dos tios e a fuga dos protagonistas. Uma passagem rápida por estas páginas faz-nos ver também que Feininger não teme de modo algum os espaços em branco entre as vinhetas; não é visto como “desperdício” mas também não somente como “pausa rítmica” ou “de leitura” entre cada imagem: parecem contribuir para uma certa respiração global, um equilíbrio interno de cada prancha.
Na verdade, considerar as tais formas geométricas como apenas despropósitos decorativistas não será muito correcto, pois elas contribuem sempre de alguma forma para a leitura do episódio em questão. Muitas delas contêm um friso inferior de bolinhas vermelhas, por vezes duplos, e é tentador pensar que seria uma espécie de dispositivo textual-visual que desse a entender aos leitores incautos a ideia de que a continuidade da história seria retomada dali a uma semana. Na prancha de 17 de Junho de 1906, a vinheta central tem algumas formas laterais, irregulares mas simétricas, que poderemos imaginar como uma espécie de expansão e contraste plástico da decoração austera da casa da tia Jim Jam, com motivos que nos recordam os dos nativos norte-americanos dos estados mais a sul, talvez de Coconino County… Na prancha de 12 de Agosto, os dois rectângulos vermelhos que ligam as vinhetas no centro poderão ser vistas como passadiços do cais onde decorre a acção. Na de 9 de Setembro, os elementos laranjas que ligam as vinhetas serão pequenos e subtis arcobotantes desses edifícios de papel. A 21 desse mês, os elementos triangulares parecem compor uma espécie de equação matemática visual, em que a multiplicação e adição sucessiva de cada uma das seis vinhetas leva ao resultado da última. As cores também terão a sua importância, ora jogando pelo contraste (através da combinação de cores complementares, por exemplo) ora pela coincidência cromática com um qualquer objecto. Ou então assumindo uma importância mais disseminada, como naquela da prancha de 16 de Setembro, que a tromba-de-água não apenas lança os Kin-der-Kids para fora da rota, para fora do barco, como ainda para fora do espaço branco da prancha para um outro mais hostil. Num exemplo totalmente contrário, a prancha de 19 de Agosto não tem qualquer destes elementos. Ela mostra um episódio passado num jogo de futebol inglês. Conterá essa ausência também alguma significação? Será esse jogo… “square”?
A figuração das personagens é também muito singular, e mais uma vez Feininger marca uma diferença substancial quer dos estilos relativamente naturalistas-estilizados de McCay e Outcault, quer dos mais ligeiramente caricaturados mas ainda naturalistas como Opper ou Bud Fisher, quer ainda de estilos mais estilizados mas suaves, o “cute”, como o dos Kewpies que apareceriam mais tarde pela mão de Rose O’Neill. Todavia, há ainda um outro ponto importante da carreira de Feininger que entrosa aqui. Vezes sem conta se discute o facto de que Feiniger era, de uma forma muito diferenciada de todos os outros grandes autores de banda desenhada da sua era, um artista no seu sentido mais restrito (académico, estético, social, financeiro, etc.) - depreendendo-se assim a incontornável e inegável situação de que esta área criativa não tem de forma alguma o mesmo peso e papel que as verdadeiras artes. Feininger foi fundador do importantíssimo movimento ou grupo de artistas internacionais sediados na Alemanha Der Blaue Reiter, e membro do grupo mais restrito “Os Quatro Azuis”, com a magnífica presença de Paul Klee, Kandinsky e Alexei von Jawlensky, docente na Bauhaus, etc. O problema é que todas essas acções são coisas que fez depois da criação destas bandas desenhadas. Isto não significa que a banda desenhada foi algo que apenas pertenceu à sua “juventude”, esquecida depois se se tornar artista, mas que não poderemos procurar nas glórias artísticas e que lhe deram entrada no mundo das artes visuais fagulhas que possam ser empregues no seu passado.
Podemos, isso sim, tentar ver quais são as características que, presentes nas séries de banda desenhada, ganhariam formas totalizadas na sua carreira autónoma artística. O que se nota no punho de Feininger é já a sua verve expressionista, a forma como se liberta das regras academicizantes na construção das personagens para lhes incutir formas livres, uns cabeçudos, outros esguios, todos angulosos e cujos corpos nem sempre têm de respeitar as leis da gravidade, da proporção ou do funcionamento anatómico, e procurando sem dúvida algo que se tornaria regra de ouro em futuras personagens populares, que é a super-estilização que preside à união forma-personalidade. O aspecto cromático é também importante, assim como o das texturas subtis através de tramas espalhadas em cantos das manchas de cor (na reconstrução ideal de Caldas, ganha uma dimensão diferente). Todavia, e se bem que muitas dessas opções emergirão da leitura, fascínio e interesse que Feininger terá tido na Europa nos seus anos de formação, participando - como indica o prefácio - em revistas como Das Narrenschiff ou Ulk, mas provavelmente conhecendo igualmente os gigantes alemão Simplicissimus (é aqui que encontraremos, senão fontes de influência, para a afirmação do qual necessitaríamos de estudos, pelo menos de afinidades ou instrumentos idênticos, em nomes tais como os de Karl Arnold, Ragnvald Blix e, acima de todos, de Bruno Paul) a francesa L'assiette au beurre, há uma outra raiz nas escolas das artes visuais que se mantém no fabrico destas personagens.
Se observarmos com o mínimo de atenção a figuração destas personagens, poderemos fazer um exercício curioso. A tia Jim Jam talvez seja aquela em que o exercício seja mais fácil: será ela uma versão cartoon do famoso retrato feito por James M. Whistler da sua mãe? As restantes personagens poderiam também ser versões surpreendentes da história da arte. O primo Gussie uma corruptela dos Arnolfini de van Eyck? O trocadilho de “Piemouth” associando-se a Plymouth, terra dos Peregrinos, onde se deu o primeiro Thanksgiving, isto é, uma refeição comunal (e eventualmente apontado às representações pictóricas desses episódios)? O Mysterious Pete tirado de algum quadro romântico de um “highway man”? Um exercício a continuar, se instrumentos houver.
Apesar da sua curta vida, e da narrativa interrompida, a influência crítica desta obra é fortíssima, por estas e outras razões. Por exemplo, terá sido Heinz Edelmann, responsável pela imagética de Yellow Submarine, sido influenciado por este Feininger? O polícia que vemos no frontispício deste volume faz-nos crer assim… Não será o Japansky o primeiro robot amigável da história, ligando-se assim ao Astro Boy?
Quer The Kin-Der-Kids quer Wee Willie Winkie’s World são trabalhos que ressoam até aos nossos tempos, e uma edição como esta, de Manuel Caldas, é uma espécie de copo vibrantes que contribuem para a manutenção do eco - ou mais, até para a sua exponenciação, pelo trabalho de recuperação de uma qualidade prístina da sua arte. Uma breve comparação entre uma mesma vinheta da edição anterior disponível, da Dover (1980) e a presente mostra claramente onde reside a “limpeza” e “recuperação” imagética operada pelo editor português. Ao contrário de muitos outros autores que possam ter sido incrivelmente influentes no seu tempo imediato, ou tenham deixado a sua marca ou herança indelével no tempo, ou tenham dado muitos descendentes concretos, mas que podem não ter sobrevivido de outras formas mais estéticas - a capacidade da arte de outrora dialogar com o presente em curso como se fosse tão vivo quanto no seu tempo original (incluiremos aí quem… por mais que custe aos historiadores, McManus, Opper, Outcault?) Discutivelmente, repita-se. Mas Feininger tem uma sobrevida.
Nota final: a propósito do incansável e assombroso trabalho de Manuel Caldas, Manuel Espírito Santo lançou um projecto de homenagem ao trabalho dessa figura, para que fomos convidados a contribuir com um depoimento breve. E agradecemos por isso. Poderão visitá-lo aqui.
Está excelente Pedro.
ResponderEliminarObrigado pelo texto
Manuel Espirito Santo