A importância deste projecto reside mais na sua importância editorial do que nos seus frutos efectivos. A editora Barba Negra tem um catálogo atento à contemporaneidade no que diz respeito à linguagem da banda desenhada, quer em termos da produção nacional (brasileira) quer à internacional (com Debeurme, Amir e Khalil, Vivès, David B., Killofer), e de uma maneira variada em relação a géneros, estilos, escopos. Esta colecção ou revista, que dá pelo nome de 1000, é um encontro entre esta editora relativamente institucionalizada e o autor/empreendedor Rafael Coutinho, através do selo Cachalote. Trata-se da criação de um espaço de possibilidade de edição e circulação de novos autores, e valerá a pena citar o texto-súmula de todos os volumes, que serão alvo da nossa análise: “1000 possibilidades narrativas. 1000 dinheiros no bolso. Assim é a revista 1000, uma publicação de poucas páginas, sem palavras, mas com muito espaço para a experimentação”.
O projecto apresenta-se portanto de uma maneira formal - uma revista de formato aproximado ao A4, com um caderno em papel de cor e impresso a preto, com 16 páginas de história, com uma capa de gramagem superior -, financeira - supostamente os lucros são distribuídos directamente aos autores -, editorial/económica - com uma tiragem de 100 exemplares (mas cada exemplar tem a numeração das provas e parece chegar aos 300) - e estética - ausência de texto ou matéria verbal, abertura de temas ou géneros ou estilos gráficos.
Porém, quando o projecto reza querer atingir “possibilidades narrativas” ou “experimentação”, os projectos dados até agora a lume mostram-se algo contidos nessas mesmas possibilidades e abertura. Em princípio, o projecto continuará, mas os seis títulos surgidos até agora deram origem a este volume colectânea. Logo, somente o tempo dirá que tipo de experimentações viremos a testemunhar deste cadinho. Contudo, olhando somente para o que de facto se produziu, parece-nos ser algo limitada essa mesma abertura prometida.
Mesmo havendo a busca por significados abertos e não totalmente submetidos a um sentido unívoco e simples, todos os projectos apresentam protagonistas bem definidos (todos homens, se bem que Drink também tenha uma personagem feminina de importância) num enquadramento narrativo relativamente convencional, identificando-se um eixo temporal no qual a acção se desenvolve, o espaço ou espaços que se percorrem, e os eventos que se atravessam e fazem com que a situação inicial da personagem se altere. Se há casos em que parece haver uma pesquisa sobre um universo referencial “normal”, ainda que transformado por filtros de um imaginário externo - como no caso de Drink, de Rafael Coutinho, que poderia passar-se em qualquer cidade ocidental servida de bares, parques e estradas, ou Desvio, de Daniel Gisé, que parece beber de uma imagética cinematográfica e publicitária fixa nos Estados Unidos da década de 1950 -, ou em que se procura uma saída desse mesmo universo para encontrar um mundo de fábula ou fantasia - como La Naturalesa, de DW Ribatski, que abandona as ruas da sua pequena cidade para encontrar uma espécie de paraíso infernal, ou de O Plexo Holístico, de [Diego] Gerlach, que tem lugar num beco urbano para se testemunhar a batalha entre um aparente super-herói e um lobisomem - há um caso que cita o fundo comum dos contos tradicionais europeus - Bebê Gigante, de Tiago Elcerdo, parece dever-se a um conto dos Grimm - e outro que se abre a um mais livre cruzamento de referências díspares - Sim, de Gabriel Góes, é uma mini-saga num universo próprio.
Não há propriamente nestes projectos uma procura por novas soluções (ou desafios) em termos de figuração, composição, referencialidade, organização narrativa, relações axiomáticas entre os vários elementos passíveis de integração nas bandas desenhadas, técnicas ou metodologias. Algumas das histórias são até convencionais e referentes a géneros relativamente comuns - Drink e o humor, mesmo que adulto, Bebê Gigante e o conto folclórico, mesmo que atravessado por uma melancolia moderna, O Plexo Holístico e a “cena de briga” de super-heróis, mesmo que pós-modernos, Desvio e o melodrama, mesmo que psicológico. Mas num quadro alargado de referências, até mesmo Sim recordar-nos-á a tendência dos “art comics” contemporâneos norte-americanos, que têm sido construídos por colectivos como Fort Thunder, publicações como Diamond Comics e uma miríade de artistas. Desvio, por exemplo, se bem que jogue com toda a uma série de citações do cinema, publicidade e televisão norte-americana, explora uma plasticidade das figuras e das cenas à la Hernandez Bros., e um “surrealismo leve” à la Clowes.
A pequena história de Ribatski é aquela que parece abdicar da ideia de confronto psicológico ou físico entre duas personagens antagónicas, mas a verdade é que acaba por se tornar um exercício de confronto do si consigo mesmo: um homem atravessa uma cidade, e, numa igreja, encontra uma passagem subterrânea que o leva a uma floresta, onde uma mulher lhe oferta uma maçã e seguem-se delírios em torno de imagens sexuais e reflexos… O simbolismo é tanto estruturado como banal. A paginação simples e o desenho solto de Ribatski, que nos recorda pessoalmente a abordagem de André Lemos, serve bem o seu propósito, tornando esta narrativa afinal linear num bom exemplo de catarse, possivelmente.
Gabriel Góes apresenta uma espécie de aventura de uma personagem que se transmuta e entra num diálogo de trocas e expectativas com outras criaturas num ambiente fantástico, e é como se Brinkman e Chippendale encontrassem aqui um discípulo lançando as bases de um universo similar, ainda que graficamente utilize técnicas aparentadas de Charles Burns e companhia. Gerlach parece empregar de novo os mesmos instrumentos de reapropriação e remistura presentes em A.D.B., e apesar de ser a história que menos transformações internas apresenta, é aquela que parece mais solta na sua “experimentação”, precisamente abraçando um género convencional e desdobrando-o por dentro.
Voltamos a repetir que o valor do projecto 1000 estará decerto em agregar num mesmo espaço editorial toda uma série de autores contemporâneos brasileiros que têm trabalhado em plataformas independentes e alternativas, de fanzines a locais online, de antologias e concursos, e que poderão não estar interessados jamais em cumprir regras e expectativas em relação ao “grande mercado”, o que não significa que não tenham em si instrumentos para criar HQs que melhor respondem aos ritmos e respirações dessa arte no nosso tempo.
(Sem interesse qualquer em alimentar controvérsias desnecessárias, é curioso ver o tipo de oportunidades, por mais limitadas que possam parecer, que uma editora associada ao grupo Leya no Brasil está disposta a dar aos autores mais novos e menos convencionais, trazendo à tona um tema interessante, que é a da “expectativa de mercado” e a do “espaço a experimentação”, questão que, entre nós, parece estar sempre votada a uma ignorância mútua.)
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta das publicações.
30 de abril de 2012
29 de abril de 2012
The Year of the Pioneer. Andreea Chirica (Hardcomics)
Daquilo que nos foi dado a entender, a Roménia não é um país no qual a banda desenhada esteja enraizada de forma contínua. Apesar de historicamente terem tido, de resto como toda a Europa, publicações sob a forma de jornais e revistas com banda desenhada, sobretudo infantil, mas com alguns exemplos de sátiras sociais e políticas, e a geração de 1970 ter tido também alguma exposição a “clássicos” europeus, contemporaneamente a banda desenhada não é uma das disciplinas tentadas pelos artistas, mesmo de forma comercial. Os quiosques não vendem quase banda desenhada nenhuma, as livrarias generalistas raramente têm títulos, e muito menos secções. Apenas algumas livrarias especializadas ou com uma escolha mais judiciosa terão alguma escolha, entre importações a produções nacionais (onde se encontravam exemplos esparsos, nunca repetidos, o que faz imaginar problemas de distribuição ou de quantidade de edição). The Book of George, por exemplo, é uma espécie de embaixada do que se produz localmente, mas digamos que o seu gesto é muito mais único e isolado do que, se nos permitem, Tinta nos Nervos. Se este catálogo apenas é sinal de uma escolha entre um panorama bem mais diversificado e com vários graus de fortuna, aquele projecto romeno quase cobre os autores que ainda procuram fazer manter esta linguagem naquele país. Comparativamente, Portugal tem uma cena dinâmica, viva e com leitores! A nossa visita ao Salão Europeu local serviu, não para um estudo cabal e exaustivo, mas pelo menos para uma exposição à cena local, à discussão com alguns autores, e apercebermo-nos de que o impacto é ainda mais circunscrito. E, de facto, sem leitores, por menor número que constituam, é difícil que um autor ou uma linguagem medre.
Tal não significa, porém, que não haja projectos de interesse extra-nacional. Quer dizer, projectos que parecem ter contornos suficientemente desenvoltos para serem lidos para além das suas circunstâncias locais. É claro que esta interpretação é perigosa, pois o que pode constituir interesse a um leitor pode não o ser para outro, e há quem se mova por questões estritamente locais, mas convenhamos que há nível de opacidade que torna uma obra ilegível por falta de compreensão cultural… Não falamos da língua, atenção, mas sim do tratamento da matéria narrativa, gráfica, visual, temática, em questão. A primeira de duas publicações que trazemos aqui à consideração é The Year of the Pioneer. Trata-se de um retrato da Roménia de 1986, sob o regime, cada vez mais brutal e absurdo, de Ceaucescu, sob a perspectiva de uma jovem menina de sete anos, projecção da própria autora, Andreea Chirica (não conseguimos utilizar o diacrítico do “c”).
O livro é composto não tanto por uma narrativa contínua e de episódios encaixados, mas antes de cenas singulares seguidas. Cada página apresenta uma imagem, as mais das vezes, com texto em legenda, e de vez em quando alguns balões de fala, que constituem por sua vez uma cena isolada. Uma colecção de postais, de memórias, apontamentos diarísticos quase. E tudo apresentado sob a forma de um estilo ingénuo, de desenhos simples, ditos “infantis”.
Acreditamos que o gesto de Satrapi tenha aqui uma influência marcante. Afinal, esse livro, apesar de ter surgido num circuito independente de publicação, viria a ter um sucesso incomparável com qualquer outra obra nas mesmas circunstâncias, sendo o seu único par o Maus de spiegelman. Porém, a o estilo naïf de Satrapi, que procurava devolver aos seus leitores uma certa perspectiva infantil da pequena Marji (que funcionando melhor na primeiríssima parte, vai perdendo a sua força no desenvolvimento do livro, mas que ganha uma estilização equilibrada nos outros projectos da autora), seria rapidamente adoptado por algumas autoras, sendo o caso, também com sucesso, de Zeina Abirached, o mais programático. O desenho de Chirica é menos desenvolto que o de Satrapi e Abirached, recordando-nos antes o de Rosalind B. Penfold, ainda que integrando num outro programa. Ao passo que essa autora norte-americana transformava o seu estilo ingénuo numa espécie de curto apontamento para cimentar o seu trauma, Chirica tira partido dos seus desenhos ainda mais “infantis” (preferência pelo perfil ou pela vista frontal, redução dos traços dos rostos, uso expansivo dos brancos ou de manchas negras a feltro, dispensa de pormenores realistas, esquematização dos espaços e dos objectos, abolição da perspectiva, uso de texto de forma decorativa/expressiva) para recriar, na sua própria matéria, o ano de 1986, quando a autora tinha 7 anos, ou, o ano dos “pioneiros”, isto é, um estádio que todas as crianças atravessavam no seu programa educativo do regime. É importante, de facto, compreender que o livro não apresenta as memórias de uma mulher em 2011 recordando-se da sua infância - projecção que obrigaria à distância da narração mas possivelmente das estratégias visuais -, mas antes surge como sendo um diário, no momento, da parte da pequena Andreea.
Andreea nunca faz juízos de valor ao que a rodeia. Mas a sua própria exposição faz o leitor compreender os problemas inerentes a essa realidade, agora longínqua no tempo. A Roménia moderna ainda tem resquícios do regime de Ceaucescu, mas ao mesmo tempo a emergência do capitalismo apagou traços drásticos desse tempo (se bem que introduzindo outros problemas, também eles graves). Presumimos, portanto, que este contraste com um passado seja tão significativo para um leitor estranho do que para aqueles que partilham esta experiência com Chirica, se não, naturalmente, mais ainda para estes segundos. O facto de haver apenas um dia com água quente por semana, apenas uma marca de champô, haver quotas obrigatórias para as crianças de entregarem papel e vidro para reciclar, a consideração de “falta de patriotismo” por não se ter jeito num desporto com bola, os inúmeros hinos e canções patrióticas que atravessam a vida escolar, a pressão sobre as crianças para se tornaram “pioneiros” (uma espécie de grau do regime, à escuteiros ou lobitos) contrastando com a passagem automática a nível nacional, o exercício de pedagogia prepotente da parte dos “camaradas professores”, a convoluta “caça” aos alimentos, o mal-disfarçado trabalho forçado de crianças em idade escolar no campo, o agradecimento que se faz ao “amado partido” pela falta de aquecimento nas escolas pois isso “torna-nos fortes”, a macambúzia existência quotidiana, tudo isso vai tecendo um retrato sobre algo a que não se deseja retornar, e sobre o qual não pode haver uma nostalgia muito séria. Algumas leis, como as da circulação dos carros por números pares ou ímpares ao fim-de-semana, é tão arbitrária e patética, que se compreende de onde emergem as imagens de Ionesco. Porém, é precisamente pela autora optar pela discursividade da menina-personagem, e não o seu julgamento de adulta, que ainda assim perpassa por este livro uma espécie de aura de leveza, de brincadeira, dando-nos a ver a forma como a(s) criança(s) é capaz de tirar algum partido positivo e alegre da mais profunda das depressões económicas e de liberdades individuais. Como, por exemplo, brincar ao faz de conta através das páginas de um luxuoso catálogo de compras ocidental (Neckermann).
De certa forma, poderíamos mesmo imaginar que este método de assimilar tal qual as percepções originais (ou a sua impressão) revela mais o absurdo da época do que um discurso culturalmente ancorado no presente e tecendo críticas directas desmontando essas mesmas realidades antigas. Contudo, existem pistas desse jogo. Na última imagem do livro, antes de um suplemento sobre frases feitas ou palavras que usa no livro, a pequena Andreea volta à escola. Uma colega diz que “mal pode esperar”, mas a protagonista declara, para si mesma talvez, “não posso esperar crescer e esquecer tudo isto!”. Esquecer, como compreendemos, não esqueceu, mas exorciza essa memória ao colocá-las neste mecanismo criativo.
O livro está em inglês, mas muitas vezes o romeno emerge ora nas construções frásicas ou em expressões e nomes de objectos e marcas, como se fosse impossível a sua transição linguística. Ao mesmo tempo, nalgumas instâncias, como os nomes dos jogos infantis (como o “elasticu” que não é mais do que o “jogo do elástico” idêntico que conhecemos), ou as lenga-lengas, surgem tal qual como se desejasse marcar não tanto a “romeneidade” infrangível mas a sobrevivência intacta da memória da infância, como que congelada, e a sua tradução “quebraria” essa mesma memória. Seja como for, esses termos são então alvo do tal suplemento final, o qual também não se apresenta com a distância temporal esperada, mas inscrita no tempo da ocorrência, tornando The Year of the Pioneer um projecto muito interessante para o contínuo edifício de como a banda desenhada responde às questões da memória pessoal, colectiva, histórica, as resoluções dos traumas e a distância focalizadora que esta arte permite confundir.
Tal não significa, porém, que não haja projectos de interesse extra-nacional. Quer dizer, projectos que parecem ter contornos suficientemente desenvoltos para serem lidos para além das suas circunstâncias locais. É claro que esta interpretação é perigosa, pois o que pode constituir interesse a um leitor pode não o ser para outro, e há quem se mova por questões estritamente locais, mas convenhamos que há nível de opacidade que torna uma obra ilegível por falta de compreensão cultural… Não falamos da língua, atenção, mas sim do tratamento da matéria narrativa, gráfica, visual, temática, em questão. A primeira de duas publicações que trazemos aqui à consideração é The Year of the Pioneer. Trata-se de um retrato da Roménia de 1986, sob o regime, cada vez mais brutal e absurdo, de Ceaucescu, sob a perspectiva de uma jovem menina de sete anos, projecção da própria autora, Andreea Chirica (não conseguimos utilizar o diacrítico do “c”).
O livro é composto não tanto por uma narrativa contínua e de episódios encaixados, mas antes de cenas singulares seguidas. Cada página apresenta uma imagem, as mais das vezes, com texto em legenda, e de vez em quando alguns balões de fala, que constituem por sua vez uma cena isolada. Uma colecção de postais, de memórias, apontamentos diarísticos quase. E tudo apresentado sob a forma de um estilo ingénuo, de desenhos simples, ditos “infantis”.
Acreditamos que o gesto de Satrapi tenha aqui uma influência marcante. Afinal, esse livro, apesar de ter surgido num circuito independente de publicação, viria a ter um sucesso incomparável com qualquer outra obra nas mesmas circunstâncias, sendo o seu único par o Maus de spiegelman. Porém, a o estilo naïf de Satrapi, que procurava devolver aos seus leitores uma certa perspectiva infantil da pequena Marji (que funcionando melhor na primeiríssima parte, vai perdendo a sua força no desenvolvimento do livro, mas que ganha uma estilização equilibrada nos outros projectos da autora), seria rapidamente adoptado por algumas autoras, sendo o caso, também com sucesso, de Zeina Abirached, o mais programático. O desenho de Chirica é menos desenvolto que o de Satrapi e Abirached, recordando-nos antes o de Rosalind B. Penfold, ainda que integrando num outro programa. Ao passo que essa autora norte-americana transformava o seu estilo ingénuo numa espécie de curto apontamento para cimentar o seu trauma, Chirica tira partido dos seus desenhos ainda mais “infantis” (preferência pelo perfil ou pela vista frontal, redução dos traços dos rostos, uso expansivo dos brancos ou de manchas negras a feltro, dispensa de pormenores realistas, esquematização dos espaços e dos objectos, abolição da perspectiva, uso de texto de forma decorativa/expressiva) para recriar, na sua própria matéria, o ano de 1986, quando a autora tinha 7 anos, ou, o ano dos “pioneiros”, isto é, um estádio que todas as crianças atravessavam no seu programa educativo do regime. É importante, de facto, compreender que o livro não apresenta as memórias de uma mulher em 2011 recordando-se da sua infância - projecção que obrigaria à distância da narração mas possivelmente das estratégias visuais -, mas antes surge como sendo um diário, no momento, da parte da pequena Andreea.
Andreea nunca faz juízos de valor ao que a rodeia. Mas a sua própria exposição faz o leitor compreender os problemas inerentes a essa realidade, agora longínqua no tempo. A Roménia moderna ainda tem resquícios do regime de Ceaucescu, mas ao mesmo tempo a emergência do capitalismo apagou traços drásticos desse tempo (se bem que introduzindo outros problemas, também eles graves). Presumimos, portanto, que este contraste com um passado seja tão significativo para um leitor estranho do que para aqueles que partilham esta experiência com Chirica, se não, naturalmente, mais ainda para estes segundos. O facto de haver apenas um dia com água quente por semana, apenas uma marca de champô, haver quotas obrigatórias para as crianças de entregarem papel e vidro para reciclar, a consideração de “falta de patriotismo” por não se ter jeito num desporto com bola, os inúmeros hinos e canções patrióticas que atravessam a vida escolar, a pressão sobre as crianças para se tornaram “pioneiros” (uma espécie de grau do regime, à escuteiros ou lobitos) contrastando com a passagem automática a nível nacional, o exercício de pedagogia prepotente da parte dos “camaradas professores”, a convoluta “caça” aos alimentos, o mal-disfarçado trabalho forçado de crianças em idade escolar no campo, o agradecimento que se faz ao “amado partido” pela falta de aquecimento nas escolas pois isso “torna-nos fortes”, a macambúzia existência quotidiana, tudo isso vai tecendo um retrato sobre algo a que não se deseja retornar, e sobre o qual não pode haver uma nostalgia muito séria. Algumas leis, como as da circulação dos carros por números pares ou ímpares ao fim-de-semana, é tão arbitrária e patética, que se compreende de onde emergem as imagens de Ionesco. Porém, é precisamente pela autora optar pela discursividade da menina-personagem, e não o seu julgamento de adulta, que ainda assim perpassa por este livro uma espécie de aura de leveza, de brincadeira, dando-nos a ver a forma como a(s) criança(s) é capaz de tirar algum partido positivo e alegre da mais profunda das depressões económicas e de liberdades individuais. Como, por exemplo, brincar ao faz de conta através das páginas de um luxuoso catálogo de compras ocidental (Neckermann).
De certa forma, poderíamos mesmo imaginar que este método de assimilar tal qual as percepções originais (ou a sua impressão) revela mais o absurdo da época do que um discurso culturalmente ancorado no presente e tecendo críticas directas desmontando essas mesmas realidades antigas. Contudo, existem pistas desse jogo. Na última imagem do livro, antes de um suplemento sobre frases feitas ou palavras que usa no livro, a pequena Andreea volta à escola. Uma colega diz que “mal pode esperar”, mas a protagonista declara, para si mesma talvez, “não posso esperar crescer e esquecer tudo isto!”. Esquecer, como compreendemos, não esqueceu, mas exorciza essa memória ao colocá-las neste mecanismo criativo.
O livro está em inglês, mas muitas vezes o romeno emerge ora nas construções frásicas ou em expressões e nomes de objectos e marcas, como se fosse impossível a sua transição linguística. Ao mesmo tempo, nalgumas instâncias, como os nomes dos jogos infantis (como o “elasticu” que não é mais do que o “jogo do elástico” idêntico que conhecemos), ou as lenga-lengas, surgem tal qual como se desejasse marcar não tanto a “romeneidade” infrangível mas a sobrevivência intacta da memória da infância, como que congelada, e a sua tradução “quebraria” essa mesma memória. Seja como for, esses termos são então alvo do tal suplemento final, o qual também não se apresenta com a distância temporal esperada, mas inscrita no tempo da ocorrência, tornando The Year of the Pioneer um projecto muito interessante para o contínuo edifício de como a banda desenhada responde às questões da memória pessoal, colectiva, histórica, as resoluções dos traumas e a distância focalizadora que esta arte permite confundir.
28 de abril de 2012
L’île panorama. Ranpo Edogawa e Suehiro Maruo (Sakka)
L’île panorama é uma tragédia de enganos. Um escritor sem grande fortuna, económica ou editorial, Hirosuké Hitomi, que sonha com uma espécie de paraíso terrestre no qual o hedonismo e a sumptuosidade são lei, aproveita a morte de um antigo colega, o industrial Genzaburô Komoda, para se fazer passar pelo mesmo, aproveitando a sua fortuna para levar avante o seu tremendo projecto. Hitomi tenta realizar esse projecto ficcionalmente pelas suas histórias, uma das quais, “História de Ra”, vemos em curso de produção e de aceitação, mas ele na verdade nutre o desejo de a realizar no mundo. Uma vez que Hitomi e Komoda são parecidos, e costumavam mesmo confundir-se na juventude, e até chamados de “irmãos”, esse engano, pelo menos numa primeira fase, é fácil de levar a cabo.
Esta história é também uma fiada de citações encaixadas. Afinal, esta é uma adaptação de um conto de 1926 de Edogawa Ranpo, por sua vez decalcada de Poe. As citações ou influências do escritor Ranpo, apontado como um dos precursores, no Japão, da emergência de uma literatura “policial” ou “de mistério”, são claríssimas e tornadas explícitas, mesmo visualmente, no livro. A primeira dessas fontes é, então, Edgar Allan Poe (repare-se como o pseudónimo deste escritor, chamado Tarô Hirai, é uma corruptela do nome do seu ídolo norte-americano, apesar de significar literalmente, como explica o posfácio, “passeio ao longo do rio Edo”), e a ideia base de L’île panorama é baseada num conto de Poe intitulada “The Domain of Arnheim”, citada textualmente, no qual um homem com uma riqueza imensa se dedica à criação de um paraíso terrestre, e em que esse mesmo espaço e a viagem que permite agem enquanto exercício de exploração dos recessos da mente humana, das suas fantasias e os limites desta, e os seus preços morais, espirituais e até físicos. Como não poderia deixar de ser, o filtro de Baudelaire (a palavra francesa que traduzimos por “passeio” no pseudónimo é, na verdade, flânerie), pelos seus Paraísos Artificiais, está também presente, se bem que os delírios de Hitomi não sejam despertos por quaisquer drogas, mas essa sua obsessão criativa. Finalmente, um termo de comparação produtivo seria um outro conto, desta feita de J. L. Borges, intitulado “O impostor inverosímil Tom Castro” (em História Universal da Infâmia), na qual um homem também se faz passar por outro, mas cuja estratégia é simples e muito diversa da que ocorre neste livro: se em L’île panorama há uma parecença física entre Hitomi e Komoda da que o primeiro tira partido, no caso de Orton/Castro não há qualquer semelhança, mas é precisamente disso que ele tira partido, pela distância e estranheza que isso instala nessa situação extrema. A negociação a que Hitomi se entrega para ir disfarçando a sua verdadeira identidade é feita um pouco apressada e superficialmente, mas a economia do relato a isso obriga, sendo mais importante as consequências do seu projecto.
De certa forma, talvez o tema de L’île panorama seja precisamente a criação. Afinal, Hitomi sente que os seus projectos literários (mas é significativo que ele faça desenhos complexos e detalhados do seu paraíso, trazendo à superfície relações que tanto podem revelar da literatura ilustrada como da própria banda desenhada) têm um limite de aceitabilidade, e por isso não terão grande fortuna em termos editoriais, e esta oportunidade de usurpar uma personalidade, a de Komoda, não é feita em nome de um qualquer desejo mesquinho associado às mais comuns paixões (dinheiro, sexo, poder, etc.), mas sim a esse fito transcendente que é a criação da ilha (se bem que possam desembocar depois naquelas mesmas paixões “baixas”).
Como diz um dos trabalhadores, numa pausa, “Será que ele conta mesmo construir um parque de atracções? (…) Não sei bem o que será… mas em todo o caso é outra coisa” (pg. 125). Dos seus primeiros planos “amadores” à sua versão literária, e depois os primeiros encargos, os momentos da construção e a revelação das construções ilusórias, o contrato dos performers, a introdução de circos, espectáculos, cascatas, oceanários subaquáticos, orgias e cozinha radical (tubarão inteiro recheado de marisco no forno), é como se a Ilha Panorama emergisse sob o nosso olhar, com cada página mostrando mais um canto, mais um pormenor, mais uma maravilha e mais um fascínio.
Não conhecendo o conto de Edogawa, é impossível determinar que partes serão decalcadas do texto original e quais as adições de Maruo. No entanto, à medida que a construção e apresentação da ilha se fazem e esta inaugura, os prazeres a que os seus utilizadores se entregam parecem estar muito próximos do território habitual do autor japonês, o ero-guro que lhe é reconhecido.
Apesar da arte de Maruo (em termos não só figurativos mas igualmente a nível da composição de página, de elementos gráficos decorativos ou diegéticos, e até mesmo as onomatopeias - nesta edição muito bem adaptadas) ser em si mesma de uma elegância extrema, ofertando às suas splash pages mais dramáticas ou representativas dos delírios oníricos das suas personagens um peso e qualidade icónicos muito próximos da ilustração, quer dizer, insuflando ao longo da sua narrativa momentos de pausa visual que pedem ao leitor uma concentração e leitura paciente que será recompensada, e não a mais tipificada rapidez de leitura da mangá comercial, essa mesma elegância ganha com a própria matéria do livro. A moda dos anos 1920, um dos momentos altos da adopção da parte dos japoneses de costumes e modas ocidentais (mormente do que se entendia serem os centros da cultura e da indústria da época, Estados Unidos, Reino Unido e, em menor escala, França) encontra-se aqui marchetada ao conhecido e detalhado estilo do mangaka. E a própria sumptuosidade do projecto de Hitomi permite que se encontrem variadíssimas citações visuais que bebem um pouco de toda a história da arte, sobretudo europeia - de certa maneira, algo que corresponderia a uma forma de japonesisme invertido: o fascínio pelas “coisas da Europa” transplantadas e mistificadas. Assim, vemos pequenas peças escultóricas que tanto citam fontes de Florença como da estatuária clássica, como jardins, palacetes, fontes, e até artistas de performance espelhando composições de Böcklin ou de Bosch, e cruzamentos interculturais que parecem revelar tanto das 1001 Noites como do Decameron. Veja-se esta cena, da morte da mulher de Komoda às mãos de Hitomi, repetindo o tema da Ofélia de Millais.
Como é de esperar, o reverso da fortuna vem sob a forma de um desvendamento dramático, e às mãos de um detective (fechando o ciclo do escritor ficcional e citando, em mise en abîme, o género do escritor real). Uma vez que uma das composições citadas de Bosch é a fonte d’O Jardim das Delícias, o qual surge duplamente no Paraíso e no mundo terreno mas neste revelando falhas e deterioração, adivinha-se o mesmo para a grande ilha desta história. Os pormenores de abertura e fecho desta narrativa com a morte do Imperador Taishô, e uma cena num panorama da guerra na Manchúria, procura-se também identificar a decadência do Japão imperalista e colonialista de então, de uma maneira enviesada.
Se por um lado podemos ler L’île panorama como um conto de contornos simples, em torno desse engano e troca de personalidades, por outro a pesquisa operada por Ranpo/Maruo é mais produtiva, e versa o sacrifício a que um homem se pode entregar em busca da realização de um sonho. Se é um sonho verdadeiro, não terá realização possível, ou dissipar-se-ia no exacto momento da sua realização. Mas se não for procurada a sua realização, então é uma mera fantasia, passageira, e não algo que defina e mova essa mesma pessoa. Além do mais, é também uma questão colocada à moral mais profunda do ser humano, e até aos limites da sua liberdade: um homem ou uma mulher verdadeiramente livres são livres para fazer o mal (ou não seriam totalmente livres). Portanto, como sopesar o mal e a realização da obsessão?
Esta história é também uma fiada de citações encaixadas. Afinal, esta é uma adaptação de um conto de 1926 de Edogawa Ranpo, por sua vez decalcada de Poe. As citações ou influências do escritor Ranpo, apontado como um dos precursores, no Japão, da emergência de uma literatura “policial” ou “de mistério”, são claríssimas e tornadas explícitas, mesmo visualmente, no livro. A primeira dessas fontes é, então, Edgar Allan Poe (repare-se como o pseudónimo deste escritor, chamado Tarô Hirai, é uma corruptela do nome do seu ídolo norte-americano, apesar de significar literalmente, como explica o posfácio, “passeio ao longo do rio Edo”), e a ideia base de L’île panorama é baseada num conto de Poe intitulada “The Domain of Arnheim”, citada textualmente, no qual um homem com uma riqueza imensa se dedica à criação de um paraíso terrestre, e em que esse mesmo espaço e a viagem que permite agem enquanto exercício de exploração dos recessos da mente humana, das suas fantasias e os limites desta, e os seus preços morais, espirituais e até físicos. Como não poderia deixar de ser, o filtro de Baudelaire (a palavra francesa que traduzimos por “passeio” no pseudónimo é, na verdade, flânerie), pelos seus Paraísos Artificiais, está também presente, se bem que os delírios de Hitomi não sejam despertos por quaisquer drogas, mas essa sua obsessão criativa. Finalmente, um termo de comparação produtivo seria um outro conto, desta feita de J. L. Borges, intitulado “O impostor inverosímil Tom Castro” (em História Universal da Infâmia), na qual um homem também se faz passar por outro, mas cuja estratégia é simples e muito diversa da que ocorre neste livro: se em L’île panorama há uma parecença física entre Hitomi e Komoda da que o primeiro tira partido, no caso de Orton/Castro não há qualquer semelhança, mas é precisamente disso que ele tira partido, pela distância e estranheza que isso instala nessa situação extrema. A negociação a que Hitomi se entrega para ir disfarçando a sua verdadeira identidade é feita um pouco apressada e superficialmente, mas a economia do relato a isso obriga, sendo mais importante as consequências do seu projecto.
De certa forma, talvez o tema de L’île panorama seja precisamente a criação. Afinal, Hitomi sente que os seus projectos literários (mas é significativo que ele faça desenhos complexos e detalhados do seu paraíso, trazendo à superfície relações que tanto podem revelar da literatura ilustrada como da própria banda desenhada) têm um limite de aceitabilidade, e por isso não terão grande fortuna em termos editoriais, e esta oportunidade de usurpar uma personalidade, a de Komoda, não é feita em nome de um qualquer desejo mesquinho associado às mais comuns paixões (dinheiro, sexo, poder, etc.), mas sim a esse fito transcendente que é a criação da ilha (se bem que possam desembocar depois naquelas mesmas paixões “baixas”).
Como diz um dos trabalhadores, numa pausa, “Será que ele conta mesmo construir um parque de atracções? (…) Não sei bem o que será… mas em todo o caso é outra coisa” (pg. 125). Dos seus primeiros planos “amadores” à sua versão literária, e depois os primeiros encargos, os momentos da construção e a revelação das construções ilusórias, o contrato dos performers, a introdução de circos, espectáculos, cascatas, oceanários subaquáticos, orgias e cozinha radical (tubarão inteiro recheado de marisco no forno), é como se a Ilha Panorama emergisse sob o nosso olhar, com cada página mostrando mais um canto, mais um pormenor, mais uma maravilha e mais um fascínio.
Não conhecendo o conto de Edogawa, é impossível determinar que partes serão decalcadas do texto original e quais as adições de Maruo. No entanto, à medida que a construção e apresentação da ilha se fazem e esta inaugura, os prazeres a que os seus utilizadores se entregam parecem estar muito próximos do território habitual do autor japonês, o ero-guro que lhe é reconhecido.
Apesar da arte de Maruo (em termos não só figurativos mas igualmente a nível da composição de página, de elementos gráficos decorativos ou diegéticos, e até mesmo as onomatopeias - nesta edição muito bem adaptadas) ser em si mesma de uma elegância extrema, ofertando às suas splash pages mais dramáticas ou representativas dos delírios oníricos das suas personagens um peso e qualidade icónicos muito próximos da ilustração, quer dizer, insuflando ao longo da sua narrativa momentos de pausa visual que pedem ao leitor uma concentração e leitura paciente que será recompensada, e não a mais tipificada rapidez de leitura da mangá comercial, essa mesma elegância ganha com a própria matéria do livro. A moda dos anos 1920, um dos momentos altos da adopção da parte dos japoneses de costumes e modas ocidentais (mormente do que se entendia serem os centros da cultura e da indústria da época, Estados Unidos, Reino Unido e, em menor escala, França) encontra-se aqui marchetada ao conhecido e detalhado estilo do mangaka. E a própria sumptuosidade do projecto de Hitomi permite que se encontrem variadíssimas citações visuais que bebem um pouco de toda a história da arte, sobretudo europeia - de certa maneira, algo que corresponderia a uma forma de japonesisme invertido: o fascínio pelas “coisas da Europa” transplantadas e mistificadas. Assim, vemos pequenas peças escultóricas que tanto citam fontes de Florença como da estatuária clássica, como jardins, palacetes, fontes, e até artistas de performance espelhando composições de Böcklin ou de Bosch, e cruzamentos interculturais que parecem revelar tanto das 1001 Noites como do Decameron. Veja-se esta cena, da morte da mulher de Komoda às mãos de Hitomi, repetindo o tema da Ofélia de Millais.
Como é de esperar, o reverso da fortuna vem sob a forma de um desvendamento dramático, e às mãos de um detective (fechando o ciclo do escritor ficcional e citando, em mise en abîme, o género do escritor real). Uma vez que uma das composições citadas de Bosch é a fonte d’O Jardim das Delícias, o qual surge duplamente no Paraíso e no mundo terreno mas neste revelando falhas e deterioração, adivinha-se o mesmo para a grande ilha desta história. Os pormenores de abertura e fecho desta narrativa com a morte do Imperador Taishô, e uma cena num panorama da guerra na Manchúria, procura-se também identificar a decadência do Japão imperalista e colonialista de então, de uma maneira enviesada.
Se por um lado podemos ler L’île panorama como um conto de contornos simples, em torno desse engano e troca de personalidades, por outro a pesquisa operada por Ranpo/Maruo é mais produtiva, e versa o sacrifício a que um homem se pode entregar em busca da realização de um sonho. Se é um sonho verdadeiro, não terá realização possível, ou dissipar-se-ia no exacto momento da sua realização. Mas se não for procurada a sua realização, então é uma mera fantasia, passageira, e não algo que defina e mova essa mesma pessoa. Além do mais, é também uma questão colocada à moral mais profunda do ser humano, e até aos limites da sua liberdade: um homem ou uma mulher verdadeiramente livres são livres para fazer o mal (ou não seriam totalmente livres). Portanto, como sopesar o mal e a realização da obsessão?
25 de abril de 2012
La Famille. Bastien Vivès (Shampooing)
Quer certo sector conservador da nossa sociedade ver a família como o pilar da sociedade. Bastará essa mesma afirmação para começar desde logo a fiar os típicos argumentos de causa-consequência para a moralidade do tecido social, das pessoas, da cultura… Convenhamos que, por princípio nominalista, concordamos com essa ideia, isto é, ver na família o cadinho da educação do cidadão, a educação pelo exemplo, pelo diálogo e o confronto. Porém, estamos em crer que o próprio conceito de “família” pode ser bem mais elástico do que esse mesmo sector poderá querer compreender. Por exemplo, aceitar famílias como as de… Jesus da Nazaré? Se a entendermos como unidade social e afectiva entre pessoas, ligadas por elos ora de sangue ora legais ora de amor, é bem possível que esse tal alicerce possa ter muitas e diversas formas e, se quiserem, modelos. Existem alguns projectos de banda desenhada que exploram a multivalência dessas combinações possíveis, e destacaria Dykes to Watch Out For, de Alison Bechdel, como exemplo de excelência.
Mas mesmo tendo em conta essa descrição conservadora e hierárquica de “família”, ela nem sempre significa uma mesma narrativa e distribuição de papéis e manutenção de “valores”. Como já havíamos escrito a propósito d’A fórmula da felicidade, todas as famílias são, por necessidade, “disfuncionais” e instalam problemas. Este pequeno livro de Vivès explora precisamente o desequilíbrio permanente nelas, pela via do exagero ridículo e, por isso, cómico.
Toda a capa é já um programa. Debaixo do nome do autor, num tipo de letra discreto, o título apresenta-se numa bandeirola, com as cores da bandeira de França. Imagina-se de imediato uma ideia de oficialidade, de discurso peremptório, consolidado, ancorado em princípios modelares e altos, do tema que se apresenta: a família. A imagem parece confirmar isso mesmo: duas crianças desenhadas na característica pincelada fina e de punho ágil de Vivès, em contornos simples quase recordando uma mera ilustração convencional de brochura. Conforme os princípios de divisão sexual que devem depois repetir-se na divisão de tarefas, de expectativas, de papéis, de comportamentos, o menino brinca com um carro, a menina com uma boneca. A expectativa da divisão sexual mantém-se também no acesso aos seus pensamentos, que parecem ecoar, de maneira igualmente mecânica e algo caricata, os princípios edipianos que gerem a infância, os quais, recordemo-nos das lições de Deleuze e Guattari a propósito de Klein, se não forem claramente detectados, se necessário, serão impostos à força. Mas desde logo este casamento parece-me paradoxal: o aspecto visual, inclusive o título, para apresentar uma forma oficial, sóbria, séria, de brochura a fazer rondar os serviços educativos da nação, o texto abrindo a um ou dois graus profundos de exploração do si e fazendo desde logo as tensões internas também acessíveis (e visíveis, pois o texto são signos que se vêem).
La Famille apresenta toda uma série de curtas histórias de um punhado de vinhetas cada uma, todas elas flutuando no espaço largamente branco da página. Vivès parece criar estas imagens quase num estado de distracção, de rapidez dos pincéis, demonstrando a sua subtil virtuosidade com meia-dúzia de traços. Essa leveza gráfica ajuda ao mesmo tempo a cumprir a “velocidade” de cada sketch, pautado por diálogos curtos, simples, contundentes e hilariantes. O que vemos são pequenas discussões, diálogos, conversas entre pais e filhos, irmãos, pessoas recordando-se dos pais, tudo em torno sobretudo da sexualidade, mas também de outros temas. E sempre, sempre, com uma franqueza brutal das pessoas a falar umas com as outras, uma franqueza que não existe pois ultrapassa quaisquer ideias possíveis de decoro, mesmo entre os que decidem pela franqueza e a maior abertura possível.
Os pais não têm qualquer pejo em demonstrar o seu racismo, classismo, machismo ou exercer os seus poderes de decisão, económica, política, ou outra: um pai recusa-se que a filha saia a uma discoteca, explicando-lhe como poderá vir a ser embriagada, violada e filmada, e que os vídeos porno não ajudarão no seu currículo profissional; outro recusa que a filha faça uma operação de redução mamária apesar dos problemas físicos que o peito lhe causa, pois ficaria com pena de perder de vista o mesmo; um pai partilha um cigarro com o filho de oito anos ao mesmo tempo que lhe explica o que é uma mamada (a mãe apenas lhes pede que fumem lá fora); outros pais contam como se conheceram à filha, mas é uma história absolutamente idiota de conversas por chats, mensagens no facebook e tweeter; dois amigos querem ser homossexuais pois isso permitir-lhes-ia, nas suas cabeças, que ficassem juntos para sempre desenhando bonecos, em vez de se terem de responsabilizar com uma família (ecoando a opinião de “bons pensantes” da “falta de utilidade” da homossexualidade?); uma tia oferece um revólver a sério ao sobrinho mais velho, e o mais novo fica com ciúmes; uma criança diz que não gosta de miúdas porque estão sempre a chorar e a fazer barulho e a avó diz-lhe que quando for ele quem chora por uma rapariga que as vai ver… Enfim: todas e quaisquer situações que são usualmente respondidas com compreensão e educação são aqui tratadas sob a forma de choques frontais.
O resultado é um exercício hilariante do que muitos pais, possivelmente, sonham fazer mas são impedidos pela máquina social (de certa forma, algo análogo ao projecto Go the F**k to Sleep/Vai dormir, f*da-se de Adam Mansbach e Ricardo Cortés).
Existem muitos momentos em que as menções ao universo da criação da banda desenhada, ou até mesmo a títulos anteriores de Vivès, aproximam algumas das anedotas à auto-ficção. Nunca as personagens de uma curta história se repetem (pelo menos, aparentemente), se bem que isso não seja importante: cada unidade narrativa é autónoma, e todas elas devem ser entendidas de uma maneira metonímica, senão mesmo alegórica. Mas essas tais referências fazem pelo menos imaginar que pode mesmo tratar-se de uma maneira de Vivès, na sua vida pessoal (imaginamos, não inquirimos), de expelir fantasmas que não poderá encaminhar à própria família em construção.
Pois parece mesmo ser esse o objectivo deste pequeno livro: apesar de sinais de descontrução, ele é um método de pensar a sua construção. Alternativa.
Nota final: agradecimentos à família Debaecque, pela oferta.
16 de abril de 2012
Adventure Time. Pendleton Ward et. al (Kaboom!)
Temos repetido recentemente, sobretudo devido a estudos referentes à banda desenhada produzida através dos comic books, à ideia de serialização, que é garante de uma determinada fruição, bem diversa daquela patente na leitura de um livro ou de uma série de álbuns. Infelizmente, e repetimo-nos, pelo tipo de abordagem escolhida no lerbd, é muito raro, e até contraproducente, dar conta de leituras feitas regularmente desse formato, ao contrário da de colecções em trade paperbacks, por exemplo. No entanto, nem tudo o que se produz em formato comic book terá como finalidade vir a ser coleccionado em formato de livro, e há mesmo casos que vivem o mais enraizados possível nesse formato, que o é em termos económicos, editoriais, estruturais e estéticos. Um dos territórios, e encaixado num outro ainda que também é algo negligenciado no lerbd, é o dos comic books da banda desenhada infantil. As mais das vezes, quando se pensa na criação para crianças, pensa-se em estratégias anódinas, ou pior, pedagógicas, ou pior ainda, moralistas, ou tremendo, tudo isso ao mesmo tempo. Ou então pensa-se nos “clássicos” que estão desfasados a anos-luz da sociedade que nos rodeia e, mais importante, deveríamos construir.
Haveria seguramente outros exemplos a dar e/ou a seguir, mas queremos prestar atenção a um título em particular, que está associado a uma série de animação - ou desenhos animados, sem pejo - da Cartoon Network: Adventure Time, with Finn & Jake. Esta é uma série criada por Pendleton Ward, mas, como se quer nesta indústria em particular, tanto os episódios da série televisiva como os materiais desenvolvidos para esta revista são produzidos por outros autores, parte do esforço colectivo da indústria e do estúdio. A Kaboom! tem criado livros ora baseados em séries anteriores (como no caso dos Peanuts de Schulz) quer em outras séries de animação, e mesmo tem termos históricos, não estamos de forma alguma perante uma experiência inédita.
A série de televisão desenvolve-se a partir de premissas organizadas, isto é, há uma certa continuidade de episódio para episódio: se cada um tem uma história conclusiva, outros aspectos são desenvolvidos ao longo da série, uma estratégia muito típica da escrita contemporânea de televisão (é verdade que isso já existia noutros momentos da sua história, mas hoje em dia as séries norte-americanas pautam-se por esta economia). Daí se depreende que estas bandas desenhadas não demorem muito tempo na apresentação de cada personagem, elas são já familiares aos seus leitores, mesmo que não sejam necessariamente espectadores da série. Este princípio sempre foi (ou quase sempre) imperativo nas bandas desenhadas que adaptavam personagens de desenhos animados televisivos infanto-juvenis, desde as produções Disney à Hanna-Barbera, e mais recentemente todo o material da Nickelodeon ou da Cartoon Network.
Adventure Time conta as histórias de Finn, um rapaz humano - vestido como uma espécie de Max de Where the Wild Things Are mas preparado para aventuras urbanas -de uns 14 anos, e Jake, o seu cão com poderes de plasticidade. Ambos são “110%“ compinchas um do outro. Eles vivem na Land of Ooo, sendo amigos da Princesa Bubblegum e da Rainha Vampira Marceline, e antagonistas do Rei do Gelo, que parece estar a perseguir sempre princesas para se casar (mas ao mesmo tempo adora escrever “fan fiction” sobre os próprios Finn & Jake). Aparentemente, nada de muito estranho. No entanto, Adventure Time faz parte de uma nova forma de criar animação seriada para crianças, que tanto bebe de uma espécie de retro-cool em termos de referências culturais, como de modos de produção e publicidade (veja-se a origem da série), como ainda de uma certa atitude de liberdade e loucura que recentemente tem pautado este tipo de trabalho (veja-se Yo Gabba Gabba, Foster Home for Imaginary Friends, ou o mais famoso, por cá, Spongebob Squarepants). Pessoas que, de várias gerações, terão visto Pee-Wee Herman’s Playhouse ou Ren & Stimpy.
O aspecto que torna este - mas poder-se-iam falar de outros títulos, é certo - projecto interessante é que cada revista tem uma história principal (a actual escrita por Ryan North e desenhada por Shelli Paroline e Braden Lamb adivinha-se que continue por alguns números, em continuidade), mas também conta com histórias secundárias mais curtas e auto-conclusivas, para as quais são convidados vários artistas. Isto é prática corrente neste tipo de projectos, e o que aqui se nota é uma sobreposição muito curiosa entre o círculo de autores da banda desenhada alternativa e estas produções de banda desenhada infantil mais contemporânea, a qual também engloba uma experiência da contemporaneidade na maneira como misturam géneros, optam por uma estratégia visual muito vincadamente pós-moderna, a intricada rede de referências a outros textos culturais, etc. Daí que encontremos muitos nomes de autores famosos na área “adulta” a fazerem trabalhos - mesmo que curtos, mesmo que apenas ilustrações - para estas produções (e em termos financeiros, seguramente que recompensadores). Por exemplo, a Nickelodeon contava com Richard Sala, Nick Bertozzi, Craig Thompson ou Jason Lutes. Até agora (3 números), esta Adventure Time teve, pelo menos, Aaron Reiner, também ele autor de um dos mais interessantes livros de banda desenhada infantil de (nossa) recente memória, Spiral-bound, a nova estrela do momento da “art comics crowd”, Michael DeForge, e ainda Lucy Knisley e Zac Gorman (de quem mostramos esta história de uma página).
Isto implica que cada revista tenha mais do que um estilo gráfico na representação das personagens principais, algo que nada tem de surpreendente quer nos modos de trabalho da indústria norte-americana (vide mainstream) quer nas revistas históricas de banda desenhada infantil, que apresentava sempre várias histórias de durações variadas com vários artistas (recordam-se do Almanaque Disney, ou outras revistas da Abril traduzindo essas produções norte-americanas?). O importante está em que não se cria propriamente um “house style” fechado - como no caso paradigmático, ainda que tenha sofrido alterações recentemente, da Mônica e ca. de Maurício de Sousa -, mas antes um largo intervalo no interior do qual há a possibilidade de experimentar várias variações de linha, de composição, de escolhas cromáticas, etc. O convite a vários ilustradores para fazerem variantes de capas, ainda que aumentando o jogo económico típico (e cansativo) desta indústria, mostra também algumas possibilidades lúdicas e de formação de estilo. Este, diga-se de passagem, não está longe de tendências actuais quer junto a uma nova geração de autores de banda desenhada alternativa pós-Fort Thunder (presente sobretudo no círculo dos fanzines e small press) quer de toda uma forma de criar ilustração (como se vê, por exemplo, em revistas como a Anorak).
O encontro entre esses dois territórios - que são apenas descrições, e nada têm nem de incompatível nem de contraditório mas tampouco de convergente - é porém quase suave. O tipo de abordagem psicadélica (que Paper Rad fez linguagem principal), de reutilizações de estratégias da fantasia (como C.F. ou Brian Chippendale) ou da ficção científica (como Mat Brinkman), e de absurdo quase surreal (de Gary Panter, que participara activamente no programa de Paul Reubens/Pee Wee Herman, à, para sairmos do território americano, malta da Argh! ou da Les Requins Marteaux) repete-se aqui, e mãos dadas, ou fundidas, no trabalho destes autores.
Que encontramos em Adventure Time, então, como elementos disruptores de uma mais clássica, ou mais conservadora, abordagem na banda desenhada infantil? Brincadeiras como a chamada “quebra da quarta parede”, ou melhor dizendo, apartes directos ao leitor, consciência das personagens de que estão numa ficção de banda desenhada, fingimentos de anúncios, manipulação das expectativas dos leitores pelas estruturas típicas das histórias (como um “fim” que vem cedo demais), soluções deus ex machina - mas gozando consigo mesmas através de explicações em bom humor - para os problemas que se vão apresentando, etc. E, citamos novamente, a ficção que o Ice King escreve sobre Finn & Jake não deixa de ser um dispositivo caricato, quase convidando os leitores a fazerem o mesmo, alimentando a força da presença das histórias curtas.
Pendleton Ward explicou em entrevistas que esta ficção desenrolar-se-ia na nossa própria terra, mas num futuro pós-apocalíptico, em que a magia emergiria “de novo”. Isso é visível, na banda desenhada, nesta vinheta, em que Jake e Finn saltam por sobre um abismo criado pelo seu primeiro antagonista, The Lich, e vemos as várias camadas de terra que correspondem a vários momentos da história do planeta: a antepenúltima camada corresponderia, portanto, ao nosso estado de civilização (vemos objectos associados à existência do urbanismo dos séculos XX/XXI), seguido de uma camada mais fresca com o que parecem ser elementos deste tempo retro-mágico (uma caveira de um ser fantástico, espadas, baús, capacetes de cavaleiros, mas também um torpedo e a cabeça de um robot, possivelmente).
Se os sistemas culturais devem obedecer também aos imperativos selectivos do tempo, este “futuro” é tão distinto e distante no nosso próprio tempo com o nosso tempo o é das eras ou idades que nos antecederam. O filtro da ficção permite, porém, que a projecção aqui feita use livre e mescladamente elementos do passado quer reais quer fictícios (é notável como se fala de um “retorno da/à magia”). A diferenciação/comparticipação não é feita de um modo progressivo, à la ficção científica de antecipação social e cultural, mas sublinhando, a um só tempo, as possibilidades discursivas, transgressivas, humorísticas e transgenéricas permitidas por este feliz encontro entre o pós-modernismo e a criação para crianças, assim como pela exploração do retrocesso a um estado não-positivista da humanidade. Visto como positivo, também pode ser um regresso descomplexado a todas as fantasias típicas da infância, quando atar uma toalha à volta do pescoço é mesmo uma capa, ou um testo de panela é mesmo um escudo, ou um passa-montanhas com duas bolas de ping-pong é mesmo um capacete…
Talvez seja essa frescura e descomplexidade lúdica que torna Adventure Time, pejado de 1001 clichés e frases-feitas - mas mergulhando nisso com uma alegria contagiante -, num contributo sem pedagogia, moralismo ou expectativas de bom comportamento, e, logo, para o alargamento da banda desenhada enquanto território, e desta feita, dirigido de maneira tonta, e tão inteligente, aos mais novos.
Haveria seguramente outros exemplos a dar e/ou a seguir, mas queremos prestar atenção a um título em particular, que está associado a uma série de animação - ou desenhos animados, sem pejo - da Cartoon Network: Adventure Time, with Finn & Jake. Esta é uma série criada por Pendleton Ward, mas, como se quer nesta indústria em particular, tanto os episódios da série televisiva como os materiais desenvolvidos para esta revista são produzidos por outros autores, parte do esforço colectivo da indústria e do estúdio. A Kaboom! tem criado livros ora baseados em séries anteriores (como no caso dos Peanuts de Schulz) quer em outras séries de animação, e mesmo tem termos históricos, não estamos de forma alguma perante uma experiência inédita.
A série de televisão desenvolve-se a partir de premissas organizadas, isto é, há uma certa continuidade de episódio para episódio: se cada um tem uma história conclusiva, outros aspectos são desenvolvidos ao longo da série, uma estratégia muito típica da escrita contemporânea de televisão (é verdade que isso já existia noutros momentos da sua história, mas hoje em dia as séries norte-americanas pautam-se por esta economia). Daí se depreende que estas bandas desenhadas não demorem muito tempo na apresentação de cada personagem, elas são já familiares aos seus leitores, mesmo que não sejam necessariamente espectadores da série. Este princípio sempre foi (ou quase sempre) imperativo nas bandas desenhadas que adaptavam personagens de desenhos animados televisivos infanto-juvenis, desde as produções Disney à Hanna-Barbera, e mais recentemente todo o material da Nickelodeon ou da Cartoon Network.
Adventure Time conta as histórias de Finn, um rapaz humano - vestido como uma espécie de Max de Where the Wild Things Are mas preparado para aventuras urbanas -de uns 14 anos, e Jake, o seu cão com poderes de plasticidade. Ambos são “110%“ compinchas um do outro. Eles vivem na Land of Ooo, sendo amigos da Princesa Bubblegum e da Rainha Vampira Marceline, e antagonistas do Rei do Gelo, que parece estar a perseguir sempre princesas para se casar (mas ao mesmo tempo adora escrever “fan fiction” sobre os próprios Finn & Jake). Aparentemente, nada de muito estranho. No entanto, Adventure Time faz parte de uma nova forma de criar animação seriada para crianças, que tanto bebe de uma espécie de retro-cool em termos de referências culturais, como de modos de produção e publicidade (veja-se a origem da série), como ainda de uma certa atitude de liberdade e loucura que recentemente tem pautado este tipo de trabalho (veja-se Yo Gabba Gabba, Foster Home for Imaginary Friends, ou o mais famoso, por cá, Spongebob Squarepants). Pessoas que, de várias gerações, terão visto Pee-Wee Herman’s Playhouse ou Ren & Stimpy.
O aspecto que torna este - mas poder-se-iam falar de outros títulos, é certo - projecto interessante é que cada revista tem uma história principal (a actual escrita por Ryan North e desenhada por Shelli Paroline e Braden Lamb adivinha-se que continue por alguns números, em continuidade), mas também conta com histórias secundárias mais curtas e auto-conclusivas, para as quais são convidados vários artistas. Isto é prática corrente neste tipo de projectos, e o que aqui se nota é uma sobreposição muito curiosa entre o círculo de autores da banda desenhada alternativa e estas produções de banda desenhada infantil mais contemporânea, a qual também engloba uma experiência da contemporaneidade na maneira como misturam géneros, optam por uma estratégia visual muito vincadamente pós-moderna, a intricada rede de referências a outros textos culturais, etc. Daí que encontremos muitos nomes de autores famosos na área “adulta” a fazerem trabalhos - mesmo que curtos, mesmo que apenas ilustrações - para estas produções (e em termos financeiros, seguramente que recompensadores). Por exemplo, a Nickelodeon contava com Richard Sala, Nick Bertozzi, Craig Thompson ou Jason Lutes. Até agora (3 números), esta Adventure Time teve, pelo menos, Aaron Reiner, também ele autor de um dos mais interessantes livros de banda desenhada infantil de (nossa) recente memória, Spiral-bound, a nova estrela do momento da “art comics crowd”, Michael DeForge, e ainda Lucy Knisley e Zac Gorman (de quem mostramos esta história de uma página).
Isto implica que cada revista tenha mais do que um estilo gráfico na representação das personagens principais, algo que nada tem de surpreendente quer nos modos de trabalho da indústria norte-americana (vide mainstream) quer nas revistas históricas de banda desenhada infantil, que apresentava sempre várias histórias de durações variadas com vários artistas (recordam-se do Almanaque Disney, ou outras revistas da Abril traduzindo essas produções norte-americanas?). O importante está em que não se cria propriamente um “house style” fechado - como no caso paradigmático, ainda que tenha sofrido alterações recentemente, da Mônica e ca. de Maurício de Sousa -, mas antes um largo intervalo no interior do qual há a possibilidade de experimentar várias variações de linha, de composição, de escolhas cromáticas, etc. O convite a vários ilustradores para fazerem variantes de capas, ainda que aumentando o jogo económico típico (e cansativo) desta indústria, mostra também algumas possibilidades lúdicas e de formação de estilo. Este, diga-se de passagem, não está longe de tendências actuais quer junto a uma nova geração de autores de banda desenhada alternativa pós-Fort Thunder (presente sobretudo no círculo dos fanzines e small press) quer de toda uma forma de criar ilustração (como se vê, por exemplo, em revistas como a Anorak).
O encontro entre esses dois territórios - que são apenas descrições, e nada têm nem de incompatível nem de contraditório mas tampouco de convergente - é porém quase suave. O tipo de abordagem psicadélica (que Paper Rad fez linguagem principal), de reutilizações de estratégias da fantasia (como C.F. ou Brian Chippendale) ou da ficção científica (como Mat Brinkman), e de absurdo quase surreal (de Gary Panter, que participara activamente no programa de Paul Reubens/Pee Wee Herman, à, para sairmos do território americano, malta da Argh! ou da Les Requins Marteaux) repete-se aqui, e mãos dadas, ou fundidas, no trabalho destes autores.
Que encontramos em Adventure Time, então, como elementos disruptores de uma mais clássica, ou mais conservadora, abordagem na banda desenhada infantil? Brincadeiras como a chamada “quebra da quarta parede”, ou melhor dizendo, apartes directos ao leitor, consciência das personagens de que estão numa ficção de banda desenhada, fingimentos de anúncios, manipulação das expectativas dos leitores pelas estruturas típicas das histórias (como um “fim” que vem cedo demais), soluções deus ex machina - mas gozando consigo mesmas através de explicações em bom humor - para os problemas que se vão apresentando, etc. E, citamos novamente, a ficção que o Ice King escreve sobre Finn & Jake não deixa de ser um dispositivo caricato, quase convidando os leitores a fazerem o mesmo, alimentando a força da presença das histórias curtas.
Pendleton Ward explicou em entrevistas que esta ficção desenrolar-se-ia na nossa própria terra, mas num futuro pós-apocalíptico, em que a magia emergiria “de novo”. Isso é visível, na banda desenhada, nesta vinheta, em que Jake e Finn saltam por sobre um abismo criado pelo seu primeiro antagonista, The Lich, e vemos as várias camadas de terra que correspondem a vários momentos da história do planeta: a antepenúltima camada corresponderia, portanto, ao nosso estado de civilização (vemos objectos associados à existência do urbanismo dos séculos XX/XXI), seguido de uma camada mais fresca com o que parecem ser elementos deste tempo retro-mágico (uma caveira de um ser fantástico, espadas, baús, capacetes de cavaleiros, mas também um torpedo e a cabeça de um robot, possivelmente).
Se os sistemas culturais devem obedecer também aos imperativos selectivos do tempo, este “futuro” é tão distinto e distante no nosso próprio tempo com o nosso tempo o é das eras ou idades que nos antecederam. O filtro da ficção permite, porém, que a projecção aqui feita use livre e mescladamente elementos do passado quer reais quer fictícios (é notável como se fala de um “retorno da/à magia”). A diferenciação/comparticipação não é feita de um modo progressivo, à la ficção científica de antecipação social e cultural, mas sublinhando, a um só tempo, as possibilidades discursivas, transgressivas, humorísticas e transgenéricas permitidas por este feliz encontro entre o pós-modernismo e a criação para crianças, assim como pela exploração do retrocesso a um estado não-positivista da humanidade. Visto como positivo, também pode ser um regresso descomplexado a todas as fantasias típicas da infância, quando atar uma toalha à volta do pescoço é mesmo uma capa, ou um testo de panela é mesmo um escudo, ou um passa-montanhas com duas bolas de ping-pong é mesmo um capacete…
Talvez seja essa frescura e descomplexidade lúdica que torna Adventure Time, pejado de 1001 clichés e frases-feitas - mas mergulhando nisso com uma alegria contagiante -, num contributo sem pedagogia, moralismo ou expectativas de bom comportamento, e, logo, para o alargamento da banda desenhada enquanto território, e desta feita, dirigido de maneira tonta, e tão inteligente, aos mais novos.
15 de abril de 2012
Systema Naturae. Catarina Leitão e José Roseira (Orbius Tertius)
Este é o primeiro volume de um projecto dos autores [cuja numeração elucida e confundo a um só tempo], fundado este ano, adivinhando-se futuros gestos que poderão ou não passar pelas mãos dos mesmos, mas que seguramente auscultarão as potencialidades, limites e zonas de contaminação entre as artes visuais e textuais, como ambos explicitam nos materiais de divulgação do projecto editorial. Como seu primeiro passo nesse património, então, temos este pequeno volume, objecto autónomo e independente, mas mesmo assim relacionado intimamente com a exposição do mesmo nome, de uma série coordenada de desenhos e instalação, de Catarina Leitão: ele foi lançado ao mesmo tempo que os desenhos originais eram alvo da sua exposição e comercialização galerística, portanto, mostrando-se um conjunto de mais de uma dezena de desenhos em formatos gigantescos, alguns dos quais emoldurados e outros montados em rolos e pendurados, e trinta desenhos menores, quadrados, metade dos quais emoldurados e outra metade disposta numa espécie de atril alongado, e ainda com uma espécie de armário onde se “repetiam” os desenhos em pequenas lâminas de cartão, alguns exemplares deste mesmo livro, etc., uma peça que tinha como nome “Museu Portátil” e que faz emergir as preocupações da artista pelas zonas de convergência entre objecto de galeria e objecto de leitura, portabilidade e performance, intimidade da leitura e desdobramento espacial e público da obra de arte, numa franca transversalidade conceptual e prática que revela ecos benjaminianos (e de que a sua “peça” anterior, Invasive Species, tinha dado igual conta).
De facto, o trabalho de Catarina Leitão apresenta-se como um contínuo pautado pela coerência e a coesão. A prática artística é demasiado extensa, livre e multifacetada para que se possa tipologizar os seus processos, mas se podermos identificar dois desses modos, de uma forma antinómica, e por isso falsa, mas esperemos que produtora, teríamos aqueles autores cujas várias explorações em cada disciplina artística - ou seja, que à partida assumiriam as distinções disciplinares - diriam respeito somente a cada campo exclusivo, nos seus contornos históricos, materiais, processuais e sociais., e aqueles outros em que todas elas corresponderiam a uma mesma construção do mundo. É neste último modo que interpretamos o lugar de Catarina Leitão.
Systema Naturae não é somente de Catarina Leitão, porém. Se se pode adivinhar ou arriscar a ideia de haver uma primazia na produção do seu projecto expositivo dos desenhos, a consideração autónoma do livro tem de operar um corte radical dessa circunstância, e aceitar que a criação de um texto de José Roseira, neste objecto, transforma retrospectivamente os desenhos em ilustrações - num seu sentido quase de complemento - da narrativa apresentada. Contudo, veremos que é mais complicado que isso.
O texto intitula-se “O Jardim das Dúvidas” e, de uma maneira a que poderemos chamar borgesiana - já veremos a razão mais substancial, se é que não é desde logo visível pelo nome da editora, mas sendo este mecanismo em particular também prática de outros autores -, trata-se de um texto atribuído a uma pessoa chamada António Alto, que o assina e data de 2016, e o deixa nas mãos de Roseira, que surge aqui como seu editor, apensando ainda uma tradução de uma obra citada no interior desse texto e um posfácio. O texto principal, de Alto, é como se fosse um relato autobiográfico, e que ronda em torno de uma série de desenhos recebidos de modo misterioso - e que são, na nossa esfera de referência, de Catarina Leitão, mas na ficcional, têm outra origem - e que o obrigarão a uma viagem. Entendemos, desde logo, a complexa tessitura de níveis hiper- e hipotextuais, e de vários níveis encaixados uns nos outros ao ponto de formar metalepses e mapas que colapsam sobre eles mesmos. Apesar da quase obrigatoriedade da análise literária e narratológica em respeitarmos a destrinça entre autor empírico e implícito, narrador e narratário, pacto autobiográfico e ficção, essa busca pela metalepse ontológica também nos permite, ou até obriga, a fazer flutuar as atribuições autorais e de vozes.
A criação desse mundo fictício, mais a construção da possibilidade da sua intersecção com o nosso, é patente no próprio nome da editora, como apontávamos, e que é uma claríssima referência àquele famoso conto de Jorge Luís Borges, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” - citado no interior do texto, de uma outra maneira ainda -, no qual a invenção (conspirativa) de um mundo ficcional acaba por começar a emergir na realidade. Quer dizer, a lição última desse conto, a da manifestação real das ideias (que é explorada quase sistematicamente por Grant Morrison na banda desenhada), pode ser o motor desta obra de Leitão e Roseira. Recordemo-nos ainda de que o conto de Borges apresenta-se como uma caixa chinesa: Tlön é um mundo ficcional e imaterial existente em Uqbar, ela mesmo uma cidade ficcional, e Orbis Tertius o selo editorial, ficcional, da Enciclopédia sobre Tlön. E n’“O Jardim das Dúvidas” visita-se uma estranha companhia (de pesquisa genética? Então qual a razão dos foguetes lançados? Se nos é permitida a referência popular, lembra-nos o fim elusivo da Iniciativa Dharma) que o narrador imagina ser “uma sociedade secreta que conjurava o fim do real” (pg. 74). A ficção dentro da ficção emerge, portanto, na própria intersecção desejada entre arte e literatura deste projecto. Porque se trata de uma ficção, ou porque, pelo contrário, quer mostrar a ficção que constituem as diferenças estabelecidas historicamente entre essas (e outras) áreas? Como reza um livro apócrifo citado: “trilhamos a fronteira difusa entre o mundo das formas e o das ideias” (85). Não poderíamos, ainda assim, imaginar que se trataria não de uma fronteira, divisória, absoluta diferenciação, mas de um toque perpendicular? Algo de entrelaçado, como n’A Invenção de Morel (outra referência “borgesiana” por contágio)? Essa é, desde logo, uma das interpretações gerais possíveis para o projecto editorial, ainda que seja cedo para ir além da mera suposição. Isso faria sentido em relação à narrativa se tomarmos em conta que António Alto toma o lugar do pai em mais do que uma instância, e vai cumprindo gestos que, fantasmaticamente, não lhe pertencem e, por isso, nunca se encaixam no sentido claro das coisas. Alto é como se fosse uma marioneta, sem consciência dos actos a que se vê mecanicamente obrigado, tais como as plantas que ocupam as suas formas, mas não os papéis.
Como dissemos, em termos de condições e ordem de produção, serão seguramente os desenhos de Catarina Leitão aqueles que surgiram em primeiro lugar, e, no que diz respeito à diegese de Alto/Roseira, são eles também que desencadeiam em primeiro lugar as memórias de infância de Alto e depois a sua acção de partir para Mombaça, e dar de caras com um projecto científico (ou para-científico) que jamais é descortinado totalmente ao leitor. Que mostram eles? Plantas, numa descrição sumária e superficial.
Contudo, as plantas que se nos apresentam têm como seu primeiro plano de inscrição a ficção orgânica - elas seguem a taxonomia binomial de Lineu, como o próprio título do projecto aponta, mas seguindo regras fictícias -, mas outros reinos e domínios são visitados, desmontados nos seus elementos, os quais são depois integrados nessas mesmas plantas: a animalidade, a mecanicidade, o onírico. Estas plantas são, no seu sentido etimológico (e ideológico, político, moral), monstros: remetendo para o acto de “avisar”, mostrando visivelmente, isto é, algo que serve de exemplo contrastante em relação a um modelo ideal. Elas cultivam, portanto, o único, e a ficção vai sublinhando essa natureza, como podemos depreender das várias tentativas da descrição - não física e técnica, que também tenta, mas sobretudo moral (“breve apontamento moral”, cita-se no texto) - que o protagonista vai fazendo: “seres paradoxais” (54), “quimeras” e “jardim excêntrico” (58).
Fala-se de um “código”, que jamais é desvendado, de resto, como todo o sentido pleno da trama, da origem e fito dos desenhos e dos projectos científicos desvelados de leve, dada a tremenda ignorância do próprio narrador, ou a sua qualidade de narrador “suspeito” (como Massaud Moisés traduz o termo “unreliable narrator”). “O leitor usará melhor o seu tempo se o gastar na análise dos desenhos em alternativa a maçar-se lendo as minhas descrições” (52-54), “Não posso senão desculpar-me pela minha inaptidão face à tarefa que o acaso me confiou em mãos” (58, nosso sublinhado). Mas nesse troço em que essas descrições são tentadas, encontramos também um balbuciar em relação às plantas presentes nas lâminas que acompanham o texto (a Mombasae anemophila, a Inanis cuneiforme, etc.) e igualmente menções a outras dessas espécies fantásticas que não estão presentes (Solanoides trichophylla), fazendo adivinhar, mais uma vez, uma expansão para além das fronteiras do projecto.
O texto, tendo um tom autobiográfico da parte de António Alto, também é possível que ecoe alguns traços autobiográficos de Roseira, mas isso só poderá fazer parte das suposições demasiado abusivas. Há um ancoramento claríssimo num imaginário português contemporâneo, com remissões para a guerra colonial, uma certa tensão entre o silêncio do pai, também chamado António Alto, e a curiosidade do filho, a dupla inscrição política de esquerda e desinscrição social no papel familiar da parte do pai, e o desencanto político pós-25 de Novembro do filho, tudo tão típico de uma certa massa demográfica/geracional do nosso país. A viagem a Mombaça, por exemplo, é feita usurpando o papel e a pessoa do pai, e uma “viagem em lugar do pai” terá uma repercussão psicanalítica, cultural e política muito forte. Tudo isso, embrulhado neste invólucro de falsa ficção científica de antecipação, torna Alto-o-protagonista na “pessoa errada no sítio errado, no tempo errado” (60).
Existem níveis metalinguísticos mais claros, como quando o protagonista, ao visitar a biblioteca da tal companhia em Mombaça, declara: “o bibliotecário responsável por aquela colecção era um imbecil. Não havia senão banda-desenhada [sic], ficção científica, policiais e outros géneros de ficção” (68). Imaginamos que Systema Naturae se escondesse numa das prateleiras mais desarrumadas, numa mise en abîme recorrente. Há momentos no texto em que Alto/Roseira parecem estar a descrever o acto possível de ser experienciado quer pelos visitantes da exposição de Catarina Leitão quer para aqueles que vislumbrarem os desenhos no livro sem os associarem à narrativa, isto é, ao processo cognitivo implicado nesse acto de conflito com algo que parece ser, a um só tempo, ou numa rápida sequência, referencial e fantástico: “Enquanto fazia os desenhos desfilarem sob os meus olhos florescia em mim um jardim de dúvidas que esporeavam a minha paciência e inflamavam a minha curiosidade” (14).
É possível que a interpretação final de Systema Naturae seja, tal como o propósito do protagonista na sua história, fútil: “Convencendo-me de que a expedição seria infrutífera - assim o desejava - …” (38). “O leitor, livre dos meus preconceitos, talvez seja capaz de elaborar melhores conjecturas” (62). Tentemo-las. Uma associação imediata, quase epidérmica, a este projecto de Catarina Leitão é aquela proporcionada pela colação ao Codex Seraphinianus, do artista italiano Luigi Serafini. Também se poderia pensar na Nonsense Botany, de Edward Lear, com as suas Guittara Pensilis e Phattfacia Stupenda, mas não estamos no território do humor absurdo, ainda que haja humor e absurdo. Encontramos na obra de Serafini e na de Catarina Leitão uma mesma preocupação na fabricação de um mundo dois ou três níveis afastado do nosso, onde menos que uma hierarquia entre eles se estabelece antes uma diferença paralela. No entanto, onde o Codex Seraphinianus é mais variado, acompanhado por um sistema de escrita inventado, atento a toda uma panóplia de existências, formas de vida, modos de viver, etc.; todavia, a maior concentração de Catarina Leitão permite que este projecto seja mais coeso e visualmente mais apurado. Todo o trabalho de desenho e de coloração é de uma delicadeza exímia, mas que não aproximaríamos da ilustração científica, porém. Aliás, a falta de emprego das várias estratégias de perspectiva ou visualizações analíticas (cortes, secções, esquemas de desenvolvimento, contextualizações biológicas ou ecológicas, etc.) afasta estes desenhos dessa outra disciplina da ilustração, mas como se fosse uma torção interna a partir dele. Para além daquelas complicações de níveis de criação e resposta a que aventámos acima, algo mais se desenrola aqui. Afinal, qual o propósito destas plantas compósitas? O texto oferece-nos pistas, mas sempre incompletas: citando-se um texto que cremos ser apócrifo, uma tradução em corruptela de uma das fontes da ciência biológica, o Physiologus, diz-se que esse “é apenas sobre o reino animal, enquanto este fragmento [e por antonomásia todo este projecto] parecer querer incluir todos os seres” (32, subl. no original). Nos desenhos, é de facto como se todos os seres, ou melhor, tudo o que existe - vegetal, mineral, animal, humano, maquínico -, se pudesse conter nestas novas formas de plantas.
Trata-se menos de um bestiário ou de um herbário fantástico, ou de uma enciclopédia chinesa (de novo uma referência a Borges), do que uma pesquisa sobre formas e como é que essas formas, mesmo trabalhando sobre referências banais, podem ser empregues para objectivos e sentidos do “estranhamento familiar” (unheimlich). Sentimos uma ligeira afinidade com o filme Asparagus, de Suzan Pitt, se bem que sem os mesmos ecos feministas, sexuais, mas seguramente que as mesmas invasões oníricas.
Uma outra afinidade possível, ao nível complicado texual-visual, tendo em conta o carácter enciclopédico-apócrifo, ou sugestivo-incomodativo, o tom rotineiro sobre uma matéria fictiva, é com algumas das descrições de uma antropologia extraterrestre de Henri Michaux, como nas descrições dos “emanglões” ou a “Viagem na Grande Garabanha”, ou outros (veja-se a edição portuguesa O retiro pelo risco, Fenda). É ele quem escreve nesse mesmo livro a seguinte frase, que pode sumariar o gesto de António Alto, mas também o literário de Roseira, o artístico de Leitão, o editorial de ambos e talvez mesmo o final dos leitores: “Traduziu também o mundo, querendo fugir dele. Quem poderá fugir do mundo? O vaso está cheio a transbordar”.
Nota: agradecimentos à artista-editora, pela oferta do livro).
De facto, o trabalho de Catarina Leitão apresenta-se como um contínuo pautado pela coerência e a coesão. A prática artística é demasiado extensa, livre e multifacetada para que se possa tipologizar os seus processos, mas se podermos identificar dois desses modos, de uma forma antinómica, e por isso falsa, mas esperemos que produtora, teríamos aqueles autores cujas várias explorações em cada disciplina artística - ou seja, que à partida assumiriam as distinções disciplinares - diriam respeito somente a cada campo exclusivo, nos seus contornos históricos, materiais, processuais e sociais., e aqueles outros em que todas elas corresponderiam a uma mesma construção do mundo. É neste último modo que interpretamos o lugar de Catarina Leitão.
Systema Naturae não é somente de Catarina Leitão, porém. Se se pode adivinhar ou arriscar a ideia de haver uma primazia na produção do seu projecto expositivo dos desenhos, a consideração autónoma do livro tem de operar um corte radical dessa circunstância, e aceitar que a criação de um texto de José Roseira, neste objecto, transforma retrospectivamente os desenhos em ilustrações - num seu sentido quase de complemento - da narrativa apresentada. Contudo, veremos que é mais complicado que isso.
O texto intitula-se “O Jardim das Dúvidas” e, de uma maneira a que poderemos chamar borgesiana - já veremos a razão mais substancial, se é que não é desde logo visível pelo nome da editora, mas sendo este mecanismo em particular também prática de outros autores -, trata-se de um texto atribuído a uma pessoa chamada António Alto, que o assina e data de 2016, e o deixa nas mãos de Roseira, que surge aqui como seu editor, apensando ainda uma tradução de uma obra citada no interior desse texto e um posfácio. O texto principal, de Alto, é como se fosse um relato autobiográfico, e que ronda em torno de uma série de desenhos recebidos de modo misterioso - e que são, na nossa esfera de referência, de Catarina Leitão, mas na ficcional, têm outra origem - e que o obrigarão a uma viagem. Entendemos, desde logo, a complexa tessitura de níveis hiper- e hipotextuais, e de vários níveis encaixados uns nos outros ao ponto de formar metalepses e mapas que colapsam sobre eles mesmos. Apesar da quase obrigatoriedade da análise literária e narratológica em respeitarmos a destrinça entre autor empírico e implícito, narrador e narratário, pacto autobiográfico e ficção, essa busca pela metalepse ontológica também nos permite, ou até obriga, a fazer flutuar as atribuições autorais e de vozes.
A criação desse mundo fictício, mais a construção da possibilidade da sua intersecção com o nosso, é patente no próprio nome da editora, como apontávamos, e que é uma claríssima referência àquele famoso conto de Jorge Luís Borges, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” - citado no interior do texto, de uma outra maneira ainda -, no qual a invenção (conspirativa) de um mundo ficcional acaba por começar a emergir na realidade. Quer dizer, a lição última desse conto, a da manifestação real das ideias (que é explorada quase sistematicamente por Grant Morrison na banda desenhada), pode ser o motor desta obra de Leitão e Roseira. Recordemo-nos ainda de que o conto de Borges apresenta-se como uma caixa chinesa: Tlön é um mundo ficcional e imaterial existente em Uqbar, ela mesmo uma cidade ficcional, e Orbis Tertius o selo editorial, ficcional, da Enciclopédia sobre Tlön. E n’“O Jardim das Dúvidas” visita-se uma estranha companhia (de pesquisa genética? Então qual a razão dos foguetes lançados? Se nos é permitida a referência popular, lembra-nos o fim elusivo da Iniciativa Dharma) que o narrador imagina ser “uma sociedade secreta que conjurava o fim do real” (pg. 74). A ficção dentro da ficção emerge, portanto, na própria intersecção desejada entre arte e literatura deste projecto. Porque se trata de uma ficção, ou porque, pelo contrário, quer mostrar a ficção que constituem as diferenças estabelecidas historicamente entre essas (e outras) áreas? Como reza um livro apócrifo citado: “trilhamos a fronteira difusa entre o mundo das formas e o das ideias” (85). Não poderíamos, ainda assim, imaginar que se trataria não de uma fronteira, divisória, absoluta diferenciação, mas de um toque perpendicular? Algo de entrelaçado, como n’A Invenção de Morel (outra referência “borgesiana” por contágio)? Essa é, desde logo, uma das interpretações gerais possíveis para o projecto editorial, ainda que seja cedo para ir além da mera suposição. Isso faria sentido em relação à narrativa se tomarmos em conta que António Alto toma o lugar do pai em mais do que uma instância, e vai cumprindo gestos que, fantasmaticamente, não lhe pertencem e, por isso, nunca se encaixam no sentido claro das coisas. Alto é como se fosse uma marioneta, sem consciência dos actos a que se vê mecanicamente obrigado, tais como as plantas que ocupam as suas formas, mas não os papéis.
Como dissemos, em termos de condições e ordem de produção, serão seguramente os desenhos de Catarina Leitão aqueles que surgiram em primeiro lugar, e, no que diz respeito à diegese de Alto/Roseira, são eles também que desencadeiam em primeiro lugar as memórias de infância de Alto e depois a sua acção de partir para Mombaça, e dar de caras com um projecto científico (ou para-científico) que jamais é descortinado totalmente ao leitor. Que mostram eles? Plantas, numa descrição sumária e superficial.
Contudo, as plantas que se nos apresentam têm como seu primeiro plano de inscrição a ficção orgânica - elas seguem a taxonomia binomial de Lineu, como o próprio título do projecto aponta, mas seguindo regras fictícias -, mas outros reinos e domínios são visitados, desmontados nos seus elementos, os quais são depois integrados nessas mesmas plantas: a animalidade, a mecanicidade, o onírico. Estas plantas são, no seu sentido etimológico (e ideológico, político, moral), monstros: remetendo para o acto de “avisar”, mostrando visivelmente, isto é, algo que serve de exemplo contrastante em relação a um modelo ideal. Elas cultivam, portanto, o único, e a ficção vai sublinhando essa natureza, como podemos depreender das várias tentativas da descrição - não física e técnica, que também tenta, mas sobretudo moral (“breve apontamento moral”, cita-se no texto) - que o protagonista vai fazendo: “seres paradoxais” (54), “quimeras” e “jardim excêntrico” (58).
Fala-se de um “código”, que jamais é desvendado, de resto, como todo o sentido pleno da trama, da origem e fito dos desenhos e dos projectos científicos desvelados de leve, dada a tremenda ignorância do próprio narrador, ou a sua qualidade de narrador “suspeito” (como Massaud Moisés traduz o termo “unreliable narrator”). “O leitor usará melhor o seu tempo se o gastar na análise dos desenhos em alternativa a maçar-se lendo as minhas descrições” (52-54), “Não posso senão desculpar-me pela minha inaptidão face à tarefa que o acaso me confiou em mãos” (58, nosso sublinhado). Mas nesse troço em que essas descrições são tentadas, encontramos também um balbuciar em relação às plantas presentes nas lâminas que acompanham o texto (a Mombasae anemophila, a Inanis cuneiforme, etc.) e igualmente menções a outras dessas espécies fantásticas que não estão presentes (Solanoides trichophylla), fazendo adivinhar, mais uma vez, uma expansão para além das fronteiras do projecto.
O texto, tendo um tom autobiográfico da parte de António Alto, também é possível que ecoe alguns traços autobiográficos de Roseira, mas isso só poderá fazer parte das suposições demasiado abusivas. Há um ancoramento claríssimo num imaginário português contemporâneo, com remissões para a guerra colonial, uma certa tensão entre o silêncio do pai, também chamado António Alto, e a curiosidade do filho, a dupla inscrição política de esquerda e desinscrição social no papel familiar da parte do pai, e o desencanto político pós-25 de Novembro do filho, tudo tão típico de uma certa massa demográfica/geracional do nosso país. A viagem a Mombaça, por exemplo, é feita usurpando o papel e a pessoa do pai, e uma “viagem em lugar do pai” terá uma repercussão psicanalítica, cultural e política muito forte. Tudo isso, embrulhado neste invólucro de falsa ficção científica de antecipação, torna Alto-o-protagonista na “pessoa errada no sítio errado, no tempo errado” (60).
Existem níveis metalinguísticos mais claros, como quando o protagonista, ao visitar a biblioteca da tal companhia em Mombaça, declara: “o bibliotecário responsável por aquela colecção era um imbecil. Não havia senão banda-desenhada [sic], ficção científica, policiais e outros géneros de ficção” (68). Imaginamos que Systema Naturae se escondesse numa das prateleiras mais desarrumadas, numa mise en abîme recorrente. Há momentos no texto em que Alto/Roseira parecem estar a descrever o acto possível de ser experienciado quer pelos visitantes da exposição de Catarina Leitão quer para aqueles que vislumbrarem os desenhos no livro sem os associarem à narrativa, isto é, ao processo cognitivo implicado nesse acto de conflito com algo que parece ser, a um só tempo, ou numa rápida sequência, referencial e fantástico: “Enquanto fazia os desenhos desfilarem sob os meus olhos florescia em mim um jardim de dúvidas que esporeavam a minha paciência e inflamavam a minha curiosidade” (14).
É possível que a interpretação final de Systema Naturae seja, tal como o propósito do protagonista na sua história, fútil: “Convencendo-me de que a expedição seria infrutífera - assim o desejava - …” (38). “O leitor, livre dos meus preconceitos, talvez seja capaz de elaborar melhores conjecturas” (62). Tentemo-las. Uma associação imediata, quase epidérmica, a este projecto de Catarina Leitão é aquela proporcionada pela colação ao Codex Seraphinianus, do artista italiano Luigi Serafini. Também se poderia pensar na Nonsense Botany, de Edward Lear, com as suas Guittara Pensilis e Phattfacia Stupenda, mas não estamos no território do humor absurdo, ainda que haja humor e absurdo. Encontramos na obra de Serafini e na de Catarina Leitão uma mesma preocupação na fabricação de um mundo dois ou três níveis afastado do nosso, onde menos que uma hierarquia entre eles se estabelece antes uma diferença paralela. No entanto, onde o Codex Seraphinianus é mais variado, acompanhado por um sistema de escrita inventado, atento a toda uma panóplia de existências, formas de vida, modos de viver, etc.; todavia, a maior concentração de Catarina Leitão permite que este projecto seja mais coeso e visualmente mais apurado. Todo o trabalho de desenho e de coloração é de uma delicadeza exímia, mas que não aproximaríamos da ilustração científica, porém. Aliás, a falta de emprego das várias estratégias de perspectiva ou visualizações analíticas (cortes, secções, esquemas de desenvolvimento, contextualizações biológicas ou ecológicas, etc.) afasta estes desenhos dessa outra disciplina da ilustração, mas como se fosse uma torção interna a partir dele. Para além daquelas complicações de níveis de criação e resposta a que aventámos acima, algo mais se desenrola aqui. Afinal, qual o propósito destas plantas compósitas? O texto oferece-nos pistas, mas sempre incompletas: citando-se um texto que cremos ser apócrifo, uma tradução em corruptela de uma das fontes da ciência biológica, o Physiologus, diz-se que esse “é apenas sobre o reino animal, enquanto este fragmento [e por antonomásia todo este projecto] parecer querer incluir todos os seres” (32, subl. no original). Nos desenhos, é de facto como se todos os seres, ou melhor, tudo o que existe - vegetal, mineral, animal, humano, maquínico -, se pudesse conter nestas novas formas de plantas.
Trata-se menos de um bestiário ou de um herbário fantástico, ou de uma enciclopédia chinesa (de novo uma referência a Borges), do que uma pesquisa sobre formas e como é que essas formas, mesmo trabalhando sobre referências banais, podem ser empregues para objectivos e sentidos do “estranhamento familiar” (unheimlich). Sentimos uma ligeira afinidade com o filme Asparagus, de Suzan Pitt, se bem que sem os mesmos ecos feministas, sexuais, mas seguramente que as mesmas invasões oníricas.
Uma outra afinidade possível, ao nível complicado texual-visual, tendo em conta o carácter enciclopédico-apócrifo, ou sugestivo-incomodativo, o tom rotineiro sobre uma matéria fictiva, é com algumas das descrições de uma antropologia extraterrestre de Henri Michaux, como nas descrições dos “emanglões” ou a “Viagem na Grande Garabanha”, ou outros (veja-se a edição portuguesa O retiro pelo risco, Fenda). É ele quem escreve nesse mesmo livro a seguinte frase, que pode sumariar o gesto de António Alto, mas também o literário de Roseira, o artístico de Leitão, o editorial de ambos e talvez mesmo o final dos leitores: “Traduziu também o mundo, querendo fugir dele. Quem poderá fugir do mundo? O vaso está cheio a transbordar”.
Nota: agradecimentos à artista-editora, pela oferta do livro).
Não fui eu/Bátima. André Valente (edição do autor)
André Valente é um artista brasileiro que se desdobra em vários capítulos das artes gráficas, da ilustração à banda desenhada, e não nos parece que queira ficar associado nem apenas a um género, ou apenas a um estilo ou apenas a uma vontade de criar. Criando para várias antologias e os seus próprios blog e site, Valente parece abraçar as circunstâncias do seu humor e vontade do momento para responder aos desafios a que se propõe. É o que se depreende das histórias encontradas naquelas plataformas digitais, no seu incrível projecto de marcar vários dos filmes da sua vida com uma imagem icónica - e Valente não se escuda em escolhas seguras, bebendo tanto da nostalgia infantil e adolescente fascinada à mais ponderada consideração adulta -, bebendo das mais diversas influências e oferecendo aos seus visitantes as mais díspares das representações, e, agora, nestas duas publicações.
Não fui eu é uma espécie de antologia dos seus próprios trabalhos, mostrando parte dessa diversidade a nível narrativo e gráfico. Vemos uma espécie de biografia diagramática aparentada com o trabalho de Chris Ware, uma história autobiográfica que tenta demonstrar os poderes curativos do repertório dos The Beatles, aliás, De Bitous, em relação às terríveis cólicas do seu jovem filho Augusto, e uma série de outras histórias que misturam, de formas tão estranhas como inéditas, géneros comuns - funny animals, histórias de fadas, tiras humorísticas de jornal, histórias de catástrofes apocalípticas - para os subverter a todos, ora instilando melancolia e tragédia humana no que parecem ser anódinos contos de encantar, ora sublinhando os aspectos ridículos e risíveis do que parecem ser abordagens mais sérias.
Bátima é um mini-comic que cumpre o mesmo papel, mostrando-se uma personagem vestida como um Batman suburbano e patético, trabalhando num restaurante fast food, enquanto “lemos” a carta que escreve aos pais e mostra a fantasia em que vive.
Não somente parece ser este livrinho uma exploração dos desencantos de uma grande parte da humanidade nas sociedades modernas, que acaba por se ver presa a existências banais face aos sonhos que continuam a pautar a fantasia, como ao mesmo tempo um possível e jocoso comentário sobre a personagem a DC e a sua duplicidade entre uma vida fantasiosa e heróica e a chã miséria que subjaz a vida.
Bátima apresenta-se como um pequeno livro de folhas, pretas, em que as letras da “carta” são impressas a branco e numa fonte idêntica à de máquinas de escrever, e os desenhos são compostos por pinceladas de branco-azulado, muito ténue, texturado como se fosse corrector, sobre o qual se desenham linhas finas de caneta para moldar a figura e seus volumes. Os fundos são simples traços mínimos para descrever um espaço e uma paisagem, como se mimassem a distracção que pauta a vida desta personagem miserável. Ou seja, André Valente tira partido de todos os elementos ao dispor de um artista desta disciplina para tornar toda a sua materialidade significativa no sentido global do projecto.
Isso é visível, como dizíamos, em Não fui eu. Apenas a capa (e o interior das mesmas) é impresso a cores, que sendo densas e separadas, tiram partido disso mesmo, imitando alguns dos efeitos da serigrafia. Veja-se a capa e a contracapa, com aqueles sol e lua com um ligeiro aspecto de imbecil (recordando-nos a lua idiota de The Mighty Boosh). As restantes histórias, que podem ir de uma só página a doze, ora se apresentam em estilos altamente estilizados, com as figuras com contornos grossos e apenas apontamentos de tramas para sombras e texturas, como outras figuras trabalhadas de uma forma densa e sombria, algumas das quais em estilos aparentados com produções convencionais de humor, outras de banda desenhada com animais mas com tratamentos do noir ou do circuito alternativo, outras ainda próximas de tendências contemporâneas da ilustração, character design, designer toys, etc.
Um aspecto que parece poder ser aplicado a todas as histórias é o subtítulo de “Uma espinha” (em Portugal seria “Um sinal” ou “Uma borbulha”), que é “(baseado em fatos reais)”. Ora, tendo em conta que a história mostra um pterodáctilo que emerge desse furúnculo, e depois destrói o pessoal do escritório e finalmente dá azo ao fim do mundo, esses “factos reais” tornam-se atreitos somente aos aspectos mais prosaicos da história, o furúnculo na cara de um colega, um relatório trimestral que não se lê, etc. Ao mesmo tempo, e aproveitando a potencialidade do gesto de Bátima que pode servir de comentário para além da própria matéria do livro, é possível que essa seja uma forma de gozo de todos esses subtítulos quando aplicados em romances e filmes. Dessa forma, também poderemos imaginar ecos “baseados em factos reais” em todas as histórias presentes em Não fui eu, por mais fantasiosas ou absurdas que elas nos pareçam ser - relações amorosas terminadas, solidão, ensimesmamentos patéticos, a atracção através do conflito, etc. E, de resto, como é que podemos saber quais os factos reais que serviram de base? Como é que saberemos onde se encontra a fronteira entre essa base e a restante produção? E mesmo que saibamos quer uma coisa quer outra, em que é que isso ajuda a interpretar e apreciar a história lida e vista? É como se André Valente quisesse dizer que todas e qualquer história deve ser apreciada nela mesma, nos seus contornos e repercussões, a não com a carga de expectativas que possam vir de algo anterior.
Leia-se, então.
Nota final: agradecimentos ao autor, pelo envio das suas publicações. Valeu!
Não fui eu é uma espécie de antologia dos seus próprios trabalhos, mostrando parte dessa diversidade a nível narrativo e gráfico. Vemos uma espécie de biografia diagramática aparentada com o trabalho de Chris Ware, uma história autobiográfica que tenta demonstrar os poderes curativos do repertório dos The Beatles, aliás, De Bitous, em relação às terríveis cólicas do seu jovem filho Augusto, e uma série de outras histórias que misturam, de formas tão estranhas como inéditas, géneros comuns - funny animals, histórias de fadas, tiras humorísticas de jornal, histórias de catástrofes apocalípticas - para os subverter a todos, ora instilando melancolia e tragédia humana no que parecem ser anódinos contos de encantar, ora sublinhando os aspectos ridículos e risíveis do que parecem ser abordagens mais sérias.
Bátima é um mini-comic que cumpre o mesmo papel, mostrando-se uma personagem vestida como um Batman suburbano e patético, trabalhando num restaurante fast food, enquanto “lemos” a carta que escreve aos pais e mostra a fantasia em que vive.
Não somente parece ser este livrinho uma exploração dos desencantos de uma grande parte da humanidade nas sociedades modernas, que acaba por se ver presa a existências banais face aos sonhos que continuam a pautar a fantasia, como ao mesmo tempo um possível e jocoso comentário sobre a personagem a DC e a sua duplicidade entre uma vida fantasiosa e heróica e a chã miséria que subjaz a vida.
Bátima apresenta-se como um pequeno livro de folhas, pretas, em que as letras da “carta” são impressas a branco e numa fonte idêntica à de máquinas de escrever, e os desenhos são compostos por pinceladas de branco-azulado, muito ténue, texturado como se fosse corrector, sobre o qual se desenham linhas finas de caneta para moldar a figura e seus volumes. Os fundos são simples traços mínimos para descrever um espaço e uma paisagem, como se mimassem a distracção que pauta a vida desta personagem miserável. Ou seja, André Valente tira partido de todos os elementos ao dispor de um artista desta disciplina para tornar toda a sua materialidade significativa no sentido global do projecto.
Isso é visível, como dizíamos, em Não fui eu. Apenas a capa (e o interior das mesmas) é impresso a cores, que sendo densas e separadas, tiram partido disso mesmo, imitando alguns dos efeitos da serigrafia. Veja-se a capa e a contracapa, com aqueles sol e lua com um ligeiro aspecto de imbecil (recordando-nos a lua idiota de The Mighty Boosh). As restantes histórias, que podem ir de uma só página a doze, ora se apresentam em estilos altamente estilizados, com as figuras com contornos grossos e apenas apontamentos de tramas para sombras e texturas, como outras figuras trabalhadas de uma forma densa e sombria, algumas das quais em estilos aparentados com produções convencionais de humor, outras de banda desenhada com animais mas com tratamentos do noir ou do circuito alternativo, outras ainda próximas de tendências contemporâneas da ilustração, character design, designer toys, etc.
Um aspecto que parece poder ser aplicado a todas as histórias é o subtítulo de “Uma espinha” (em Portugal seria “Um sinal” ou “Uma borbulha”), que é “(baseado em fatos reais)”. Ora, tendo em conta que a história mostra um pterodáctilo que emerge desse furúnculo, e depois destrói o pessoal do escritório e finalmente dá azo ao fim do mundo, esses “factos reais” tornam-se atreitos somente aos aspectos mais prosaicos da história, o furúnculo na cara de um colega, um relatório trimestral que não se lê, etc. Ao mesmo tempo, e aproveitando a potencialidade do gesto de Bátima que pode servir de comentário para além da própria matéria do livro, é possível que essa seja uma forma de gozo de todos esses subtítulos quando aplicados em romances e filmes. Dessa forma, também poderemos imaginar ecos “baseados em factos reais” em todas as histórias presentes em Não fui eu, por mais fantasiosas ou absurdas que elas nos pareçam ser - relações amorosas terminadas, solidão, ensimesmamentos patéticos, a atracção através do conflito, etc. E, de resto, como é que podemos saber quais os factos reais que serviram de base? Como é que saberemos onde se encontra a fronteira entre essa base e a restante produção? E mesmo que saibamos quer uma coisa quer outra, em que é que isso ajuda a interpretar e apreciar a história lida e vista? É como se André Valente quisesse dizer que todas e qualquer história deve ser apreciada nela mesma, nos seus contornos e repercussões, a não com a carga de expectativas que possam vir de algo anterior.
Leia-se, então.
Nota final: agradecimentos ao autor, pelo envio das suas publicações. Valeu!
13 de abril de 2012
Hand of Fire. Charles Hatfield (UPM)
O propósito de Hand of Fire não é providenciar nem uma biografia nem uma bibliografia, como Charles Hatfield explica, ambos discursos que existem sobejamente em circulação sobre Jack Kirby. É antes a apresentação de “um ponto crítico de acesso e escrutínio, algo que ajudará quer leitores não iniciados quer fãs de Kirby a apreciar e contextualizar os seus trabalhos mais celebrados” (pg. 14). Este volume deve ser entendido, portanto, como um volume académico no seu sentido mais vincado sobre um dos mais celebrados, conhecidos e importantes autores da banda desenhada moderna norte-americana mainstream, sobretudo no género dos super-heróis, género para o qual Kirby contribuiu de uma forma decisiva em várias das suas fases de desenvolvimento. Como se depreende daquela citação do autor - “os seus trabalhos mais celebrados” -, Hand of Fire não dedica a sua atenção analítica de um modo equilibrado e contínuo a toda a obra de Kirby, mas concentra-se numa meia-dúzia de trabalhos que se podem considerar como os mais significativos, não só na produção do próprio Kirby como também no papel que assumiriam na complexa rede de referências que comporiam, numa primeira instância, os chamados “universos ficcionais” das duas grandes companhias dos super-heróis mainstream, a Marvel e a DC, mas também toda a economia e mecanismos narrativos que estariam associados a esse género. Dessa forma, é possível eleger uns quantos casos de estudo que se tornam palco de manipulação dos vários instrumentos analíticos de que Hatfield dispõem. O académico confessa, no fim, que o seu método é algo “vagabundo” (252), mas esse é o único processo possível quando se analisa uma obra de arte que tanto bebe do visual como do literário/narrativo, como ainda da história e da indústria do livro, da cultura popular, dos seus encontros com matérias de outros quadrantes criativos, da história local, da experiência de uma vida pessoal… Por isso os capítulos de Hand of Fire atravessam os registo histórico, teórico, social, sobre os processos criativos, sobre o género, etc., antes de entrar propriamente em casos de estudo (a saga chamada de “Fourth World” para a DC e o papel de The Eternals na continuidade da Marvel).
Apesar de existirem alguns momentos tentadores, como na história “Himon” (Mister Miracle no. 9), em encontrar “criptogramas autobiográficos”, sendo possível ler aqui e ali “um lance pela autonomia artística e pela expressão pessoal no idioma específico de uma arte heterónoma e produzida massivamente [a banda desenhada, claro]” (226-227), Hand of Fire jamais descarrila no biografismo.
É muito difícil, estamos em crer, imaginar o género dos super-heróis sem Kirby. Se é verdade que muitos outros géneros na banda desenhada têm os seus campeões - por hipótese, a aventura infanto-juvenil com Saint-Ogan e Hergé, o humor derisório com Kutzmann e Goscinny, a banda desenhada de continuidade com Roy Crane e Caniff, as tiras de humor existencial com Schulz, a banda desenhada de “funny animals” com Macherot e Carl Barks, a ficção científica com Alex Raymond, Frank Hampson, Moebius - a importância de Kirby parece ter um peso monumental, como já havíamos debatido brevemente a propósito do livro de Evanier, mesmo comparando àqueles criadores das maiores referências do género, como Jerry Siegel e Joe Shuster, Bob Kane e Bill Finger. A razão não é única: Kirby trabalhou ao longo de décadas com vários sucessos (do Capitão América em 1941, com Joe Simon, à invenção, com o mesmo, de todo o género dos “romance comics”, passando pela imensa reformulação do género com Stan Lee e outros artistas na Marvel do início dos anos 1960, e depois os vários trabalhos “cósmicos” na DC), foi reinventando o seu próprio estilo com todos os seus trabalhos ao ponto de inventar novas técnicas gráficas (de dinamismo, de escorço, de energia nas páginas) que se tornariam praticamente o “modelo” contra o qual os novos autores deveriam comparar as suas produções, e, outro aspecto importantíssimo explorado por Hatfield, a sua capacidade de criar ideias, personagens, conceitos, por mais absurdos que parecessem. E tornar-se-iam cada vez mais absurdos à medida que ia ganhando experiência, e se nem sempre com sucesso comercial - muitas das suas séries seriam canceladas a meio ou simplesmente abortadas - pelo menos com uma capacidade de se manterem no imaginário dos autores que viriam, os quais recorrentemente o revisitam como se se tratasse de um filão de material bruto, o qual é depois por eles burilado, se não “amansado”.
É possível que Jack Kirby seja hoje visto, por novos olhos ou olhos não-iniciados, como algo deficitários no que diz respeito a toda uma série de “exigências” da arte, mesmo no interior daqueles estilos correntes do mainstream norte-americano. É possível que a apreciação de Kirby seja feita a um nível visceral, que é herdado pelo contacto que se tem com o seu trabalho num determinado momento das nossas vidas de leitores. Esse aspecto, digamos, nostálgico, tem um papel importante, sem dúvida, e não nos desligamos dele; apesar da diferença de idade em relação a Hatfield, não nos esqueçamos que parte do contacto com estas obras mais centrais de Kirby, em Portugal, coincide com a sua chegada mediada pelas traduções brasileiras (apesar da Agência Portuguesa de Revistas também ter vastos títulos, e a obra de Kirby, noutros géneros, ter aparecido em vários títulos nacionais). No entanto, se olharmos para muita da produção de autores do seu tempo, são raros aqueles cuja energia se mantém (talvez Ditko seja o único que, no interior do género específico a que estamos a referir-nos, ombreia Kirby com a mesma intensidade, ainda que a sua energia própria se tenha diluído depois). E a consideração e a apreciação da arte de Kirby não pode desligar-se de um certo grau de entendimento do que pode compor uma obra de arte com preocupações estéticas para além das suas circunstâncias, o peso (demasiado sentido) das circunstâncias de produção que sempre enclausuraram o autor, e o momento do seu impacto. Daí se compreende a utilização de expressões que demonstram essa leitura paradoxal em relação a esta obra eléctrica, ao longo de todo o livro. Vejamos algumas: “criação delirante de mitos” (pg. 4), “Kirby não tem nada a ver com descanso” (45), “pateta [goofy] e selvagem” (59), “a qualidade predominante do desenho de Kirby: a sua qualidade incansável e comprometida com o incessante impulso narrativo” (67), “a propulsão do esboço” (153), “[um desenho] tumultuoso, quase infantil” (149), “espírito frenético de improvisação” (179), “excesso transbordante e sem fôlego de conceitos” (citação de G. Morrison, 180), “energia louca” (183)… ´
Apesar de Kirby aparentar ser uma força da natureza, como ela se pode expressar na banda desenhada, não quer dizer que não se tenha de entender claramente o campo onde ele medrou. Mas as questões das influências são tratadas de uma maneira muito bem integrada, o que demonstram a excelência do trabalho de Hatfield. Dizer “X é influenciado por Y” pode parecer por vezes uma afirmação suficiente em si mesma, como se a junção dos dois nomes explicasse o trânsito de elementos, mas Hatfield faz uma apresentação alongada, pausada e ponderada de que elementos terão sido transpostos e alterados na comunicação entre autores. É assim que a tríade Milton Caniff, Hal Foster e Alex Raymond, mas também a breve, mas fulcral, inflexão de Burne Hogarth, surge como o cadinho de forças e estilo de que o jovem Jack Kirby beberia, mas tendo aqui uma análise exímia de quais os elementos precisos que são herdados pelo novo autor, e como são por ele transformados. Sobretudo por uma razão, importantíssima, e que vincará o valor de Kirby: a sua falta de mestria ou as limitações enquanto artista, a que voltaremos. Mas o outro lado da equação também deve ser ponderado. Apesar de hoje termos em nomes como os de Bryan Hitch, John Cassaday, Alex Maleev ou outros uma nova escola estilística para os super-heróis, não deixa de ser marcante quais elementos eles ainda transportam na sua arte que derivam de gestos experimentados em primeiro lugar por Kirby. E a escrita - quer aquela altamente organizada - de Jim Kruger, Alex Ross, Kurt Busiek, ou Mark Waid - quer a alucinada - de Grant Morrison ou Warren Ellis - não pode ser imaginada sem as fundações de Jack Kirby (já é discutível se Alan Moore estaria nesse grupo, uma vez que os interesses desse escritor o lançam a autores anteriores a Kirby, mas isso entraria em conflito paradoxal igualmente com a ordem narrativa do autor inglês). Hatfield chega mesmo a escrever, “que jeito deram estes planos [blueprint] criados por Kirby” (186) aos autores que se seguiram. Em termos sumários, este aspecto encontra na seguinte frase a sua concatenação: “A influência, quando é suficientemente espalhada, esconde-se a si mesma” (pg. 4).
Uma expressão recorrente deste estudioso, nesta obra, é a de “desenho narrativo”, tratando-se de uma sua contribuição para o edifício teórico da banda desenhada. Se bem que se prenda com discussão havidas já anteriormente por outros autores (Thierry Groensteen, Andrei Molotiu, art spiegelman, etc.) e levante questões muito específicas e múltiplas que são impossíveis de tratar neste espaço, o que Hatfield pretende contrastar com essa expressão é um desenho que está menos preocupado com as questões canónicas da ilustração e da representação naturalista, subsumindo-se antes ao programa narrativo da obra em questão. Assim, esses desenhos são, “num certo sentido, uma arte que se apaga e denigre a si mesma. Há uma tensão fundamental nesses desenhos entre a própria qualidade de imagens [picture-ness] das imagens e a sua marcante função narrativa” (65), já que a arte da banda desenhada “se inclina para a máxima legibilidade e a eficácia retórica, mesmo quando evoca o expressionista e o inexplicável” (15). É possível que haja uma ligeira reificação, da parte de Hatfield, do programa narrativo, uma quase essencialização desse programa, na própria ontologia da banda desenhada, mas neste contexto em específico, faz sentido. No que diz respeito à arte de Kirby, tem menos a ver com a sua capacidade de ser anatómica e dinamicamente perfeito do que com uma entrega ao avanço dos significados que a sua obra (narrativa) pretende atingir: “o modo de tratamento que Kirby faz do movimento e da acção faz com que as suas representações icónicas das formas sempre se inclinem em direcção ao simbólico” (45); ou, nas palavras de Christopher Brayshaw citadas por Hatfield: há uma tensão em Kirby que lança a “figuração” tridimensional contra o “design” bidimensional, levando a uma feroz dialéctica (47).
Uma das maneiras de Hatfield cumprir esse estudo é através do contraste entre a maneira como Kirby representa, em companhia de Joe Simon, a transformação de Steve Rogers no Capitão América na primeiríssima aventura dessa personagem (Captain America Comics no. 1, 1941) e depois na companhia de Stan Lee, como escriba, décadas mais tarde (Captain America no. 109, 1969). Independentemente das alterações a nível narrativo/imaginativo (o professor Reinstein tornar-se-ia no professor Erskine, o que era apenas um “soro de super-soldado” passa a ser um soro mais os “vita-rays”, etc.), o importante é ver a maneira como o dinamismo da transformação é explorado e o que diz do desenvolvimento do artista: num caso temos uma maior predominância da figura e da voz do cientista, no outro há uma maior focalização no protagonista, inclusive a sua voz; os cenários desaparecem para dar lugar ao famoso “kirby krackle”, aquele enxame de círculos negros que dão conta de uma qualquer energia frenética presente nestas cenas, a composição equilibrada da prancha mais antiga, com o corpo de Rogers criando um eixo vertical, passa a ser substituído por uma maior regularidade, mas cujo interior das vinhetas passa a vibrar de energia, etc.
Essa noção de “desenho narrativo”, que será operativa em todo o livro, é feita no interior de um cuidadoso discurso académico, que se ancora em várias disciplinas e referências. A sua leitura e crítica do famoso “triângulo” de Scott McCloud sobre os estilos, e as suas relações com a realidade, o significado e o domínio da imagem é um excelente instrumento de como o rigor intelectual e académico deve ser empregue no estudo desta arte, sobretudo tendo em conta o modo como as teorias - bem-vindas como ponto de partida - de McCloud têm sido tomadas - como ponto de chegada - por toda uma série de sectores, inclusive o académico.
Um outro conceito estudado, e que tem mesmo um capítulo exclusivo, é o do “sublime tecnológico” em Kirby. Bebendo da noção do sublime tal como fundado por Burke e depois Kant, mas baseando-se sobretudo no primeiro, Hatfield vai demonstrando como o interesse de Kirby “em misturar o arcaico-oculto com o futurista-tecnológico era uma fixação assinalável” (146), algo que já é típico do género dos super-heróis (cf. Richard Reynolds, que explica que a mistura de ciência e magia leva ao seu sentido particular do maravilhoso, a que o autor deste livro acrescenta tratar-se de um “mega-género” de grande adaptabilidade, “capaz de absorver elementos díspares de outros géneros, modelos e estilos”, 161). Em Kirby, porém, o sentido de inassimilável, de aterrador, de magnificente, do Sublime, algo que de tão grandioso nos torna pequenos mas que nos exalta em vez de diminuir, algo que nos assusta porque nos encontramos em segurança, ganha uma dimensão associada à exploração de temas associadas â ficção científica, ele mesmo um género “que inclui o fantástico, o onírico, o surreal e o alegórico” (150). Kirby era muito versado no género, e procurava qualquer instrumento - mais inventivo do que ancorado em factos puros da ciência - para criar as suas histórias, primeiro em trabalhos mais classicamente desse género (Challengers of the Unknown), depois procurando misturas com outros géneros, como o de super-heróis e o novelesco (Quarteto Fantástico), depois abrindo a porta ao seu entrosamento com o mítico (as história a solo com Thor e depois os épico-cósmicos Fourth World e The Eternals). Hatfield repete que Kirby parece seguir aquele princípio de Arthur C. Clarke, de que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinta da magia”. Apesar de se poderem apontar muitas invenções de Kirby, talvez a das Mother Boxes seja a mais marcante, uma “mistura de vida orgânica e artificial e um sentido de interdependência entre pessoa e máquina” (191), algo produzido numa altura em que essa mesma discussão ainda não fazia parte totalmente das discussões hodiernas a um nível popular.
Um aspecto estrutural e de argumentação de grande importância em Hand of Fire, e na continuidade desses contributos conceptuais, é o modo como Hatfield, afinal ele mesmo uma referência importante no estudo da banda desenhada contemporânea, devido ao seu anterior Alternative Comics: an Emerging Literature, integra a produção académica e de investigação que existe, quer a norte-americana quer a europeia (ele cita Thierry Groensteen, Benoît Peeters, Philippe Marion, Fresnault-Deruelle, Harry Morgan, etc.). Há um vívido interesse em querer contribuir para este edifício em construção, sem querer com isso imaginá-lo ainda pelas fundações. [Veja-se a entrevista ao autor, no fim deste post.]
O trânsito pelas várias disciplinas é, já o vimos, indispensável no estudo da banda desenhada. Por isso, parte da argumentação de Hatfield é dedicada aos processos de produção, comercialização, venda, circulação, distribuição do que faz o campo social onde Kirby trabalhava. Em vez de repetir fórmulas gastas, vazias e francamente falsas de Kirby ser um “original”, “criar de raiz isto ou aquilo”, vai demonstrando que tipo e passos pequenos foram sendo dados, quer criativa quer social quer ainda economicamente nesse mesmo campo, para irmos descobrindo a real valência do contributo de Kirby. Por exemplo, a convoluta história da companhia Marvel (ou Timely-Atlas-Marvel) é um enigma que ainda não foi totalmente destrinçado pela história destes aspectos comerciais, económicos e institucionais da banda desenhada comercial norte-americana, mas Charles Hatfield apresenta um relato suficientemente claro ou organizado para criar o aspecto de fundo importante: esta indústria cultural era tudo menos clara, e a herança do grande fundador Martin Goodman é a de um negócio com contornos provavelmente conducentes a ilegalidades. De certa forma, é o que Alan Moore explica numa sua citação famosa em que equipara os barões desta indústria com a Máfia. A importância da maneira como as próprias revistas eram comercializadas, algo de muito, muito diverso do que se faz hoje, é também um factor que se deve ter em conta na leitura da obra de Kirby, a qual, muito francamente, foi ainda feita numa altura em que não se imaginava a sua sobrevivência comercial alargada. Ler hoje Kirby nos volumes de capa dura da Marvel e DC não é, de maneira nenhuma, o mesmo processo cognitivo que foi a sua exposição revista a revista, mês a mês, na sua época, e Hatfield incorpora esse factor nas suas leituras.
Hatfield não se coíbe, portanto, de questões extremamente complicadas, algumas das quais revelando da semiótica, outras da estética, outras ainda dizendo respeito à complicadíssima novela dos “ele disse que” do conflito Kirby/Marvel ou Kirby/Lee. Mas como escreve sobre algumas dessas facetas, “Este problema é básico mas mesmo assim insolúvel [intractable]” (42). Por outras palavras, existem questões que são algo ridículas de colocar, mas mais ridículo ainda seria não as colocar e querer passar por elas em silêncio. Por vezes, tentar pensar, mesmo que não se chegue a conclusão nenhuma, é uma vitória imensa comparada ao não querer pensar sequer. A relação com Stan Lee é então também abordada. O mito - veiculado nas próprias histórias dos anos 1960 da Marvel e depois por Lee em todas as plataformas possíveis - de que havia uma colaboração amigável e produtiva e equilibrada entre Lee e os seus artistas (Kirby e Ditko na linha da frente, mas muitos outros envolvidos não podem ser esquecidos) é precisamente isso: um mito. No entanto, a forma como os defensores de Kirby rapidamente correm para o outro lado da equação, no sentido de demonizar totalmente Lee pela forma como a Marvel se iria comportar em relação a Kirby, não é de todo um posicionamento criticamente aceitável. A “verdade”, ainda que sendo metafisicamente improvável de ser capturada na suposta totalidade, pode ser aproximada em termos históricos, graças à documentação, à investigação e ao exercício da inteligência. Hatfield emprega tudo isso para chegar a uma ideia mais equilibrada, mesmo que admita que nunca será possível ter uma ideia exacta e fechada de como as coisas se processavam. Afinal, esta era uma indústria que bebia de uma colaboração constante entre os empregados de uma companhia, mas em que esta acaba por sempre ter a última palavra - e, isto é importante, legalmente correcta. O facto das práticas se terem vindo a alterar não pode legislar retroactivamente.
O ponto mais importante, nesta parte do debate, é que Kirby foi um agente crucial na escrita de muitas das personagens e histórias da Marvel. É para isso que é empregue o conceito do “desenho narrativo” de Hatfield, para demonstrar que Kirby escrevia desenhando: “era ele quem tomava as decisões centrais sobre como é que a história deveria ser estruturada e a página composta, decisões que serviriam para ritmar e encenar a acção” (69). Este aspecto da importância de Kirby na criação - lançamento de ideias, desenvolvimento de um conceito, estruturação da forma e do meio que veiculará esse mesmo conceito, etc., e não apenas o alinhavar de matéria verbal - das mais icónicas personagens da Marvel ganha uma importância suplementar no seu papel em relação ao Homem-Aranha. Teve ou não responsabilidades no que viria a tornar-se essa personagem? Terá sido Lee o único somente a criá-la? E que papel teve Ditko em tudo isto? Bom, eis uma discussão que tão cedo não terminará, e para a qual Hatfield não deseja sequer apresentar solução. O mais importante não é alimentar a controvérsia que apenas leva a posições extremas, mas a compreender os mecanismos criativos desta arte em particular, e neste campo sócio-económico em particular (esta indústria específica), para deles fazer emergir o mais relevante para a discussão.
“Porque é que é tão difícil entender quem fez o quê na Marvel? A contribuição de Kirby para a empresa foi ocultada em parte pela própria forma como trabalhava. O chamado ‘método Marvel’ de produção tornava difícil determinar o contributo individual nos trabalhos finalizados, criando uma situação em que tanto o argumentista [scripter] (na maioria parte das vezes, nos primeiros tempos, [Stan] Lee), e o desenhador [penciller], ou artista da composição [breakdowns], poderiam reivindicar uma parte de leão do crédito dos conceitos basilares e do desenvolvimento narrativo página a página das histórias” (90); “Poderíamos dizer que, discutivelmente, não existe nenhum autor singular da Marvel Comics, ou um arquitecto singular do Universo Marvel” (94). Onde reside a importância então? “Em suma, a Marvel, sob Kirby, introduziu uma abordagem épica no género dos super-heróis que era ‘mítica’ quer na escala quer nas suas complicações de panteão” (138), “transformando essa banda desenhada de super-heróis formulaica muito mais permeável à complexidade emocional e muito mais ampla em escopo” (139).
E neste ponto preciso, a discussão sobre o modo como Kirby contribui de uma forma muito especial para a emergência da política da “continuidade” é imperativo. Em vez de termos cada comic book com uma história autónoma mais ou menos desligada das anteriores, a partir de certo momento da história dessa indústria, cada companhia foi começando a tecer uma rede densa de inter-referências, em que as várias personagens passam a habitar um mesmo espaço ficcional e cujas acções terão consequências de título para título e na vida futura delas mesmas. Ora, se essa situação anterior, de autonomia quase total, era o ponto de partida teórico que permitiu a Umberto Eco escrever o seu seminal ensaio “O Mito do Superhomem”, de 1963 (ainda hoje importante, mas que não pode ser lido com aplicabilidade total hoje), isso alterar-se-ia profundamente com a emergência desse conceito, numa primeira fase - com grande responsabilidade de Kirby - com frutos positivos em termos produtivos, criativos e até de retorno económico - mas depois elaborando um espartilho cada vez maior e obsessivo que ainda hoje faz sentir as suas consequências (os múltiplos “eventos”, os “crossovers” abusivos, a complicadíssima trama de referências impenetrável para os não-iniciados; mesmo com o relançamento recente da DC a mesma complicação mantém-se). Ora Hatfield demonstra como, se essa continuidade era uma benesse criativa para Kirby ao início, viria a tornar-se a razão da sua “queda” a partir dos anos 1970 (sobretudo o retorno a Capitão América, e Black Panther). E mais, demonstrando-se assim como “o género dos super-heróis não era apenas uma rede textual mas igualmente social” (142). No seu estudo mais detalhado de The Fourth World, Hatfield contrasta aquilo que pareciam ser os desejos de Kirby (que nunca na sua carreira foi de “grandes planos” mas de improvisos circunstanciais, cujo fim era trabalhar ao máximo para poder providenciar a família com dinheiro, e não cair na miséria na qual nasceu) e a realidade do que conseguir fazer.
A comparação com o que seria mais tarde conta corrente, mas nas mãos de um batalhão de escritores e editores, torna os seus esforços criativos ainda mais marcantes. “Projectos como esses [o Shadowline de Archie Goodwin, o Ultraverse da Malibu, o New Universe da Marvel em 1986, o Dakota Universe da Milestone, o universo dos Comic’s Greatest World da Dark Horse, etc.], quer criados por um só autor (…) ou por uma equipa (…), exigiam os esforços concertados de grandes grupos de editores e criadores para os instituírem no mercado, em contraste com o voo solitário de Kirby por todos os lados”; “a diferença, claro, está no facto de que aquilo que Kirby havia originalmente imaginado mas não conseguido (a oportunidade de trabalhar e dirigir outros criadores) tornar-se-ia, mais tarde, normativo” (185).
A obra de Kirby tem conhecido um muito recente esforço de reedição, de quase todos os géneros em que trabalhou, a que se acrescenta a contínua da Jack Kirby Collector, na qual Hatfield colabora activamente, um pouco mais nostálgica e encomiástica, mas que encerra em si pequenos contributos decisivos. Não se tratando nem de biografia nem de análise exaustiva da obra de Kirby, Hand of Fire é um volume importante na maneira como incorpora os vários instrumentos e disciplinas disponíveis para os comics studies, e seguramente que tanto se tornará um textbook pela sua matéria central como um modelo a seguir em relação a outros autores ou contextos.
Como de costume na nossa abordagem a livros desta natureza, temos de agradecer a Charles Hatfield, por ter dedicado parte do seu tempo a responder a um conjunto de perguntas, numa entrevista que podem ler, em português, aqui.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Apesar de existirem alguns momentos tentadores, como na história “Himon” (Mister Miracle no. 9), em encontrar “criptogramas autobiográficos”, sendo possível ler aqui e ali “um lance pela autonomia artística e pela expressão pessoal no idioma específico de uma arte heterónoma e produzida massivamente [a banda desenhada, claro]” (226-227), Hand of Fire jamais descarrila no biografismo.
É muito difícil, estamos em crer, imaginar o género dos super-heróis sem Kirby. Se é verdade que muitos outros géneros na banda desenhada têm os seus campeões - por hipótese, a aventura infanto-juvenil com Saint-Ogan e Hergé, o humor derisório com Kutzmann e Goscinny, a banda desenhada de continuidade com Roy Crane e Caniff, as tiras de humor existencial com Schulz, a banda desenhada de “funny animals” com Macherot e Carl Barks, a ficção científica com Alex Raymond, Frank Hampson, Moebius - a importância de Kirby parece ter um peso monumental, como já havíamos debatido brevemente a propósito do livro de Evanier, mesmo comparando àqueles criadores das maiores referências do género, como Jerry Siegel e Joe Shuster, Bob Kane e Bill Finger. A razão não é única: Kirby trabalhou ao longo de décadas com vários sucessos (do Capitão América em 1941, com Joe Simon, à invenção, com o mesmo, de todo o género dos “romance comics”, passando pela imensa reformulação do género com Stan Lee e outros artistas na Marvel do início dos anos 1960, e depois os vários trabalhos “cósmicos” na DC), foi reinventando o seu próprio estilo com todos os seus trabalhos ao ponto de inventar novas técnicas gráficas (de dinamismo, de escorço, de energia nas páginas) que se tornariam praticamente o “modelo” contra o qual os novos autores deveriam comparar as suas produções, e, outro aspecto importantíssimo explorado por Hatfield, a sua capacidade de criar ideias, personagens, conceitos, por mais absurdos que parecessem. E tornar-se-iam cada vez mais absurdos à medida que ia ganhando experiência, e se nem sempre com sucesso comercial - muitas das suas séries seriam canceladas a meio ou simplesmente abortadas - pelo menos com uma capacidade de se manterem no imaginário dos autores que viriam, os quais recorrentemente o revisitam como se se tratasse de um filão de material bruto, o qual é depois por eles burilado, se não “amansado”.
É possível que Jack Kirby seja hoje visto, por novos olhos ou olhos não-iniciados, como algo deficitários no que diz respeito a toda uma série de “exigências” da arte, mesmo no interior daqueles estilos correntes do mainstream norte-americano. É possível que a apreciação de Kirby seja feita a um nível visceral, que é herdado pelo contacto que se tem com o seu trabalho num determinado momento das nossas vidas de leitores. Esse aspecto, digamos, nostálgico, tem um papel importante, sem dúvida, e não nos desligamos dele; apesar da diferença de idade em relação a Hatfield, não nos esqueçamos que parte do contacto com estas obras mais centrais de Kirby, em Portugal, coincide com a sua chegada mediada pelas traduções brasileiras (apesar da Agência Portuguesa de Revistas também ter vastos títulos, e a obra de Kirby, noutros géneros, ter aparecido em vários títulos nacionais). No entanto, se olharmos para muita da produção de autores do seu tempo, são raros aqueles cuja energia se mantém (talvez Ditko seja o único que, no interior do género específico a que estamos a referir-nos, ombreia Kirby com a mesma intensidade, ainda que a sua energia própria se tenha diluído depois). E a consideração e a apreciação da arte de Kirby não pode desligar-se de um certo grau de entendimento do que pode compor uma obra de arte com preocupações estéticas para além das suas circunstâncias, o peso (demasiado sentido) das circunstâncias de produção que sempre enclausuraram o autor, e o momento do seu impacto. Daí se compreende a utilização de expressões que demonstram essa leitura paradoxal em relação a esta obra eléctrica, ao longo de todo o livro. Vejamos algumas: “criação delirante de mitos” (pg. 4), “Kirby não tem nada a ver com descanso” (45), “pateta [goofy] e selvagem” (59), “a qualidade predominante do desenho de Kirby: a sua qualidade incansável e comprometida com o incessante impulso narrativo” (67), “a propulsão do esboço” (153), “[um desenho] tumultuoso, quase infantil” (149), “espírito frenético de improvisação” (179), “excesso transbordante e sem fôlego de conceitos” (citação de G. Morrison, 180), “energia louca” (183)… ´
Apesar de Kirby aparentar ser uma força da natureza, como ela se pode expressar na banda desenhada, não quer dizer que não se tenha de entender claramente o campo onde ele medrou. Mas as questões das influências são tratadas de uma maneira muito bem integrada, o que demonstram a excelência do trabalho de Hatfield. Dizer “X é influenciado por Y” pode parecer por vezes uma afirmação suficiente em si mesma, como se a junção dos dois nomes explicasse o trânsito de elementos, mas Hatfield faz uma apresentação alongada, pausada e ponderada de que elementos terão sido transpostos e alterados na comunicação entre autores. É assim que a tríade Milton Caniff, Hal Foster e Alex Raymond, mas também a breve, mas fulcral, inflexão de Burne Hogarth, surge como o cadinho de forças e estilo de que o jovem Jack Kirby beberia, mas tendo aqui uma análise exímia de quais os elementos precisos que são herdados pelo novo autor, e como são por ele transformados. Sobretudo por uma razão, importantíssima, e que vincará o valor de Kirby: a sua falta de mestria ou as limitações enquanto artista, a que voltaremos. Mas o outro lado da equação também deve ser ponderado. Apesar de hoje termos em nomes como os de Bryan Hitch, John Cassaday, Alex Maleev ou outros uma nova escola estilística para os super-heróis, não deixa de ser marcante quais elementos eles ainda transportam na sua arte que derivam de gestos experimentados em primeiro lugar por Kirby. E a escrita - quer aquela altamente organizada - de Jim Kruger, Alex Ross, Kurt Busiek, ou Mark Waid - quer a alucinada - de Grant Morrison ou Warren Ellis - não pode ser imaginada sem as fundações de Jack Kirby (já é discutível se Alan Moore estaria nesse grupo, uma vez que os interesses desse escritor o lançam a autores anteriores a Kirby, mas isso entraria em conflito paradoxal igualmente com a ordem narrativa do autor inglês). Hatfield chega mesmo a escrever, “que jeito deram estes planos [blueprint] criados por Kirby” (186) aos autores que se seguiram. Em termos sumários, este aspecto encontra na seguinte frase a sua concatenação: “A influência, quando é suficientemente espalhada, esconde-se a si mesma” (pg. 4).
Uma expressão recorrente deste estudioso, nesta obra, é a de “desenho narrativo”, tratando-se de uma sua contribuição para o edifício teórico da banda desenhada. Se bem que se prenda com discussão havidas já anteriormente por outros autores (Thierry Groensteen, Andrei Molotiu, art spiegelman, etc.) e levante questões muito específicas e múltiplas que são impossíveis de tratar neste espaço, o que Hatfield pretende contrastar com essa expressão é um desenho que está menos preocupado com as questões canónicas da ilustração e da representação naturalista, subsumindo-se antes ao programa narrativo da obra em questão. Assim, esses desenhos são, “num certo sentido, uma arte que se apaga e denigre a si mesma. Há uma tensão fundamental nesses desenhos entre a própria qualidade de imagens [picture-ness] das imagens e a sua marcante função narrativa” (65), já que a arte da banda desenhada “se inclina para a máxima legibilidade e a eficácia retórica, mesmo quando evoca o expressionista e o inexplicável” (15). É possível que haja uma ligeira reificação, da parte de Hatfield, do programa narrativo, uma quase essencialização desse programa, na própria ontologia da banda desenhada, mas neste contexto em específico, faz sentido. No que diz respeito à arte de Kirby, tem menos a ver com a sua capacidade de ser anatómica e dinamicamente perfeito do que com uma entrega ao avanço dos significados que a sua obra (narrativa) pretende atingir: “o modo de tratamento que Kirby faz do movimento e da acção faz com que as suas representações icónicas das formas sempre se inclinem em direcção ao simbólico” (45); ou, nas palavras de Christopher Brayshaw citadas por Hatfield: há uma tensão em Kirby que lança a “figuração” tridimensional contra o “design” bidimensional, levando a uma feroz dialéctica (47).
Uma das maneiras de Hatfield cumprir esse estudo é através do contraste entre a maneira como Kirby representa, em companhia de Joe Simon, a transformação de Steve Rogers no Capitão América na primeiríssima aventura dessa personagem (Captain America Comics no. 1, 1941) e depois na companhia de Stan Lee, como escriba, décadas mais tarde (Captain America no. 109, 1969). Independentemente das alterações a nível narrativo/imaginativo (o professor Reinstein tornar-se-ia no professor Erskine, o que era apenas um “soro de super-soldado” passa a ser um soro mais os “vita-rays”, etc.), o importante é ver a maneira como o dinamismo da transformação é explorado e o que diz do desenvolvimento do artista: num caso temos uma maior predominância da figura e da voz do cientista, no outro há uma maior focalização no protagonista, inclusive a sua voz; os cenários desaparecem para dar lugar ao famoso “kirby krackle”, aquele enxame de círculos negros que dão conta de uma qualquer energia frenética presente nestas cenas, a composição equilibrada da prancha mais antiga, com o corpo de Rogers criando um eixo vertical, passa a ser substituído por uma maior regularidade, mas cujo interior das vinhetas passa a vibrar de energia, etc.
Essa noção de “desenho narrativo”, que será operativa em todo o livro, é feita no interior de um cuidadoso discurso académico, que se ancora em várias disciplinas e referências. A sua leitura e crítica do famoso “triângulo” de Scott McCloud sobre os estilos, e as suas relações com a realidade, o significado e o domínio da imagem é um excelente instrumento de como o rigor intelectual e académico deve ser empregue no estudo desta arte, sobretudo tendo em conta o modo como as teorias - bem-vindas como ponto de partida - de McCloud têm sido tomadas - como ponto de chegada - por toda uma série de sectores, inclusive o académico.
Um outro conceito estudado, e que tem mesmo um capítulo exclusivo, é o do “sublime tecnológico” em Kirby. Bebendo da noção do sublime tal como fundado por Burke e depois Kant, mas baseando-se sobretudo no primeiro, Hatfield vai demonstrando como o interesse de Kirby “em misturar o arcaico-oculto com o futurista-tecnológico era uma fixação assinalável” (146), algo que já é típico do género dos super-heróis (cf. Richard Reynolds, que explica que a mistura de ciência e magia leva ao seu sentido particular do maravilhoso, a que o autor deste livro acrescenta tratar-se de um “mega-género” de grande adaptabilidade, “capaz de absorver elementos díspares de outros géneros, modelos e estilos”, 161). Em Kirby, porém, o sentido de inassimilável, de aterrador, de magnificente, do Sublime, algo que de tão grandioso nos torna pequenos mas que nos exalta em vez de diminuir, algo que nos assusta porque nos encontramos em segurança, ganha uma dimensão associada à exploração de temas associadas â ficção científica, ele mesmo um género “que inclui o fantástico, o onírico, o surreal e o alegórico” (150). Kirby era muito versado no género, e procurava qualquer instrumento - mais inventivo do que ancorado em factos puros da ciência - para criar as suas histórias, primeiro em trabalhos mais classicamente desse género (Challengers of the Unknown), depois procurando misturas com outros géneros, como o de super-heróis e o novelesco (Quarteto Fantástico), depois abrindo a porta ao seu entrosamento com o mítico (as história a solo com Thor e depois os épico-cósmicos Fourth World e The Eternals). Hatfield repete que Kirby parece seguir aquele princípio de Arthur C. Clarke, de que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinta da magia”. Apesar de se poderem apontar muitas invenções de Kirby, talvez a das Mother Boxes seja a mais marcante, uma “mistura de vida orgânica e artificial e um sentido de interdependência entre pessoa e máquina” (191), algo produzido numa altura em que essa mesma discussão ainda não fazia parte totalmente das discussões hodiernas a um nível popular.
Um aspecto estrutural e de argumentação de grande importância em Hand of Fire, e na continuidade desses contributos conceptuais, é o modo como Hatfield, afinal ele mesmo uma referência importante no estudo da banda desenhada contemporânea, devido ao seu anterior Alternative Comics: an Emerging Literature, integra a produção académica e de investigação que existe, quer a norte-americana quer a europeia (ele cita Thierry Groensteen, Benoît Peeters, Philippe Marion, Fresnault-Deruelle, Harry Morgan, etc.). Há um vívido interesse em querer contribuir para este edifício em construção, sem querer com isso imaginá-lo ainda pelas fundações. [Veja-se a entrevista ao autor, no fim deste post.]
O trânsito pelas várias disciplinas é, já o vimos, indispensável no estudo da banda desenhada. Por isso, parte da argumentação de Hatfield é dedicada aos processos de produção, comercialização, venda, circulação, distribuição do que faz o campo social onde Kirby trabalhava. Em vez de repetir fórmulas gastas, vazias e francamente falsas de Kirby ser um “original”, “criar de raiz isto ou aquilo”, vai demonstrando que tipo e passos pequenos foram sendo dados, quer criativa quer social quer ainda economicamente nesse mesmo campo, para irmos descobrindo a real valência do contributo de Kirby. Por exemplo, a convoluta história da companhia Marvel (ou Timely-Atlas-Marvel) é um enigma que ainda não foi totalmente destrinçado pela história destes aspectos comerciais, económicos e institucionais da banda desenhada comercial norte-americana, mas Charles Hatfield apresenta um relato suficientemente claro ou organizado para criar o aspecto de fundo importante: esta indústria cultural era tudo menos clara, e a herança do grande fundador Martin Goodman é a de um negócio com contornos provavelmente conducentes a ilegalidades. De certa forma, é o que Alan Moore explica numa sua citação famosa em que equipara os barões desta indústria com a Máfia. A importância da maneira como as próprias revistas eram comercializadas, algo de muito, muito diverso do que se faz hoje, é também um factor que se deve ter em conta na leitura da obra de Kirby, a qual, muito francamente, foi ainda feita numa altura em que não se imaginava a sua sobrevivência comercial alargada. Ler hoje Kirby nos volumes de capa dura da Marvel e DC não é, de maneira nenhuma, o mesmo processo cognitivo que foi a sua exposição revista a revista, mês a mês, na sua época, e Hatfield incorpora esse factor nas suas leituras.
Hatfield não se coíbe, portanto, de questões extremamente complicadas, algumas das quais revelando da semiótica, outras da estética, outras ainda dizendo respeito à complicadíssima novela dos “ele disse que” do conflito Kirby/Marvel ou Kirby/Lee. Mas como escreve sobre algumas dessas facetas, “Este problema é básico mas mesmo assim insolúvel [intractable]” (42). Por outras palavras, existem questões que são algo ridículas de colocar, mas mais ridículo ainda seria não as colocar e querer passar por elas em silêncio. Por vezes, tentar pensar, mesmo que não se chegue a conclusão nenhuma, é uma vitória imensa comparada ao não querer pensar sequer. A relação com Stan Lee é então também abordada. O mito - veiculado nas próprias histórias dos anos 1960 da Marvel e depois por Lee em todas as plataformas possíveis - de que havia uma colaboração amigável e produtiva e equilibrada entre Lee e os seus artistas (Kirby e Ditko na linha da frente, mas muitos outros envolvidos não podem ser esquecidos) é precisamente isso: um mito. No entanto, a forma como os defensores de Kirby rapidamente correm para o outro lado da equação, no sentido de demonizar totalmente Lee pela forma como a Marvel se iria comportar em relação a Kirby, não é de todo um posicionamento criticamente aceitável. A “verdade”, ainda que sendo metafisicamente improvável de ser capturada na suposta totalidade, pode ser aproximada em termos históricos, graças à documentação, à investigação e ao exercício da inteligência. Hatfield emprega tudo isso para chegar a uma ideia mais equilibrada, mesmo que admita que nunca será possível ter uma ideia exacta e fechada de como as coisas se processavam. Afinal, esta era uma indústria que bebia de uma colaboração constante entre os empregados de uma companhia, mas em que esta acaba por sempre ter a última palavra - e, isto é importante, legalmente correcta. O facto das práticas se terem vindo a alterar não pode legislar retroactivamente.
O ponto mais importante, nesta parte do debate, é que Kirby foi um agente crucial na escrita de muitas das personagens e histórias da Marvel. É para isso que é empregue o conceito do “desenho narrativo” de Hatfield, para demonstrar que Kirby escrevia desenhando: “era ele quem tomava as decisões centrais sobre como é que a história deveria ser estruturada e a página composta, decisões que serviriam para ritmar e encenar a acção” (69). Este aspecto da importância de Kirby na criação - lançamento de ideias, desenvolvimento de um conceito, estruturação da forma e do meio que veiculará esse mesmo conceito, etc., e não apenas o alinhavar de matéria verbal - das mais icónicas personagens da Marvel ganha uma importância suplementar no seu papel em relação ao Homem-Aranha. Teve ou não responsabilidades no que viria a tornar-se essa personagem? Terá sido Lee o único somente a criá-la? E que papel teve Ditko em tudo isto? Bom, eis uma discussão que tão cedo não terminará, e para a qual Hatfield não deseja sequer apresentar solução. O mais importante não é alimentar a controvérsia que apenas leva a posições extremas, mas a compreender os mecanismos criativos desta arte em particular, e neste campo sócio-económico em particular (esta indústria específica), para deles fazer emergir o mais relevante para a discussão.
“Porque é que é tão difícil entender quem fez o quê na Marvel? A contribuição de Kirby para a empresa foi ocultada em parte pela própria forma como trabalhava. O chamado ‘método Marvel’ de produção tornava difícil determinar o contributo individual nos trabalhos finalizados, criando uma situação em que tanto o argumentista [scripter] (na maioria parte das vezes, nos primeiros tempos, [Stan] Lee), e o desenhador [penciller], ou artista da composição [breakdowns], poderiam reivindicar uma parte de leão do crédito dos conceitos basilares e do desenvolvimento narrativo página a página das histórias” (90); “Poderíamos dizer que, discutivelmente, não existe nenhum autor singular da Marvel Comics, ou um arquitecto singular do Universo Marvel” (94). Onde reside a importância então? “Em suma, a Marvel, sob Kirby, introduziu uma abordagem épica no género dos super-heróis que era ‘mítica’ quer na escala quer nas suas complicações de panteão” (138), “transformando essa banda desenhada de super-heróis formulaica muito mais permeável à complexidade emocional e muito mais ampla em escopo” (139).
E neste ponto preciso, a discussão sobre o modo como Kirby contribui de uma forma muito especial para a emergência da política da “continuidade” é imperativo. Em vez de termos cada comic book com uma história autónoma mais ou menos desligada das anteriores, a partir de certo momento da história dessa indústria, cada companhia foi começando a tecer uma rede densa de inter-referências, em que as várias personagens passam a habitar um mesmo espaço ficcional e cujas acções terão consequências de título para título e na vida futura delas mesmas. Ora, se essa situação anterior, de autonomia quase total, era o ponto de partida teórico que permitiu a Umberto Eco escrever o seu seminal ensaio “O Mito do Superhomem”, de 1963 (ainda hoje importante, mas que não pode ser lido com aplicabilidade total hoje), isso alterar-se-ia profundamente com a emergência desse conceito, numa primeira fase - com grande responsabilidade de Kirby - com frutos positivos em termos produtivos, criativos e até de retorno económico - mas depois elaborando um espartilho cada vez maior e obsessivo que ainda hoje faz sentir as suas consequências (os múltiplos “eventos”, os “crossovers” abusivos, a complicadíssima trama de referências impenetrável para os não-iniciados; mesmo com o relançamento recente da DC a mesma complicação mantém-se). Ora Hatfield demonstra como, se essa continuidade era uma benesse criativa para Kirby ao início, viria a tornar-se a razão da sua “queda” a partir dos anos 1970 (sobretudo o retorno a Capitão América, e Black Panther). E mais, demonstrando-se assim como “o género dos super-heróis não era apenas uma rede textual mas igualmente social” (142). No seu estudo mais detalhado de The Fourth World, Hatfield contrasta aquilo que pareciam ser os desejos de Kirby (que nunca na sua carreira foi de “grandes planos” mas de improvisos circunstanciais, cujo fim era trabalhar ao máximo para poder providenciar a família com dinheiro, e não cair na miséria na qual nasceu) e a realidade do que conseguir fazer.
A comparação com o que seria mais tarde conta corrente, mas nas mãos de um batalhão de escritores e editores, torna os seus esforços criativos ainda mais marcantes. “Projectos como esses [o Shadowline de Archie Goodwin, o Ultraverse da Malibu, o New Universe da Marvel em 1986, o Dakota Universe da Milestone, o universo dos Comic’s Greatest World da Dark Horse, etc.], quer criados por um só autor (…) ou por uma equipa (…), exigiam os esforços concertados de grandes grupos de editores e criadores para os instituírem no mercado, em contraste com o voo solitário de Kirby por todos os lados”; “a diferença, claro, está no facto de que aquilo que Kirby havia originalmente imaginado mas não conseguido (a oportunidade de trabalhar e dirigir outros criadores) tornar-se-ia, mais tarde, normativo” (185).
A obra de Kirby tem conhecido um muito recente esforço de reedição, de quase todos os géneros em que trabalhou, a que se acrescenta a contínua da Jack Kirby Collector, na qual Hatfield colabora activamente, um pouco mais nostálgica e encomiástica, mas que encerra em si pequenos contributos decisivos. Não se tratando nem de biografia nem de análise exaustiva da obra de Kirby, Hand of Fire é um volume importante na maneira como incorpora os vários instrumentos e disciplinas disponíveis para os comics studies, e seguramente que tanto se tornará um textbook pela sua matéria central como um modelo a seguir em relação a outros autores ou contextos.
Como de costume na nossa abordagem a livros desta natureza, temos de agradecer a Charles Hatfield, por ter dedicado parte do seu tempo a responder a um conjunto de perguntas, numa entrevista que podem ler, em português, aqui.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.