Há várias formas de morte na banda desenhada de super-heróis. A primeira é diegética, ou seja, é aquela que ocorre no interior das intrigas, das histórias, quando as próprias personagens, sobretudo as mais famosas e/ou centrais, morrem. Mas essa morte, mesmo que dramatizada ao máximo nessas histórias, é muitas vezes desarmada ora pelo regresso da própria personagem (pense-se em Jean Grey, esvaziando o impacto da famosa saga de Claremont e Byrne) ou por avatares da sua marca distintiva (pense-se no Capitão Marvel, da Marvel). Há depois mortes, ou aquilo que lhe há de mais próximo, programadas no interior de estratégias comerciais que pretendem relançar as vendas dos títulos (Super-homem em 1992, Batman logo no ano seguinte com
Knightfall, e
Batman R.I.P. em 2009, o Capitão América em 2007, o que não invalidará a qualidade atingida por alguns desses gestos, sobretudo com E. Brubaker e G. Morrison). Qual personagem maior não já passou por esse tipo de “morte”? E há aquela morte que advém do esquecimento e falta de uso (ou de ambas, implicadas) de certas personagens. Digamos mesmo uma morte “comercial”, quando as personagens, que são também marcas registadas, é preciso não esquecer, têm de ser utilizadas de tempos a tempos para não cair no domínio público. É o que ocorreu, de novo, com o Capitão Marvel da Marvel, pode-se dizer que é o mesmo que teve de acontecer entre a primeira equipa dos X-Men (de Roy Thomas e Don Heck) e a segunda (de Claremont e Cockrum), é o que teve de acontecer em
Watchmen, criado sobre modelos da Charlton Comics e da companhia que a comprara, a DC. A história deste género é, intrinsecamente, feita ela mesma de recuperações de formas, de temas, de figuras, é feita de versões e revisitações,
retcons e
reboots, etc. E ainda de batalhas judiciais em torno destas marcas registadas (veja-se a batalha que se adivinha para 2013 por causa do Super-Homem). Em suma, a morte, na banda desenhada norte-americana de super-heróis, é apenas mais uma forma de gerir a continuidade de uma personagem, de uma história, de toda uma
franchise.
The Twelve, de Straczynski e Weston, é isto tudo ao mesmo tempo.
Apesar das interrupções da série (cujas razões são questiúnculas de bastidores, mas que não deixam de revelar os modos de funcionamento da indústria, o que tempera a ideia de criações livres dos seus contextos económicos),
The Twelve foi desde sempre planeada como uma série de 12
comic books, mais os inevitáveis extras, com uma história seguida, em que se recuperariam 12 personagens obscuras da antiga Timely Comics, a companhia de banda desenhada que está na origem de uma das actuais grandes companhias norte-americanas comerciais, a Marvel. Essas doze personagens são, sem qualquer ordem, Rockman, The Blue Blade, The Phantom Reporter, The Laughing Mask, The Black Widow, Electro, The Witness, Mister E, Captain Wonder, Dynamic Man, Master Mind Excello e The Fiery Mask.. Todas elas tiveram direito a carreiras mais ou menos fugazes nas publicações dos anos 1940 (algumas surgiram mesmo em apenas
uma história), sem grandes contornos de interesse no que diz respeito à sua execução literária ou artística, já que algumas são mesmo medíocres, mas cujas implicações sociais e históricas – o assumidíssimo racismo, a superioridade americana, o provincianismo político, o maniqueísmo exarcebado, a propugnação da lei do mais forte e de um sentido de justiça de milícia violenta, etc. – são mais do que patentes e pasto para estudos académicos, e que se tornam também matéria explorada nesta série. E, para além do mais, para compreender a razão – por vezes correcta - da tal “perseguição” a que foi a banda desenhada, esta banda desenhada, sujeita à mão dos pedagogos, psicólogos e moralistas dos anos 50.
Até por estar associado a Straczynski,
The Twelve não pode deixar de ser lido em comparação com outra “série” de 2009,
Red Circle. Tal como
The Twelve, cada um dos títulos centra-se numa das personagens “ressuscitadas” - a saber, The Web, The Hangman, Inferno e The Shield - mas neste caso a estrutura é menos concentrada. Todas estas segundas personagens eram ou são marcas registadas da Archie Comics, uma companhia fundada nos fins de 1939 (conhecida sobretudo pela sua personagem
Archie, e todo o seu universo de
suburbana americana, vincado depois nas décadas de 1950 e 60 graças ao novo ímpeto visual trazido por Dan DeCarlo, e pela razão de explorar temas assegurados por outras frentes da cultura popular de então, acima de tudo veiculados pela televisão). A Red Circle era uma linha dessa companhia que produziu super-heróis, nas décadas de 1970 e 80, mas nada de grande monta ou interesse, igualmente. Esta segunda série de Straczynski seria uma forma da DC permitir integrar no seu “universo” (a tal rede ficcional que permite fazer cruzamentos entre as personagens-marcas registadas que possui) estas personagens, para as quais adquiriram direitos de exploração, tal como ocorre em
First Wave de B. Azzarello et al. (DC Comics) ou o recentíssimo
Mystery Men de D. Liss et al. (da Marvel). Todavia, é de notar como o projecto
Red Circle acabaria num outro limbo editorial e judicial.
O que se nota em comum em todas estas séries é uma recuperação, um regresso ou uma complicação das origens do género dos super-heróis no próprio contexto contemporâneo dos super-heróis. Como dissemos atrás, este género é feito de revisitações permanentes, mas essa tendência tem-se acelerado ou tornado estrutural nos últimos 20 anos. Este tipo de “regresso” não é novo (recordam-se de
The Rocketeer, do início da década de 1980?), mas é massivo e uma consolidada tendência do mercado
mainstream neste momento – não é apenas uma forma simples de assegurar a manutenção dos direitos de propriedade e exploração destas personagens pelas companhias, como de rendibilizar os seus bens autorais e captura de públicos específicos. O lançamento dos projectos transversais
The New 52 na DC, e agora da
Marvel Now! na Marvel, são sinal dessas acções editoriais que tentam agregar, simplificar e relançar os títulos/universos. Mas podemos ver essas acções num contexto em que a associação a outras fases históricas é notório. Veja-se uma colecção como a
Marvel Noir, ou a quantidade de
spin-offs do Capitão América e companheiros durante a 2ª Guerra Mundial, paralelamente à sua “morte”. E compreenda-se o panorama mais alargado pela presença cada vez mais implantada de tantas personagens imediatamente anteriores, ou laterais, aos super-heróis, no mercado dos
comic books: The Spider, The Black Bat, The Phantom Detective, Secret Agent X, G8, Doc Savage, Airboy, The (Last) Phantom e Green Hornet (que até teve direito a um filme).
É assim que
Mystery Men e
The Twelve podem ser lidos. E reparem-se nos factores. As máscaras estão lá, as capacidades físicas, místicas ou fantásticas estão lá, e até os modos de transformação, desde a vingança ao amuleto. Todavia, o fundo temático e profissional é ainda herdeiro de outras paragens: o detective e o homem forte (recordemo-nos de que quer Super-homem quer Batman começaram as suas aventuras em revistas precisamente com essas referências,
Action Comics e
Detective Comics), mas também, certas classes profissionais quase encontram aqui representadas: o aviador, o médico, o arqueólogo, o prestidigitador de
vaudeville. Estilística e narrativamente, porém,
Mystery Men é bem mais pobre, para não dizer medíocre, do que
The Twelve, ainda que se encaixando na perfeição do actual “housestyle” da Marvel, sobretudo pelo denominador comum das cores “oleosas e sombrias”, para repetir uma expressão de Christopher Dony que já havíamos citado noutra ocasião. Esta série ainda teve a reedição de dois comic books que coleccionavam histórias originais com todas as personagens, para que o leitor contemporâneo pudesse rever, ou mais provavelmente descobrir, essa mesma matéria (uma felicidade são as histórias de
Rockman, desenhada pelo magnificente Basil Wolverton, outra as do
Fiery Mask por Joe Simon), de forma análoga ao que se passou com
Batman: The Black Casebook, quando da série de Morrison,
Batman: R.I.P. & etc. São formas materiais e comerciais, então, de implicar toda essa tal recuperação e integração.
Uma das possíveis linhas de análise desta saga, portanto, é a de entender até que medida algumas das figuras “arqueológicas” dos super-heróis – os tais homens fortes e os “mystery men” dos
pulp, os
swashbuckler da literatura e do cinema, as criaturas da ficção científica – conseguem re-integrar-se nesse contexto e com eles se relacionar. Repetem-se mesmo toda uma série de fórmulas narrativas já tipificadas deste género, precisamente para entender como funcionaria uma sua versão (como discutimos a propósito de
Batman, e como Straczynski explorou em
Bullet Points).
A diferença entre toda a tipologia de personagens que acabaram por ser integradas no universo Marvel é mesmo matéria de discussão das histórias (sobretudo no
spin-off Spearhead, escrito pelo próprio Weston). Temos os homens-mistério, que não têm propriamente poderes, mas utilizam qualquer tipo de uniforme distintivo e colorido, afectos aos
pulps, os soldados (como os
Howling Commandos de Fury) e os super-heróis, desde os mais famosos – porque “sobreviventes” ao longo da história da Atlas-Timely-Marvel – aos mais obscuros.
Seja como for, reitera-se assim aquela noção introduzida no início de que estes gestos significam tão-somente uma estratégia das companhias voltarem a lançar no mercado as suas marcas registadas. Pô-las a render. Começa-se com um autor relativamente interessante, capaz de lançar uma personagem numa qualquer premissa nova ou num ambiente contemporâneo cultivável, e espera-se que se possa espremer até ao fim. Por vezes, esse fim é rápido, independentemente das razões que levaram até ele: compromissos dos autores, falta de interesse dos investidores, vendas baixas, alteração de direcção comercial. Foi o que aconteceu ao
newuniverse, de Ellis et. al, e é o que ocorre agora com
Before Watchmen.
Straczynski, obviamente, tal como Bendis ou Brubaker em alguns dos seus trabalhos, é um autor que está preocupado em moldar o mais complexa e densamente possível as suas personagens, abrindo espaço a largos monólogos, momentos de intimidade quer solitário quer em companhia, e que revelam as partes mais dolorosas possíveis dessas mesmas pessoas: memórias, arrependimentos, enganos, paixões, preconceitos, desentendimentos, incompreensões e todas as dívidas e pecados que os tornem pesados perante as suas vidas (como o fez, a nosso ver perfeitamente, em
Supreme Power). Pelo contrário, alguns outros autores (por exemplo, Mark Waid em
Irredeemable e
Incorruptible) procuram antes estabelecer a história através da acção, da intriga, o mais rápida e dinamicamente possível. Todos estes autores trabalham sobre um ponto de partida fundado por muitos autores na história dos super-heróis (“o que se passaria se eles existissem mesmo no nosso mundo?”), que pode ser encontrado até mesmo nas suas origens, mas que foi encontrando, a cada momento, novas inflexões mais ou menos interessantes (com Mark Gruenwald, ou a série
New Universe da Marvel, por exemplo), mas com grande destaque para Alan Moore, cuja obra foi extremamente influente em termos de estilo e amplitude (sobretudo
Miracleman,
Swamp Thing e
Watchmen). Todos estes títulos trabalham no seguimento desse novo território, mas há aqui uma curiosa inversão de expectativas. As séries de Waid e o
Project Superpowers, da equipa da Dynamite, são projectos pessoais, nos quais haveria toda a liberdade para fazerem o que bem entendessem, sem preocupações de “manchar” as personagens-marca registadas e, por isso, de perigar o seu sucesso comercial; Straczynski, por seu lado, em ambos os projectos, tem uma missão que é re-introduzir e re-valorizar aquelas personagens para que possam ser novamente exploradas comercialmente. Porém, os primeiros acabam por construir sobre ideias feitas, pequenos nódulos de acção mais ou menos expectáveis, e sem grandes rasgos de criação ou fundação de novos temas a partir dos velhos. São projectos sofrivelmente comerciais, sem outras dimensões. O segundo, ainda que não procure reinventar a roda, cada
vez mais polida, acaba por conseguir assegurar, pelo menos, uma concentração de vozes específicas e bem definidas nas suas personagens. A escolha de unir todos os acontecimentos a partir de uma só perspectiva (com excepções que tanto permitem conhecer melhor as personagens, como adensar os seus mistérios ou complicar as suas histórias pessoais), a do antigo herói The Phantom Reporter, Richard Jones, que de facto regressa à sua actividade de jornalista, e dar-lhe a ele a voz narradora que tudo enquadra, por vezes presente nos artigos que escreve para o
The Daily Bugle (uma forma, portanto, de inscrever todas estas personagens no universo Marvel, já que esse é um famoso jornal das histórias do Homem-Aranha, Demolidor e outros), é uma dessas formas de coesão experimentadas pela ficção contemporânea popular.
Mas Straczynski vai mais além. Não apenas nos permite olhar para essas séries antigas de um novo modo, como as levanta como uma espécie de espelho do que se vive hoje em dia. Todos aqueles valores antigos transmitidos pela banda desenhada popular, mesmo que distorcidos pela nostalgia e uma leitura parcial (os valores de honra, patriotismo, correcção moral, respeito, etc.), surgem como sinal da sua ausência total na nossa sociedade. O autor não deixa de mostrar como esses tais valores estavam manchados também por uma outra série de formas de ver o mundo que foram banidas, pelo menos em termos legais e gerais, ainda que não totalmente: sentimentos anti-judeus, racismo, machismo, chauvinismo cultural, ideia de superioridade tecnológica e cultural, um paternalismo irritante, etc. Mas tenta compreender como é que essa visão mais “inocente” (no seu sentido irónico) funcionaria no mundo de hoje, mesmo o fantástico dos super-heróis da Marvel pós-
Civil War. O contexto destas personagens, assim como as daquelas que se tornariam clássicas (o Capitão América, Fury, o Tocha Humana, Namor, enfim, os Invasores), é deixado aqui à luz do sol, e nem sempre abona em favor delas. As suas origens são mesmo colocadas em questão (à sombra do gesto de Moore, claro), como que revelando uma espécie de hierarquia mesmo no interior do Universo Marvel entre as personagens “normais” e estas “desenterradas”. Todo esse complexo serve, então, para demonstrar que não estamos necessariamente melhor, mergulhados num cinismo sem redenção. Se o desenlace final é algo ténue, ele cumpre ainda assim o programa de desmontagem e revisitação dessa outra era de personagens. O facto de isso ter lugar nos 9º e 10º números, permite que nos seguintes de crie um alongado
dénouement que sublinha a distância entre os tais dois “mundos de referência”
A figuração sombria, bulbosa e austera de Chris Weston encontra-se aqui quase sempre co-adjuvada por um dos seus melhores arte-finalistas, Garry Leach (artista de mérito próprio). Poderíamos dizer que a estruturação das páginas é convencional, ou clássica nos seus desvios, mas uma segunda leitura revela que esses usos, ainda que normalizados, servem bem o propósito de cada passo, tal como as cores, usadas de modo ora dramático ora semioticamente realçado. Diga-se de passagem que a primeira metade da série é mais coesa que a segunda, em que algumas fases parecem recorrer a soluções simplistas e até de uma qualquer imitação (há um trecho no volume 7 que parece ter sido desenhado por John Ridgway, e não Weston, por exemplo).
Como não podia deixar de ser,
The Twelve tem momentos em que integra a memória da banda desenhada dela mesma No número 5, dá-se um acontecimento que parece ser uma versão condensada (mas esvaziada do impacto psicológico e histórico) de
The Master Race, uma famosa banda desenhada curta de A. Feldstein e B. Kriegstein. Claro que, estando no Universo Marvel e falando-se de personagens que atravessam, com suspensão criogénica ou não, dos anos 1940 até à actualidade, há oportunidades para revisitar ou mencionar muitos dos famosos episódios da Casa da Ideias. Contudo, e repetindo uma ideia anterior, parte do prazer da leitura destes títulos está mais na nossa própria acção de cerzir através dos pormenores a história presente a todas as anteriores do que à circunferência somente do texto em si…