26 de setembro de 2012

BD ao Forte: dois workshops

Desta feita, gostaríamos de alertar os leitores deste espaço que estão abertas as inscrições para os vários workshops que terão lugar no evento BD ao Forte, organizado pelo André Oliveira. Entre aqueles oferecidos por Mário Freitas e Fil, que aconselhamos a aspirantes artistas, terão lugar ainda um workshop de análise formal de banda desenhada e outro de banda desenhada experimental, organizados por nós.
(Mais informações no blog do evento, ou nos links activos).

24 de setembro de 2012

Curso de História da Ilustração na Oficina do Cego

Serve o presente post para informar que estão abertas as inscrições para um curso de História da Ilustração, que terá lugar na Oficina do Cego entre os finais de Novembro e se prolonga até Janeiro, e que será dado por este vosso criado.
Este curso de longa duração pretende servir de introdução ao conhecimento da ilustração, quer de um ponto de vista histórico quer de um ponto de vista ontológico. Para além das questões de origem, serão identificados os vários campos e tipos de ilustração, aprofundando-se o estudo histórico de algumas dessas áreas. Começando na pré-história e na questão da emergência das imagens, abordar-se-ão as várias tecnologias centrais do desenvolvimento da ilustração: o advento da escrita, o aparecimento e desenvolvimento do livro (do rolo ao codex), a emergência do "esquema", o advento da imprensa, e as tecnologias mais recentes. Serão abordadas ainda questões de distribuição e papéis sociais das várias formas de ilustração. Em relação às áreas, falar-se-á das áreas mais divulgadas da ilustração infantil e da literária (quais os pontos de convergência e quais as distinções), mas também da ilustração de imprensa e a editorial, o cartoon e a caricatura, a infografia, a ilustração científica, de moda, e outras.
Para mais informações, consultem aqui.
Imagem: uma das duplas páginas do Göttigen Musterbuch [fols. 3v-4r; ca. meados do xéc. XV], mostrando como fazer desenhar e pintar folhas de acanto para as ilustrações da época.

20 de setembro de 2012

Como as cerejas. Portugal/Bologna 2012. AAVV (INCM)

Esta publicação é tão-simplesmente o catálogo que acompanhou a exposição de ilustradores que esteve patente na Feira do Livro Infantil de Bolonha (possivelmente o mais importante certame da Europa, sobretudo em termos editoriais, comerciais, isto é, onde se fecham negócios e se lançam ou multiplicam tendências editoriais), por ocasião da presença de Portugal enquanto país convidado. No entanto, na sua existência autónoma, ele torna-se igualmente, como as publicações afectas ao Ilustração Portuguesa ou ao Ilustrarte, ou gestos congéneres internacionais, próxima de um balanço e de  um directório desta área artística - não o sendo, porém -, ainda que numa categoria exclusiva (o livro infantil), no Portugal contemporâneo. A responsabilidade de comissariado esteve a cargo de Ju Godinho e Eduardo Filipe, cujo trabalho é reconhecido e consolidado nesta mesma área. Esta é portanto, uma confirmação da importância e valor dos gestos continuados desta dupla. E as repercussões da exposição poderiam certamente significar uma nova sinalização dos nossos criadores no mapa geral de referências internacionais, do qual estamos usualmente arredados. Perguntamo-nos se essa “missão” é cumprida, no entanto. (Mais) 

17 de setembro de 2012

Projections. Jared Gardner (Stanford University Press)

Jared Gardner é um investigador associado à área da cultura popular, e os seus interesses sempre vogaram em torno do início do século XX, entre o cinema, as revistas periódicas, a literatura e a banda desenhada. Neste último campo, ele é autor de alguns ensaios significativos, sobre um dos quais, “Autobiography’s Biography, 1972-2007”, esperamos dar notícias brevemente (associado ao próximo FIBDA). Este é o seu primeiro livro que tem a banda desenhada enquanto nexo das suas discussões, se bem que, tal como o de Scott Bukatman, com o qual estabelece algumas afinidades estruturais e conceptuais – e outras diferenças de monta – ela se integra num tecido cultural e artístico mais amplo. Mas onde Bukatman estudava o modo como as artes populares reflectiam certos conceitos da modernidade, Gardner tem uma maior atenção para a recepção e participação do público leitor e espectador. Não se trata tanto de um livro sobre banda desenhada só, nem da sua história, mas antes de uma arqueologia que pretende regressar “à cena das origens com as quais a banda desenhada sequencial [sequential comics] e o cinema [film] começaram a explorar o século XX em conjunto” (pg. 28). O autor compreende momentos de aproximação e de afastamento entre essas duas linguagens, tendo nalguns casos nossos contemporâneos uma possibilidade de regresso a práticas culturais anteriores: “a convergência de filme e banda desenhada pode ser entendida como a aceitação dos elos genéticos que uniram uma vez estas duas linguagens, quando ambas emergiram como novos modos mediáticos de narrativa nos primeiros anos do século XX” (181; leia-se, porém, a entrevista, no fim deste artigo, para alguma temperança). (Mais) 

14 de setembro de 2012

Calendarização das 2CBDPT.

Calendário das apresentações do 2CBDPT.
Aqui.

Tarefas Infinitas. Exposição/Catálogo (F. C. Gulbenkian).

Não será surpreendente que, apesar de este ser um espaço que quase exclusivamente se dedica à leitura crítica e analítica da banda desenhada (e, por vezes, da ilustração e da animação), e que de quando em vez incursa por territórios contíguos – do desenho às artes do livro, das teias que associam o gesto do escritor ao do desenhador, ou as formas como a ilustração traduz ou diz, mais do que complementa -, encontre na exposição Tarefas Infinitas. Quando a arte e o livro se ilimitam (patente no Museu Gulbenkian entre 20 de Julho a 21 de Outubro deste ano, sendo uma co-organização do Museu com a Biblioteca de Arte) um momento de aprendizagem, reflexão e inflexão de muitas das questões que sempre atravessam as nossas abordagens. A exposição é comissariada por Paulo Pires do Vale, filósofo, investigador e dedicado a muitas das linhas de força que encontram nesta exposição a sua presença mais moldada: o livro, a arte, a tarefa a que ambos obrigam o pensamento, o espaço social que os comporta, as disciplinas que complicam. Para além do próprio gesto curatorial e a exposição em si, temos acesso a algumas das desdobragens das ideias nos textos do catálogo-companheiro, objecto belo em termos gerais, ainda que visualmente repetindo com precisão, sem grandes rupturas ou desvios produtivos, a exposição. As considerações que se seguem não são sistemáticas, mas nascem de uma resposta à disposição dos objectos, dos livros, e aos textos. E, sobretudo, à forma que tudo isso fabrica: a forma com que ficamos após a visita à exposição, o manuseamento dos livros disponibilizados na Biblioteca, a leitura dos textos do catálogo. (Mais) 

Fun Home. Alison Bechdel (Contraponto)

Tendo escrito sobre este livro quando foi publicado originalmente, em 2006, e tendo encontrado algumas formas de dar continuidade às preocupações nele presente pelas inflexões permitidas por Are You my  Mother?, ficaremos apenas por umas quantas breves notas, a propósito da edição portuguesa de Fun Home. Apesar da ainda deficitária oferta editorial em Portugal de uma banda desenhada mais aberta às preocupações contemporâneas do mundo e à pesquisa autoral e artística, e a ainda mais paupérrima recepção crítica e de público, ainda atreitos a uma perspectiva menorizante desta área, no último ano o surgimento de Persepolis e Blankets e Diário Rasgado, e este, fazem imaginar a possibilidade de criar uma pequena biblioteca assente em outro tipo de princípios culturais (por mais diversos que sejam esses gestos entre si).
A banda desenhada não é, de forma alguma, um todo, uma mole constituída pelo número máximo de objectos, textos, obras, cujos elementos constitutivos, por sua vez, seriam totalmente coincidentes. Ainda que seja possível encontrar marcas ou delimitações comuns - que permitem, para começo de conversa, o emprego desse termo composto, “banda desenhada” - existe um particular desenvolvimento histórico, pejado de circunstancialismos, que lança também uma complexíssima rede de diferenciações. Ao longo dessa mesma história será possível encontrar textos que, por uma ou outra razão, são irmanáveis, e houve casos de autores e/ou obras que conseguiram, com os seus instrumentos usuais, tocar as raias da existência humana. Mas não a esmagadora maioria, fechada antes nas mais imediatas preocupações do entretenimento.
É de facto apenas num momento tardio do século XX que alguns artistas de banda desenhada iniciaram um caminho que se afastaria da produção de genéricas aventuras de heróis, inflectindo precisamente na representação da vivência particular do indivíduo. E se podemos encontrar nas experiências de Harvey Pekar e de Robert Crumb uma rebeldia em relação à produção existente do seu tempo através das diatribes ou explorações do si sozinho, já outros autores norte-americanos, de Art Spiegelman a Alison Bechdel, Fabrice Neaud ou Emmanuel Guibert, cada qual do seu modo, partem dessa solidão para atingir as ramificações que estabelecem com o outro, tornado “familiar”.
Esta última palavra deverá ser compreendida num sentido de alguém que nos é conhecido, nos é íntimo. Mesmo que na autobiografia em banda desenhada se encontrem vários graus de relação com os “objectos” dos textos, como nos casos de Emmanuel Guibert, Étienne Davodeau ou Dominique Goblet, usualmente voga-se na proximidade das unidades familiares, em Edmond Baudoin, em David B., em Alison Bechdel. E, como já aventámos antes, a leitura de Fun Home merece ser autónoma, mas ao mesmo tempo coordenada, desde já, ou pelo menos com conhecimento, do novo dedicado à mãe, o que tempera a secundarização dela neste volume agora traduzido para português. O excelente artigo de José Mário Silva, no Expresso, aponta precisamente esse aspecto, mas oculta, de certa forma, os desenvolvimentos para além do livro.
Permitam-nos uma generalização, uma espécie de dicotomia tonta e perigosa, mas que pode ser vir de ponto de partida para um debate ou uma discussão. Uma forma de entendermos, de uma maneira muito geral (generalista, simplória, redutora), a banda desenhada de memórias norte-americana por um lado, e a europeia, esmagadoramente francófona, por outro.
As memórias, numa leitura de Esther Leslie sobre Walter Benjamin, estão próximas do kitsch, objectos ruinosos e abandonados, os quais, “once winkled out of the fashion circuit of commerce – that is, once it becomes passé – it can be viewed through telescope eyes” (“Telescoping the Microscopic Object: Benjamin the Collector”). As memórias “americanas” ainda valorizam as memórias como moeda corrente, ainda há um fito para elas. A memória é algo útil. Nos autores americanos não existe uma esperança no passado (a esperança paradoxal de que dele possa emergir algo de inesperado, algo de diferente), pois essa memória encontra-se presa na sua própria cronologia, inalcançável, é como que um peso do pecado feito, tem um efeito, ou melhor, um valor económico, traumático. Na esmagadora maioria dos casos europeus, sim, essa esperança existe pela aberta interpolação, i.e., a interpretação que dela fazem... Poderíamos mesmo ir ao ponto de trazer à tona, não uma dicotomia mas dois pólos que operariam no interior de um espectro contínuo, o da “memória em banda desenhada”, e que permitiram encontrar, formados por várias combinações de proporção, aquilo a que chamaremos nós memografias e memologias, as primeiras sendo uma (jamais simples) transcrição das rememorações num texto (no nosso caso, vinhetas em sequências), com um intuito de recontá-las cronológico-linearmente e as segundas sendo explorações da matéria da memória, mimando os seus movimentos internos e suas fulgurâncias no próprio modo do contar.
Não queremos, como é de esperar, insistir numa qualquer hierarquia entre trabalhos, para mais sem qualquer análise e simplesmente partindo das circunstância de línguas ou de nacionalidades. É uma hipótese de trabalho. Bechdel poderá eventualmente ser comparada com muitos outros autores pela sua matéria narrativa e estratégias temáticas, com Spiegelman, claro, mas igualmente com Justin Green ou Chester Brown, Debbie Drechsler ou Aline Kominsky, com Craig Thompson ou Marjane Satrapi. Mas nós cremos que Bechdel abdica de todas as estratégias auto-fictivas, delicodoces, fantasistas, projectivas, resolúveis, humoradas, de muitos desses autores, e enfrenta de uma forma mais decidida a sua própria psique e a sua relação com os membros familiares (no caso de Fun Home, é o pai a figura eleita). Isto não quer dizer que não haja estratégias de pequenos desvios ficcionais e fantasiosos, que o livro seja desprovido de humor, que não haja momentos em que se projecta um desejo de resolução - a magnífica cena final, que re-aproxima e sublinha a capacidade de toque entre pai e filha, que faz emergir o toque do pai morto à filha ainda viva.
Acima de tudo, Fun Home pode ser visto como um programa previsto em toda e qualquer autobiografia: a da construção da própria identidade. Este livro é tanto sobre o pai e a sua relação com Alison como a construção dela mesma por ela mesma. Mais, este livro faz parte ainda dessa construção.
Estando ainda a preparar uma apresentação para as Conferência de Banda Desenhada em Portugal precisamente sobre a obra de Bechdel, sobre o uso de cenas de sonhos e de fotografias na matéria dos seus livros, fica esta breve nota, sobre essa outra dimensão da subjectividade na superfície do texto a ler. Todavia, o livro desdobra-se em dimensões de sentido. A atenção que Bechdel dá ao modo como tece as várias linhas de vozes (descritivos, legendas de narração, diálogos, citações de livros), a construção das páginas, tanto aparentemente simples e despreocupadas como extremamente significativas nas suas  tensões figurativas e de composição, a sua obsessão arquivística (segundo um estudo de Ann Cvetkovich), a levíssima camada “nevoenta” das aguarelas e o importante design do livro (infelizmente, uma das dimensões em franca perda na edição portuguesa: serão as razões económicas porém compreensíveis? É uma justificação, mas deve ser entendida também como uma franca “perda de texto”). Fun Home é um elegante edifício, cujos elementos devem ser degustados com parcimónia e atenção, numa segunda ou terceira leituras.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.

12 de setembro de 2012

King City. Brandon Graham (Image)

Esta saga aventureira mistura conteúdos e estratégias narrativas oriundas de vários géneros distintos, cuja mistura torna King City numa experiência estimulante – isto é, ao passarmos pelas suas acções, é curioso entender, numa leitura segunda, analítica, o que é que emerge do policial, da ficção científica, o que é que deriva da high fantasy até… Isto não é inédito, é certo, é antes o modo dessa mistura que se vai descobrindo. De certa forma, King City é uma espécie de Blade Runner ou Total Recall passado pelo filtro do “cute”. Passa-se num hipotético futuro, possivelmente muito adiantado, mas a um ponto em que alguma da tecnologia parece pura e simplesmente já não existir, ter regredido ou avançado de tal forma surpreendentemente que não se distingue da magia, como queria Arthur C. Clarke. O próprio Brandon Graham confessa que, mais do que pretender imaginar que tipo de tecnologia irá existir no futuro, uma vez que essas tentativas de imaginação se tornam rapidamente datáveis e obsoletas (basta ler ficção científica de décadas atrás; Katsuhiro Otomo disse numa entrevista que nunca lhe passaria pela cabeça, quando criou Akira, que surgiriam coisas como os telemóveis), fez um salto paradoxal para o futuro e para o passado. Seja como for, em alguns aspectos este mundo corresponde ao nosso: algumas das datas citadas de vez em quando, mas noutros momentos parece um planeta totalmente diferente.
A história segue o regresso de Joe à cidade que dá nome à série. Joe é uma espécie de espia para todo o serviço, um mercenário que se dedica a missões ora (aparentemente) simples ora mais complicadas, misturando desde o parkour a tecnologias mágicas. Joe é agora um “cat master”, ou seja, controla ou é coadjuvado por um gato, Earthling, que é capaz das mais mirabolantes capacidades, desde reproduzir uma chave através do regurgitamento ou transformar-se num periscópio (magia?, tecnologia?). Se os primeiros números são ocupados a montar o ambiente, perceber a rede de relações e apontar às coisas mal resolvidas desde que partira, sobretudo a história com a ex-namorada Anna, agora vivendo com uma espécie de Frankenstein – permitindo assim um adensamento para vir a ser desdobrado mais tarde, portanto chave de suspense -, a partir de um momento o âmago da aventura é lançado, e que envolve um terrível culto canibal e demoníaco. Ao mesmo tempo, uma trama secundária é desenvolvida em torno do seu amigo, Pete, e da paixão assolapada que sente por uma estranha alienígena (mas bela, segundos os mesmos padrões terráqueos, claro, e há ainda um expectável bordel intergaláctico para o comprovar), ao ponto de trair a missão para o qual foi contratado (outro cliché, bem visto, mas explorado correctamente).
Graham emprega variadíssimas estratégias formais que são inerentes à banda desenhada, e que tanto revelam da tradição norte-americana dos comic books como da banda desenhada europeia, como da mangá, procurando ritmos diversos nas acções, muitas vezes optando por vinhetas que as interrompem para revelar um pormenor, ou distribuindo as personagens num panorama em vários momentos, criando protocolos de leitura ligeiramente desfasados, aprofundando a velocidade da leitura em momentos decisivos e diminuindo-a nas transições de cenas, etc. Muitos dos pormenores que adensam as paisagens obrigam a um desvelamento de objectos que adensam o ambiente, explicam uma acção, ou ajudam a compreensão de uma situação qualquer, precisamente os fitos do dito “technobabble”. E muitas vinhetas mostram planos de pormenor ou esquemáticos, revelando o funcionamento de uma máquina ou dispositivo, explicando uma técnica ou um objecto, de novo associando-se a muitas das estratégias para-narrativas da mangá. Sem nunca esquecer os trocadilhos linguísticos tornados palpáveis pelas imagens (“Cat-cienda”, “Cervix Entrance”, etc.).
Outra das estratégias narrativas (que Graham explora igualmente noutros seus trabalhos) são as inúmeras referências a aventuras passadas que expandem o enquadramento ficcional deste mundo (algo que é cumprido por muitos outros gestos autorais, senão todos, de modos sempre diversos, mas que ganham aqui um peso substancial no imaginário).
Graham faz parte, tal como outros autores já citados a propósito de Adventure Time, de uma geração que está muito confortável em navegar para trás e para diante entre territórios distintos, onde um sem tergiversações se apelidará de mainstream e outros mais autorais, alternativos. Ou melhor, territórios em que elementos de ambos os campos (nunca dicotomias absolutas e claras, mas antes localizações tensas num contínuo) estão presentes num equilíbrio descomplexado, e que tem encontrado em algumas editoras o local ideal para a sua exploração, como a Image, a Oni, a Vertical, a Boom! Studios, etc. bastará ver o percurso do autor e da série, que passou pela Alternative, pela Oni, pela Tokyopop e agora se encontra na Image, para compreender essas travessias e misturas.
Aliás, a Image, com títulos tais como Saga ou The Bulletproof Coffin, têm contribuído para essa tendência. É como se se tratasse de um regresso às suas origens enquanto gesto de autonomia económica, que foi precisamente o que levou vários artistas da Marvel a fundar a Image, mas onde uma nova geração fosse mais criativa, original e com um sentido de pundonor nas suas criações, em vez de tombar em narrativas genéricas e pouco inteligentes, onde a imagem (claro!) tinha mais importância – mas uma imagem desligada de um dinamismo mais apropriado à banda desenhada, e antes próximo ao iconicismo estático da ilustração, do pin-up, da commission. Se se seguir Prophet, que discutimos adiante, também escrito por Graham, vemos uma explicitação muito clara de como esta nova geração emprega os materiais deixados pelos fundadores da Image, e se tornam “seus” e “mais pessoais”.
Em Portugal, parece-nos ser Rudolfo da Silva e ca. aqueles que melhor representam esta tendência, se bem que não tenham à sua disposição a máquina editorial que lhes permitiria expor e circular melhor os seus trabalhos. Aquelas expansões narrativas que são prometidas no próprio veio principal da história encontram outros desenvolvimentos. Por exemplo, alguns autores que colaboram com Graham neste mesmo título, ou que o fizeram durante o comic book (em capas, ou pequenas histórias), ajuda também a estender o mythos de King City, dos cat masters, ou a suas implicações junto aos fãs. Ora mostrando outros agentes parecidos com Joe, ora fazendo imaginar que papel eles teriam no nosso mundo real, etc. E, para mais, esses colaboradores também se juntam a esse núcleo alargado que indicámos brevemente, como James Stokoe, Thomas Herpich (de Cusp e Gongwanadon), e a sua namorada Marian Churchland (tanto autora de histórias curtas ou capas para coisas como Elephantmen, Madame Xanadu como do meritório e mais pessoal Beast).
Em termos de imaginário, vemos aqui uma tendência que é algo nostálgica de um certo modo de fazer ficção científica em banda desenhada nos Estados Unidos, como na Europa ou no Japão, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980. Mas utilizando essa atitude retro para relançar pistas para uma banda desenhada contemporânea, descontraída, despretensiosa e até com um genuíno prazer em existir. Mais próximo a um livro recente entre nós, é uma tendência que também sentimos presidir a Asteroid Fighters, de Rui Lacas, se bem que neste caso sem o mesmo tipo de desenvoltura. Até mesmo as histórias “laterais” na versão do comic book, que mostravam o próprio Brandon Graham como protagonista, lança eventuais jogos de referências privadas análogas às que se verificam em AF, reforçando essa analogia ou comparação.
Muitos dos aspectos figurativos e estilísticos de Graham recordam autores como Taiyo Matsumoto, Jamie Hewlett, Jim Mahfood ou Paul Pope, com os quais as afinidades são evidentes. Se bem que seja verdade que as “fontes” explícitas pelo autor apontem antes a Moebius e Otomo (ou outras referências europeias e japonesas que vão surgindo ao longo das páginas), há com esses outros autores, sobretudo norte-americanos - e pensamos em Mahfood em particular - a mesma partilha de estratégias visuais e escolhas temáticas. O mesmo tipo de cool, por exemplo, e o foco particular numa certa forma de estar urbana, atenta quer a modas de vestuário quer a culturas musicais (tantas vezes umas intimamente relacionadas com as outras). Daí a presença de elementos culturais como o graffiti, o skate, gangues, zombies, aliens, máscaras de luchador, os ninjas, as “japonesices”, e, outro elemento que não poderia faltar, esse novo tipo de femme fatale das gerações mais contemporâneas, que em vez de se vestirem de noir escolhem antes a American Apparel e são mais Bond girls que Bacall. Mas também o repetente tema lovecraftiano dos Deuses Anciãos e do Cthulhu, aqui tratado com alguma frescura. Regressando a Mahfood, estas personagens têm igualmente contornos arredondados, num encontro feliz entre o mais clássico bigfoot e um estilo cartoonesco infantil, mas sem esquecer o cada vez mais presente “mangá internacional” e uma forma romantizada de entender a banda desenhada europeia (com Moebius sempre à frente, e outras referências do “Euro sci-fi”). Aliás, King City, em muitos aspectos, parece ser uma versão ocidental daquela estrutura genérica usualmente à shonen mangá a que se dá o nome de nekketsu, do qual Naruto é possivelmente o exemplo mais actual. Todos os elementos que o compõem são mais ou menos identificáveis neste título (apesar de alguns contornos mais adultos).
Apesar de termos falado de uma missão central, é curioso notar como a personagem acaba por rondar o evento principal, e com ele, os leitores. Essa acção continua a desenrolar-se, mas nós estaremos mais próximos do que Joe tem para fazer. Isso não pode deixar de ser entendido como uma pequena subversão da economia usual deste tipo de aventuras, que não a nega totalmente, mas procura seguir um caminho ligeiramente diferente. Tudo isso contribui para o prazer inegável na leitura deste livro.
Como é de esperar, parte do charme destas aventuras de Joe está no facto das suas missões, quer as menores e secundárias quer a principal, o obrigar a tornar-se um flanêur na sua cidade. Esses percursos jamais são feitos ao acaso; bem pelo contrário, são decididos e claros quanto aos seus objectivos, mas ajudam ao leitor fazer a sua própria descoberta, cada vez mais expandida, da cidade. King City faz parte de uma série de bandas desenhadas cuja relação com o espaço é não apenas circunstancial, para ancorar a acção, mas intricadamente construída, em que o ambiente urbano é parte desde logo do espírito da narrativa (como, por exemplo, Mister X de Dean Motter et al., mas também as cidades da Garagem hermética ou do Incal). E estes elementos (todos, aliás, que temos vindo a citar) fazem parte também da curta graphic novel que Graham criou a meio desta série, Multiple Warheads. Na verdade Graham havia interrompido King City por razões pessoais/médicas, e este outro título, apesar ser relativamente mais simples, e leve, uma comédia de acção e ficção científica, parece ser também um exercício quer de retoma do fôlego quer muito revelador de uma vontade em regressar a estratégias narrativas e comerciais hoje em dia algo esquecidas no panorama norte-americano, mas que sempre foi perene na Europa: o álbum independente numa série coordenada. Aliás, na mais do que expectável necessidade em variar a oferta comercial, muitos editores procuram soluções que escapam do formato “comic book mensal com série regular”, para experimentar fórmulas já antes existentes, desde estas séries que encerram capítulos independentes, até revistas que contêm várias histórias ou capítulos curtos (como Creator Owned Heroes, que regressa aos primeiros comics nessa distribuição). Mais uma vez, esta é uma maneira de nos apercebermos que na leitura destas obras não basta o seu texto propriamente dito, sendo necessário tomar em conta o contexto social, histórico e económico, que pode ditar as suas próprias estruturas.
Há mesmo um momento em que, aumentando o grau de participação possível dos leitores no próprio texto, o autor oferece um mapa da cidade sob a forma de jogo de tabuleiro, onde devemos ajudar os protagonistas a chegar aos seus destinos. Num momento em que a interactividade prometida pelas plataformas digitais e da web são cada vez mais imersivas, estes regressos - que não deixam de ser nostálgicos - são de uma candura quase desarmante.
[Nota: imagens da web]

Prophet. Brandon Graham et al. (Image)

Estando ainda em desenvolvimento, esta série de comic books poderá ter desfechos inesperados ou alterações à própria natureza do projecto, como já nos habituou ao fim de, até à data, nove números (os seis primeiros compondo um TPB). Esta série inicia-se no número 21, dando continuidade a um título que havia sido interrompido em 1995, se não estamos em erro, e que fazia parte da panóplia típica da primeira Image. Para mais, esta personagem foi criada pelo inenarrável Rob Liefeld. Um dos aspectos positivos desta série, em relação à sua “vida anterior”, é que essas informações não são, e forma alguma, necessárias. Não se trata apenas de um reboot, como ocorreu no caso de Supreme nas mãos de Alan Moore. Podemos mesmo ver esta série como algo de novo. Se bem que isto seja discutível, preferimos acreditar que a dispensa displicente da obra de Liefeld é uma atitude de sanidade mental. Se Moore teve o cuidado de desmontar Supreme para lhe criar novas direcções, Graham parece ter deitado fora as peças e começou de novo.
Se se reduzirem os elementos desta(s) história(s) a palavras-descritores, encontraremos, de certa maneira, uma repetição do que está previsto em King City: o regresso de um herói a um local de onde estava afastado, um futuro distante na Terra, a subversão de uma missão, mistura entre tecnologia e magia, metástases ficcionais a partir de narrativas cristalizadas, etc.
Num hipotético, remoto e pouco familiar futuro, John Prophet acorda. Apesar de ser sempre complicado lançar mão a elementos culturais ou físicos que sejam tão estranhos que não encontrem qualquer tipo de reflexo ou analogia nos humanos, Graham faz com que o seu protagonista surja num momento tão futuro sobre a terra que quase não há sinais da civilização humana. Esta expandiu-se através do universo mas depois se apagou, deixando apenas destroços de tecnologias, paradoxalmente, futuras - para nós - e arcaicas - para o presente da narrativa -, e todos os seus habitantes – várias espécies alienígenas, quer inteligentes quer de “animais”. A missão que John Prophet tem é conseguir reactivar as redes de comunicação, que permitam por sua vez “acordar o Império Terra”.
Mas tal como a personagem original atravessava vários momentos na História da Humanidade, também esta se fragmenta a si mesma. John é uma espécie de clone ou equipamento repetido e espalhado nesse universo, e paulatinamente seguiremos as pisadas de vários “Johns Prophets”. A série é constituída por vários “arcos”, alguns dos quais totalmente desligados uns dos outros, e histórias paralelas.
Este modo de construir a história permite que se vá avançando por contos autónomos, que se encaixam no universo maior (aqui, quer no seu sentido habitual do mundo da narrativa quer no sentido literal, que assume nesta space opera). Uma vez que temos clones, podemos ter uma história sobre um dos Johns Prophets num planeta longínquo, e assim vermos toda uma série de civilizações ou meios ecológicos alienígenas. As histórias curtas (“back-ups”) dos vários convidados (Emma Rios, Lin Visel, Frank Teran, Matt Sheean e Malachi Ward, a recuperação do trabalho de Fil Barlow, outras das referências-chave para Graham) trazem ainda mais dessas camadas, e é curioso ver como muitas vezes se opta menos por um tom explicativo, e mais por uma quase fria exposição dos factos, das espécies encontradas e da tecnologia empregue, como se fosse a coisa mais banal de se saber – e, naquela realidade ficcional, é. Esse factor vai até aumentando em grau à medida que a série avança. O primeiro arco parece inscrever-se num método formulaico, em que se utiliza uma personagem/trademark numa história nova, mesmo que aqui seja um futuro irreconhecível. Mas mal este termina, Graham apresenta uma mão-cheia de histórias com Johns diferentes e fica nas mãos do leitor ir percebendo como se encaixam umas nas outras. E a atenção aos pormenores (desde o cuidado em perceber as diferenças entre as espécies, como é que uma peça de equipamento surge ou funciona, etc.) é ou será recompensada.
Essa estrutura remete mais uma vez, como dissemos a propósito de King City, a práticas editoriais de outras plataformas. Recordam-nos aquelas histórias curtas, concisas e por isso mais reverberantes, ainda que obscuras, que se liam em revistas tais como a Métal Hurlant, a Heavy Metal, a 2000AD, a Mundo de Aventuras, ao longo das décadas de 1970 e 1980. Precisamente um quadro de referências importantes para Graham.
Haverá, seguramente, muitos outros trabalhos com os quais poderíamos fazer comparações, em quase todos os momentos e palcos em que se produziu banda desenhada de ficção científica (e literatura, e cinema, e teatro). Não seria totalmente disparatado encontrar ora ecos ora afinidades com P. Christin e J.-Cl. Mézières, Bryan Talbot, Carla Speed McNeill, Matt Howarth, Ricardo Delgado (Hieroglyph) e a clássica Alien Legion no sentido de tentar criar - com menor ou maior sucesso - culturas complexas e verdadeiramente outras, em vez se simples projecções das culturas terrenas actuais num contexto científico-ficcional.
Tal como ocorre em King City, mas mais acentuadamente, Prophet é um projecto de colaboração. Graham conta com Simon Roy nos primeiros números como artista, mas depois como co-escritor também, e com um grupo curioso de artistas a emprestar os seus talentos e dimensões visuais (e mais uma vez remetendo àquela discussão de um tipo de trabalho que complica a relação “mainstream” e “alternativo”), como Farel Dalrymple [a segunda prancha mostrada] e Giannis Milonogiannis (e relembremos as histórias paralelas). Quando é o próprio Graham a desenhar, há como que qualidades de Miyazaki a aparecerem, de tão delicado que as suas linhas se tornam neste contexto, quase fantasioso [veja-se esta imagem], mas os restantes colaboradores reforçam um certo realismo carnal e físico, muito apto a esta fantasia negra, lamacenta e lenta, da missão de um só homem contra um império sideral.
De tom bem diverso de King City, mais soturno, não deixa porém de ter uma leveza muito salutar.
[Nota: imagens todas da web]

10 de setembro de 2012

Monologues for Calculating the Density of Black Holes. Anders Nielsen (Fantagraphics)

A palavra que ainda continua associada ao trabalho de Nielsen é “pesquisa”. Se este volume é, em muitos aspectos, desde os formais do próprio livro aos seus temas recorrentes, um companheiro ou mesmo gémeo a Monologues for the Coming Plague, essa insistência só pode ser vista como o mais correcto escavamento das suas preocupações. Se o primeiro termo, “monólogos”, é quase meramente descritivo da maneira a que as personagens têm acesso para se construírem a si mesmas, os segundos termos, isto é, os objectivos dos mesmos, são tão grotescos que apenas esvaziam esses mesmos gestos. Tornam-nos “absurdos”. Nada disso, porém, invalida que se continuem a repeti-los, e que se insista na pesquisa.
As figuras esquálidas, aparentemente desenhadas ou mesmo rabiscadas a esferográfica, não precisam de ser mais moldadas do que são para surgirem como sinal ou marca de presença das vozes que depois se articulam. Como as obras anteriores – com a excepção talvez da narrativa mais nítida (e estaremos a exagerar) que atravessou o centro de Big Questions – de Nielsen, o que temos aqui são sketches, pequenas cenas que tanto poderemos ler como isoladas e auto-suficientes como pedaços que se articulam entre si. Quer num caso quer no outro, porém, os sentidos são tão banais e corriqueiros como profundos, e por isso sempre elusivos. Imaginamos mesmo que estamos perante uma espécie de notação para impromptus teatrais (corroborado por o autor empregar a palavra “acto”), a partir dos quais uma troupe de actores poderia lançar-se à sua própria pesquisa de como transmitir o mesmo tipo de paradoxal “passional apatia” destas personagens. Em algumas passagens, vemos a súbita presença de uma sombra, um outro corpo, como se fossem a ideia de algo de que depois se desistiu, ou, para continuarmos a transposição metafórica teatral, como se fosse um outro actor que se enganasse no momento da entrada ou que procurasse estes efeitos de estranheza precisamente por não cumprir um programa de causalidade, naturalidade, narrativa.
O carácter fragmentário não se poderá explicar somente pelas circunstâncias de produção – sendo pequenas peças criadas para mini-comics ou antologias (Mome) – mas igualmente por Nielsen se interessar particularmente por esta ideia de escalas diferenciadas que podem sofrer várias permutações.
Quem são estas personagens? Sofredoras de mitomania, até ao ponto de acreditarem serem seres divinos? Vítima patéticas de um sistema social incomensurável, que nos obriga a provar a nossa própria identidade através de uma série de documentos e actos registrados? Personagens criadas pelo autor lançadas em situações que depois de atravessarem todo o deserto do desespero se tornam caricatas? Os rostos riscados ou as personagens que negam permanentemente a sua identidade, ou a não controlam ou possuem, os erros de comunicação, a alteração física que por vezes ocorre a várias personagens ao longo das suas histórias, etc., tudo isso contribui para essa ideia.
No entanto, é precisamente pela abordagem ultra-minimalista de Nielsen – as personagens não têm traços que componham o mais mínimo rosto, logo a questão da expressão está como que suspensa - que o humor, o tão particular humor do autor, emerge. Nesse sentido, mas não noutras particularidades, Nielsen encontra uma família imediata em David Shrigley e Bruno Borges. Também nesses casos a importância centra-se na imperturbável e mínima dimensão visual e a complexa reviravolta construída no texto. Se nalguns exemplos anteriores, Nielsen tinha personagens que não se moviam mas os diálogos pareciam inscrevê-los em cenas de grande dinamismo, neste caso o(s) monólogo(s) do(s) protagonista(s) remete(m) sempre a acções já passadas. E então a estranha apatia que os atravessa torna-se ainda mais premente por percebermos as suas histórias, que deveriam antes ter levado à raiva, à vingança, ou ao desespero terminal.
Nielsen tem um alvo que desmonta: a credulidade humana em soluções fáceis e absolutas. A psicanálise, a religião, a astrologia, os livros de auto-ajuda, a Oprah, seja o que que for que as pessoas encontram como fórmulas de se sustentarem de uma vez por todas. O problema não está em crer-se de vez em quando no que diz a secção de astrologia, ou encontrar algum sustentáculo em consultas breves de psicanálise ou recorrendo a psicofármacos, ou jogar no Euromilhões e fantasiar nos usos da fortuna. Está em crer que existe uma “chave mágica” que, mais tarde ou mais cedo acertará, que dizermos “sou Caranguejo” explica quem somos, que esgotando a nossa história a um qualquer processo de “cura” definitivo se atinge a felicidade. que há, enfim, uma explicação (problema duplo: o da univocidade e o da solução). Todas essas soluções, quando surgem como absolutas, obsessivas para os seus utilizadores, são então aqui reveladas como edificações vazias e trémulas. Os reality shows que criam uma camada de auto-consciência e auto-escopia que se tornam por sua vez num filtro que impede precisamente a realidade de ser experienciada, a qual, para o ser, deveria fluir pela distracção. Quando não são mais do que desculpas para continuar a aprofundar a instrumentalização (e a mercantilização ou “comodificação”) da vida humana e a criação de novas oportunidades de comércio para marcas e produtos já consolidados. Os celebrity matches, em que o exercício do conflito apenas serve não tanto para uma verdadeira exploração do valor eventual dos combatentes, mas de uma redução das suas características, reificadas elas mesmas para se construir essa tensão. Além do mais, não será impossível ver nessa interminável lista (de Madonna a Jay-Z, Bin Laden a Martha Stewart, mas passando igualmente por eventos históricos, disciplinas médicas e espécies de animais) um estado do ridículo em que tudo é redutível a tudo, sem quaisquer tipos de hierarquias ou diferenciações. É como se esta(s) personagem(ns) tentasse dominar toda a espécie de disciplinas e discursos para que se pudesse entender o mundo, as pessoas e as situações, mas quanto mais instrumentos elegesse e agregasse, apenas esclarecesse o único facto de que tudo não é mais do que absurdo. Tudo isso contribui então para o fito central… o cálculo da densidade dos buracos negros.

7 de setembro de 2012

Sobrevida. Carlos Pinheiro e Nuno Sousa (Imprensa Canalha)

A morte poderá surgir não como ponto de chegada, fim, resolução, mas ponto de partida, condição mesmo do início da narrativa, do balanço, da transmissibilidade. E mesmo que não haja morte, ou ela seja somente aparente, ou anunciada de uma forma quotidiana e banal, a sua sombra cai sobre a vida que ainda se leva. É de uma natureza sombria próxima a esta tentativa de descrição que Sobrevida evidencia.
Uma descrição formal e quase exaustiva de cada “metade” deste livro a dois providenciar-nos-á com os elementos necessários a uma sua leitura interpretativa. A parte que se apresenta em primeiro lugar intitula-se “A noite” e é assinada por Carlos Pinheiro. São 23 páginas com três ou duas vinhetas rectangulares, ainda que de contornos irregulares, de formato e tamanho idênticos, com a excepção da primeira, maior, e que parece ser um breve establishing shot. Todas as vinhetas são desenhadas a linha preta, a esferográfica (Pilot 0.4, precisa o autor), num trabalho intenso e paciente de tramas para criar sombras, texturas e vários planos. As vinhetas como que “flutuam” na página, mas sobre uma vaga estrutura ortogonal, e quando as pranchas apenas se compõem de duas vinhetas, o espaço que estaria reservado à terceira está ocupado por uma breve linha de texto, com uma caligrafia segura e clara. Estas frases são sucintas e nunca estão pontuadas, com a excepção da última (“fim.”). Curiosamente, estão todas na primeira pessoa do plural, sem qualquer procura de individualidade, quer textual quer visualmente, uma vez que vemos um grupo de nove pessoas, de homens e mulheres, sem nunca haver uma individuação repetida ou suficiente para identificarmos um (ou uma) protagonista destacado. Diegeticamente, desenrola-se aqui uma estranha ou leve fantasia, em torno de um grupo de comensais envolvidos em pequenos jogos após o jantar, alguns dos quais revestindo-se de contornos de violência urbana: virar contentores de lixo, partir montras à pedrada, atear fogueiras nas ruas, ocupar praças e as suas estátuas.
A segunda parte, “O dia”, é de Nuno Sousa, tem 24 páginas, e é a lápis de cor (nalguns segmentos, uma vez que usa um papel de poliéster, dá-se um efeito cromático mais baço, que recorda os da aplicação de cera ou de pastel). Se há dois ou três passos monocromáticos (sobretudo azuis), na maioria as cores misturam-se de forma expressionista, não naturalista. Apesar de algumas páginas (treze) apresentarem uma estrutura regular idêntica à de Pinheiro, com três vinhetas horizontais mais ou menos simetricamente organizadas, há uma maior variedade de composição, com páginas a ocupar toda a área de impressão da página (sangramentos), ou desenhos individuais não-emoldurados. Existem páginas sem texto, em que o tempo parece suspenso, ou lento, ou então apercebemo-nos (imaginamos, projectamos) serem cenas repetidas, mas a presença de texto é regular, sob a forma de legendas fora das vinhetas principalmente, em três casos legendas internas às vinhetas, e um só caso com um balão de fala (se bem que outro caso de discurso directo possa ser discutido). O texto, seja como for, está na primeira pessoa – poderá mesmo tratar-se de um caso velado, desviado, de somenos, de autobiografia -, e parece estabelecer um diálogo com a figura do pai, que também se expressa em discurso directo, entre aspas ou em balões. A voz do narrador parece falar de um regresso à casa deste pai, reformado, e a consequente união de duas desilusões - do pai e do filho - ou descontentamentos com a inércia (forçada), apenas dirimida ao de leve por pequenos nadas, distracções, conversas de café, comentários sobre comentários.
Como descreveremos estas partes em si e entre si? A própria opção por uma palavra qualquer revelaria desde logo um posicionamento crítico e interpretativo. Se dissermos “episódios”, quereremos apontar o modo como os elementos diegéticos – por mais ténues que sejam – de um se encaixam nos do outro. Regressando mesmo a Aristóteles, estaríamos junto da sua teoria narrativa, e diríamos que estas são partes com formas diferentes entre si, e diferentes do todo, mas que são sucessivas temporalmente e apresentam laços de causalidade, cuja completude apenas se atinge no final. E aí teríamos um obstáculo já que “A noite” e “O dia” não apresentam quaisquer elementos partilhados de forma indiscutível, consensual. Se falarmos de “histórias”, parecia estarmos a falar de uma mera acção antológica, a repetição de um acto editorial em que dois companheiros de outras plataformas criariam algo individual e cuja agregação era apenas conjuntural, quase de ocasião. E assim falhar-se-ia em entender que elos estão de facto presentes entre ambas.
No espaço intervalar que estas duas partes criam no objecto-livro, há uma distância suficientemente alargada para que a reflexão surja. Uma possível temática comum é a angústia social em que se habita hoje em dia no nosso país. Sendo os autores do Porto, e assinalando-o textualmente no fim do livro, quase a jeito de assinatura, perguntamo-nos até que ponto será relevante essa informação para a leitura e fruição de Sobrevida? (reconhecemos a Praça D. João I, em frente ao Rivoli, mas possivelmente já atravessamos as paisagens curtas da parte de Sousa). As paisagens urbanas que vemos nesta obra não são totalmente reconhecíveis, podendo confundir-se com as paragens urbanas ou suburbanas de várias cidades, mas haverá uma atenção particular para uma moral em vigor na cidade do Porto? Seria possível ler este livro à luz, não apenas dos gestos anteriores destes autores (por moto próprio, no Senhorio, ou através de projectos de camaradas, pela Mula), mas também do projecto transversal do Buraco? Haverá aqui um entrosamento de preocupações políticas, de uma luta através da aflição, do desespero, da espera entediante de uma resolução que sabemos ou tardar obscenamente ou que jamais virá, e as preocupações criativas recorrentes dos autores? Poderemos ler este livro tormentoso como um gesto de resistência a esse nível? Até que ponto pode Sobrevida ser lido como ficção, como estranho retrato da actualidade ou como acto poético? E porque não algo que amalgamasse esses três feixes de sentido?
Não deixando de encontrar aqui alguns dos princípios que sempre pautaram as preocupações do trabalho de ambos os autores – quase sempre buscando um diálogo com o mundo social das artes plásticas, buscando como que apontamentos de instalações e performances de maneira a integrarem pequenas ficções onde vários géneros são facilmente reconhecíveis, como o humor (Pinheiro) ou uma estranha ficção científica (Sousa) -, ao mesmo tempo sentimos uma qualquer inflexão ou mudança, para um território mais intimista, mais emocional, que arreda parte do humor anteriormente presente. Se a “parte” de Nuno Sousa poderá dar indícios, se não de autobiografia (pois não há quaisquer dados que possa corroborar essa hipótese, não sendo suficiente a primeira pessoa do narrador), pelo menos de um maior grau de realismo, e até mesmo de realismo social, a de Carlos Pinheiro preenche essa afectividade de uma maneira mais disseminada, não apenas por se tratar de um grupo orgânico mas também pelas emoções serem variadas, como se fossem experimentando várias paixões, da apatia à raiva, até descobrirem qual a mais adequada às suas pessoas (ou mesmo pessoa colectiva, reforçando sempre essa ideia de conjunto).
Como reza o texto na contracapa do livro, o conceito da sobrevida aponta para uma realidade que não diz respeito nem totalmente à morte nem à vida, mas a uma espécie de limbo, ou melhor, de átrio. Num limbo, afinal, desespera-se somente, ao passo que num átrio o que emerge é o tédio da espera. O problema nem sequer é a espera em si, que se poderia concentrar no fim, na saída, na resolução. É a concentração no momento presente, uma doentia meditação naquilo que é impossível percepcionar, que é a duração (do tempo). O espaço de espera não é apenas criado pela tensão da presença das duas partes, e de todas as oposições e complementaridades que se estabelecem entre elas, mas também em pormenores internos a essas mesmas partes. Estes autores não procuram criar soluções gráficas ou de composição que representem a stasis propriamente dita, todavia aproximam-se dela: nos modos de imitação da morte das personagens de Carlos Pinheiro, ou na cena em que elas procuram os seus reflexos na montra, já mascarados, e no caso de Sousa, nas várias cenas de paisagens urbanas sem texto, a partir de perspectivas de interiores, ou a(s) sesta(s) do pai, ou aquela cena em que um jovem homem parece simplesmente observar as pessoas a passar na rua, todas elas com propósitos seguros, tão contrastadas com a sua (apenas parente?) inércia e apatia.
É então a sombra da morte, ou algo que lhe ocupe a função, mesmo que por ora, que recai sobre a vida que se vai levando. Sobrevida parece ser uma representação, não precisa mas justa, de um sentimento de não saber muito bem que opções fazer, que gestos fazer para manter o equilíbrio (da vida individual, mas também social, político), adivinhando sempre, porém, que faça-se o que se fizer, não virá dali decisão, “resultado nenhum”, mas provavelmente apenas uma outra, nova, rasteira… Também parece ser um retrato muito justo de que tipo de revolta será possível contra um certo estado social pela parte de quem ainda tem as suas raízes num certo conforto burguês (afinal, o grupo janta nu casarão, fantasiam-se, a violência é material e pública, o filho volta à casa paterna numa acalmia idílica, quase indolente). Recorda-nos, e com ele terminamos, um poema de um dos contemporâneos “poetas sem qualidades”, José Miguel Silva:

Queixas de um utente
Pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.

Nota final: agradecimentos ao editor, pela oferta do livro, e aos autores, por algumas informações e as imagens.

5 de setembro de 2012

The Twelve. J. Michael Straczynski e Chris Weston (Marvel)

Há várias formas de morte na banda desenhada de super-heróis. A primeira é diegética, ou seja, é aquela que ocorre no interior das intrigas, das histórias, quando as próprias personagens, sobretudo as mais famosas e/ou centrais, morrem. Mas essa morte, mesmo que dramatizada ao máximo nessas histórias, é muitas vezes desarmada ora pelo regresso da própria personagem (pense-se em Jean Grey, esvaziando o impacto da famosa saga de Claremont e Byrne) ou por avatares da sua marca distintiva (pense-se no Capitão Marvel, da Marvel). Há depois mortes, ou aquilo que lhe há de mais próximo, programadas no interior de estratégias comerciais que pretendem relançar as vendas dos títulos (Super-homem em 1992, Batman logo no ano seguinte com Knightfall, e Batman R.I.P. em 2009, o Capitão América em 2007, o que não invalidará a qualidade atingida por alguns desses gestos, sobretudo com E. Brubaker e G. Morrison). Qual personagem maior não já passou por esse tipo de “morte”? E há aquela morte que advém do esquecimento e falta de uso (ou de ambas, implicadas) de certas personagens. Digamos mesmo uma morte “comercial”, quando as personagens, que são também marcas registadas, é preciso não esquecer, têm de ser utilizadas de tempos a tempos para não cair no domínio público. É o que ocorreu, de novo, com o Capitão Marvel da Marvel, pode-se dizer que é o mesmo que teve de acontecer entre a primeira equipa dos X-Men (de Roy Thomas e Don Heck) e a segunda (de Claremont e Cockrum), é o que teve de acontecer em Watchmen, criado sobre modelos da Charlton Comics e da companhia que a comprara, a DC. A história deste género é, intrinsecamente, feita ela mesma de recuperações de formas, de temas, de figuras, é feita de versões e revisitações, retcons e reboots, etc. E ainda de batalhas judiciais em torno destas marcas registadas (veja-se a batalha que se adivinha para 2013 por causa do Super-Homem). Em suma, a morte, na banda desenhada norte-americana de super-heróis, é apenas mais uma forma de gerir a continuidade de uma personagem, de uma história, de toda uma franchise. The Twelve, de Straczynski e Weston, é isto tudo ao mesmo tempo.
Apesar das interrupções da série (cujas razões são questiúnculas de bastidores, mas que não deixam de revelar os modos de funcionamento da indústria, o que tempera a ideia de criações livres dos seus contextos económicos), The Twelve foi desde sempre planeada como uma série de 12 comic books, mais os inevitáveis extras, com uma história seguida, em que se recuperariam 12 personagens obscuras da antiga Timely Comics, a companhia de banda desenhada que está na origem de uma das actuais grandes companhias norte-americanas comerciais, a Marvel. Essas doze personagens são, sem qualquer ordem, Rockman, The Blue Blade, The Phantom Reporter, The Laughing Mask, The Black Widow, Electro, The Witness, Mister E, Captain Wonder, Dynamic Man, Master Mind Excello e The Fiery Mask.. Todas elas tiveram direito a carreiras mais ou menos fugazes nas publicações dos anos 1940 (algumas surgiram mesmo em apenas uma história), sem grandes contornos de interesse no que diz respeito à sua execução literária ou artística, já que algumas são mesmo medíocres, mas cujas implicações sociais e históricas – o assumidíssimo racismo, a superioridade americana, o provincianismo político, o maniqueísmo exarcebado, a propugnação da lei do mais forte e de um sentido de justiça de milícia violenta, etc. – são mais do que patentes e pasto para estudos académicos, e que se tornam também matéria explorada nesta série. E, para além do mais, para compreender a razão – por vezes correcta - da tal “perseguição” a que foi a banda desenhada, esta banda desenhada, sujeita à mão dos pedagogos, psicólogos e moralistas dos anos 50.
Até por estar associado a Straczynski, The Twelve não pode deixar de ser lido em comparação com outra “série” de 2009, Red Circle. Tal como The Twelve, cada um dos títulos centra-se numa das personagens “ressuscitadas” - a saber, The Web, The Hangman, Inferno e The Shield - mas neste caso a estrutura é menos concentrada. Todas estas segundas personagens eram ou são marcas registadas da Archie Comics, uma companhia fundada nos fins de 1939 (conhecida sobretudo pela sua personagem Archie, e todo o seu universo de suburbana americana, vincado depois nas décadas de 1950 e 60 graças ao novo ímpeto visual trazido por Dan DeCarlo, e pela razão de explorar temas assegurados por outras frentes da cultura popular de então, acima de tudo veiculados pela televisão). A Red Circle era uma linha dessa companhia que produziu super-heróis, nas décadas de 1970 e 80, mas nada de grande monta ou interesse, igualmente. Esta segunda série de Straczynski seria uma forma da DC permitir integrar no seu “universo” (a tal rede ficcional que permite fazer cruzamentos entre as personagens-marcas registadas que possui) estas personagens, para as quais adquiriram direitos de exploração, tal como ocorre em First Wave de B. Azzarello et al. (DC Comics) ou o recentíssimo Mystery Men de D. Liss et al. (da Marvel). Todavia, é de notar como o projecto Red Circle acabaria num outro limbo editorial e judicial.
O que se nota em comum em todas estas séries é uma recuperação, um regresso ou uma complicação das origens do género dos super-heróis no próprio contexto contemporâneo dos super-heróis. Como dissemos atrás, este género é feito de revisitações permanentes, mas essa tendência tem-se acelerado ou tornado estrutural nos últimos 20 anos. Este tipo de “regresso” não é novo (recordam-se de The Rocketeer, do início da década de 1980?), mas é massivo e uma consolidada tendência do mercado mainstream neste momento – não é apenas uma forma simples de assegurar a manutenção dos direitos de propriedade e exploração destas personagens pelas companhias, como de rendibilizar os seus bens autorais e captura de públicos específicos. O lançamento dos projectos transversais The New 52 na DC, e agora da Marvel Now! na Marvel, são sinal dessas acções editoriais que tentam agregar, simplificar e relançar os títulos/universos. Mas podemos ver essas acções num contexto em que a associação a outras fases históricas é notório. Veja-se uma colecção como a Marvel Noir, ou a quantidade de spin-offs do Capitão América e companheiros durante a 2ª Guerra Mundial, paralelamente à sua “morte”. E compreenda-se o panorama mais alargado pela presença cada vez mais implantada de tantas personagens imediatamente anteriores, ou laterais, aos super-heróis, no mercado dos comic books:  The Spider, The Black Bat, The Phantom Detective, Secret Agent X, G8, Doc Savage, Airboy, The (Last) Phantom e Green Hornet (que até teve direito a um filme).
É assim que Mystery Men e The Twelve podem ser lidos. E reparem-se nos factores. As máscaras estão lá, as capacidades físicas, místicas ou fantásticas estão lá, e até os modos de transformação, desde a vingança ao amuleto. Todavia, o fundo temático e profissional é ainda herdeiro de outras paragens: o detective e o homem forte (recordemo-nos de que quer Super-homem quer Batman começaram as suas aventuras em revistas precisamente com essas referências, Action Comics e Detective Comics), mas também, certas classes profissionais quase encontram aqui representadas: o aviador, o médico, o arqueólogo, o prestidigitador de vaudeville. Estilística e narrativamente, porém, Mystery Men é bem mais pobre, para não dizer medíocre, do que The Twelve, ainda que se encaixando na perfeição do actual “housestyle” da Marvel, sobretudo pelo denominador comum das cores “oleosas e sombrias”, para repetir uma expressão de Christopher Dony que já havíamos citado noutra ocasião. Esta série ainda teve a reedição de dois comic books que coleccionavam histórias originais com todas as personagens, para que o leitor contemporâneo pudesse rever, ou mais provavelmente descobrir, essa mesma matéria (uma felicidade são as histórias de Rockman, desenhada pelo magnificente Basil Wolverton, outra as do Fiery Mask por Joe Simon), de forma análoga ao que se passou com Batman: The Black Casebook, quando da série de Morrison, Batman: R.I.P. & etc. São formas materiais e comerciais, então, de implicar toda essa tal recuperação e integração.
Uma das possíveis linhas de análise desta saga, portanto, é a de entender até que medida algumas das figuras “arqueológicas” dos super-heróis – os tais homens fortes e os “mystery men” dos pulp, os swashbuckler da literatura e do cinema, as criaturas da ficção científica – conseguem re-integrar-se nesse contexto e com eles se relacionar. Repetem-se mesmo toda uma série de fórmulas narrativas já tipificadas deste género, precisamente para entender como funcionaria uma sua versão (como discutimos a propósito de Batman, e como Straczynski explorou em Bullet Points).
A diferença entre toda a tipologia de personagens que acabaram por ser integradas no universo Marvel é mesmo matéria de discussão das histórias (sobretudo no spin-off Spearhead, escrito pelo próprio Weston). Temos os homens-mistério, que não têm propriamente poderes, mas utilizam qualquer tipo de uniforme distintivo e colorido, afectos aos pulps, os soldados (como os Howling Commandos de Fury) e os super-heróis, desde os mais famosos – porque “sobreviventes” ao longo da história da Atlas-Timely-Marvel – aos mais obscuros.
Seja como for, reitera-se assim aquela noção introduzida no início de que estes gestos significam tão-somente uma estratégia das companhias voltarem a lançar no mercado as suas marcas registadas. Pô-las a render. Começa-se com um autor relativamente interessante, capaz de lançar uma personagem numa qualquer premissa nova ou num ambiente contemporâneo cultivável, e espera-se que se possa espremer até ao fim. Por vezes, esse fim é rápido, independentemente das razões que levaram até ele: compromissos dos autores, falta de interesse dos investidores, vendas baixas, alteração de direcção comercial. Foi o que aconteceu ao newuniverse, de Ellis et. al, e é o que ocorre agora com Before Watchmen.
Straczynski, obviamente, tal como Bendis ou Brubaker em alguns dos seus trabalhos, é um autor que está preocupado em moldar o mais complexa e densamente possível as suas personagens, abrindo espaço a largos monólogos, momentos de intimidade quer solitário quer em companhia, e que revelam as partes mais dolorosas possíveis dessas mesmas pessoas: memórias, arrependimentos, enganos, paixões, preconceitos, desentendimentos, incompreensões e todas as dívidas e pecados que os tornem pesados perante as suas vidas (como o fez, a nosso ver perfeitamente, em Supreme Power). Pelo contrário, alguns outros autores (por exemplo, Mark Waid em Irredeemable e Incorruptible) procuram antes estabelecer a história através da acção, da intriga, o mais rápida e dinamicamente possível. Todos estes autores trabalham sobre um ponto de partida fundado por muitos autores na história dos super-heróis (“o que se passaria se eles existissem mesmo no nosso mundo?”), que pode ser encontrado até mesmo nas suas origens, mas que foi encontrando, a cada momento, novas inflexões mais ou menos interessantes (com Mark Gruenwald, ou a série New Universe da Marvel, por exemplo), mas com grande destaque para Alan Moore, cuja obra foi extremamente influente em termos de estilo e amplitude (sobretudo Miracleman, Swamp Thing e Watchmen). Todos estes títulos trabalham no seguimento desse novo território, mas há aqui uma curiosa inversão de expectativas. As séries de Waid e o Project Superpowers, da equipa da Dynamite, são projectos pessoais, nos quais haveria toda a liberdade para fazerem o que bem entendessem, sem preocupações de “manchar” as personagens-marca registadas e, por isso, de perigar o seu sucesso comercial; Straczynski, por seu lado, em ambos os projectos, tem uma missão que é re-introduzir e re-valorizar aquelas personagens para que possam ser novamente exploradas comercialmente. Porém, os primeiros acabam por construir sobre ideias feitas, pequenos nódulos de acção mais ou menos expectáveis, e sem grandes rasgos de criação ou fundação de novos temas a partir dos velhos. São projectos sofrivelmente comerciais, sem outras dimensões. O segundo, ainda que não procure reinventar a roda, cada vez mais polida, acaba por conseguir assegurar, pelo menos, uma concentração de vozes específicas e bem definidas nas suas personagens. A escolha de unir todos os acontecimentos a partir de uma só perspectiva (com excepções que tanto permitem conhecer melhor as personagens, como adensar os seus mistérios ou complicar as suas histórias pessoais), a do antigo herói The Phantom Reporter, Richard Jones, que de facto regressa à sua actividade de jornalista, e dar-lhe a ele a voz narradora que tudo enquadra, por vezes presente nos artigos que escreve para o The Daily Bugle (uma forma, portanto, de inscrever todas estas personagens no universo Marvel, já que esse é um famoso jornal das histórias do Homem-Aranha, Demolidor e outros), é uma dessas formas de coesão experimentadas pela ficção contemporânea popular.
Mas Straczynski vai mais além. Não apenas nos permite olhar para essas séries antigas de um novo modo, como as levanta como uma espécie de espelho do que se vive hoje em dia. Todos aqueles valores antigos transmitidos pela banda desenhada popular, mesmo que distorcidos pela nostalgia e uma leitura parcial (os valores de honra, patriotismo, correcção moral, respeito, etc.), surgem como sinal da sua ausência total na nossa sociedade. O autor não deixa de mostrar como esses tais valores estavam manchados também por uma outra série de formas de ver o mundo que foram banidas, pelo menos em termos legais e gerais, ainda que não totalmente: sentimentos anti-judeus, racismo, machismo, chauvinismo cultural, ideia de superioridade tecnológica e cultural, um paternalismo irritante, etc. Mas tenta compreender como é que essa visão mais “inocente” (no seu sentido irónico) funcionaria no mundo de hoje, mesmo o fantástico dos super-heróis da Marvel pós-Civil War. O contexto destas personagens, assim como as daquelas que se tornariam clássicas (o Capitão América, Fury, o Tocha Humana, Namor, enfim, os Invasores), é deixado aqui à luz do sol, e nem sempre abona em favor delas. As suas origens são mesmo colocadas em questão (à sombra do gesto de Moore, claro), como que revelando uma espécie de hierarquia mesmo no interior do Universo Marvel entre as personagens “normais” e estas “desenterradas”. Todo esse complexo serve, então, para demonstrar que não estamos necessariamente melhor, mergulhados num cinismo sem redenção. Se o desenlace final é algo ténue, ele cumpre ainda assim o programa de desmontagem e revisitação dessa outra era de personagens. O facto de isso ter lugar nos 9º e 10º números, permite que nos seguintes de crie um alongado dénouement que sublinha a distância entre os tais dois “mundos de referência”
A figuração sombria, bulbosa e austera de Chris Weston encontra-se aqui quase sempre co-adjuvada por um dos seus melhores arte-finalistas, Garry Leach (artista de mérito próprio). Poderíamos dizer que a estruturação das páginas é convencional, ou clássica nos seus desvios, mas uma segunda leitura revela que esses usos, ainda que normalizados, servem bem o propósito de cada passo, tal como as cores, usadas de modo ora dramático ora semioticamente realçado. Diga-se de passagem que a primeira metade da série é mais coesa que a segunda, em que algumas fases parecem recorrer a soluções simplistas e até de uma qualquer imitação (há um trecho no volume 7 que parece ter sido desenhado por John Ridgway, e não Weston, por exemplo).
Como não podia deixar de ser, The Twelve tem momentos em que integra a memória da banda desenhada dela mesma No número 5, dá-se um acontecimento que parece ser uma versão condensada (mas esvaziada do impacto psicológico e histórico) de The Master Race, uma famosa banda desenhada curta de A. Feldstein e B. Kriegstein. Claro que, estando no Universo Marvel e falando-se de personagens que atravessam, com suspensão criogénica ou não, dos anos 1940 até à actualidade, há oportunidades para revisitar ou mencionar muitos dos famosos episódios da Casa da Ideias. Contudo, e repetindo uma ideia anterior, parte do prazer da leitura destes títulos está mais na nossa própria acção de cerzir através dos pormenores a história presente a todas as anteriores do que à circunferência somente do texto em si…

3 de setembro de 2012

Homunculus. Hideo Yamamoto (várias edições)

Por alturas da redacção deste texto, lemos apenas doze dos quinze volumes desta série, uma vez que as suas várias edições em várias línguas, ou nos são algo inacessíveis ou ainda se encontram em curso (como o caso da versão em língua portuguesa, pela Panini brasileira). Essa própria acessibilidade é também sinal do pouco sistemático e ainda por alinhar modo de circulação da mangá no interior dos vários mercados de banda desenhada internacionais, demarcando-a ainda como um território especial (mas que deve ser considerado também em cada contexto particular, desde a deficitária presença de obras europeias no mercado norte-americano ou no rico e diversificado panorama do mercado espanhol), por vezes entendido com desconfiança, ou sofrendo um tratamento genérico que não é atento nem à sua diversidade interna nem às suas especificidades, que de facto podem ser genéricas (até certo ponto, tal como qualquer outro pólo de produção amalgamado). Se podemos olhar para o mercado francês, alemão e norte-americano como com uma grande oferta, nem sempre ela coincide entre países, e nalguns casos, Espanha toma a dianteira (como o caso de Billy Bat, de Urasawa, de que falaremos em breve). Logo, se estas considerações que agora se tecem têm em conta a leitura desses volumes apenas, no que diz respeito à intriga em si poderá haver ainda desenvolvimentos que possam alterar algumas das suas conclusões.
A série mais conhecida, anterior, de Yamamoto, foi Ichi the Killer, cuja circulação se tornou particularmente marcante pela sua adaptação cinematográfica na versão magnífica (ou horrenda, doentia?) de Takashi Miike. Apesar do grau altíssimo de violência, gore e loucura dessa outra série, o factor decisivo do seu sucesso foi o tratamento profundo da dolorosa relação psicológica do protagonista, Ichi, consigo mesmo: atormentado desde a sua infância, abismado pela sexualidade, legado no conflito entre dois clãs de yakuza, essa tormenta parece encontrar uma solução, mesmo que momentânea, no confronto directo com outro assassino demencial, Kakihara (desempenhado no filme pelo sublime Tadanobu Asano, que também protagonizou um filme baseado na obra de Tsuge). São esses dois aspectos que são herdados por esta nova série: a preocupação com a exploração das psiques das personagens e a eleição de um espaço de confronto, relação e crescimento entre duas personagens. Neste caso o “par” é constituído por Susumu Nakoshi, que nos parece ser um sem-abrigo, ao início, e o jovem estudante de medicina Manabu Ito, que pretende explorar os limites do ser humano, quer física quer psicologicamente, recorrendo a uma técnica de trepanação. Se esta antiga operação remonta aos tempos medievais para a extracção da “pedra da loucura”, o tratamento ficcional de Yamamoto associa-a a várias correntes de pseudo-ciência (e os livros são todos acompanhados com notas a pedir que os leitores não tentem fazê-lo, e não é tão ridículo assim anotar isso…), uma vez que o objectivo do estudo de Ito é despertar o sexto sentido dos humanos. O que ocorre a Nakoshi é que, quando tapa o olho direito, vê as pessoas como monstros, ora totalmente transformadas, ora com pequenos desvios físicos. Essas formas fantásticas são os “homúnculos” do título, isto é, uma deformação que parte da propriopercepção das personagens. No entanto, na excelente tradição da banda desenhada japonesa, a intriga será bem mais complicada do que isso…
As pessoas não são vistas apenas numa forma, mas em formas dinâmicas ou passíveis de sofrerem alterações, que poderão ser profundas para elas mesmas – aliás, seguem o esquema psicanalítico da perlaboração, dando a entender que se esta capacidade de ver e responder directamente a essas formas existisse na realidade, as “curas” seriam relativamente simples e céleres (isto é discutido no livro). Nakoshi vai literalmente “apalpando terreno” para descobrir os contornos e limites deste novo muno. Mas é a economia destas descobertas paulatinas ao longo dos volumes que torna a sua leitura em série apaixonante, como ocorre com outros autores recentes (Urasawa em primeira linha, mas também a primeira parte de Death Note, como havíamos já notado).
O jovem médico, quando revela no terceiro volume o significado das estranhas visões de Nakoshi através da noção e teoria do homúnculo (ancorada uma parte em ciência real, para tornar plausível a parte da fantasia), dá o mote principal dessas mesmas visões fantásticas, que são connosco partilhadas. É que as formas fantásticas não são tanto o “verdadeiro eu” das pessoas, mas sim uma equação que combina a maneira como elas se vêem a si próprios e os filtros do visionário, apontando a uma inter-relação, uma interpenetração das pessoas. A memória dos eventos que desencadearam essa forma é portanto vista como uma “prática social material, mais do que uma faculdade mental, e a qual é inerente a processos inter-mentais, mais do que intra-mentais”, para citar uma descrição afecta à investigadora Constantina Papoulias. Uma feixe que mistura memória, afecto, discursividade, representação e interrelacionamento está envolvido, portanto, nesta série. A qual se tornará muito significativa no particular contexto histórico, geográfico e cultural japonês, que terá seguramente diferenças das do mundo ocidental, ou do nosso português em particular, mas que não teremos nem os conhecimentos nem os instrumentos para analisar. “As distorções dos homúnculos são minhas distorções”, diz Nakoshi (vol. 7). Uma grande parte do interesse desta trama está na tensão que existe nas descobertas que ambos fazem juntos (ainda que nem tudo seja partilhado honestamente), acrescido do “mistério” sobre a identidade de Nakoshi, a qual vamos descobrindo também aos poucos. É evidente que essa economia só é permitida pela própria condição de produção da banda desenhada japonesa, que permite que se explorem com mais parcimónia e vagar as micro-acções e reacções morais das personagens, ao invés de se ver obrigado a saltar de acção em acção, como ocorre nos projectos do mainstream ocidental. Exemplo maior nesta série, talvez, será o volume 5, totalmente dedicado ao diálogo e relação que se estabelece entre Nakoshi e uma jovem adolescente.
Isso permite que haja grandes “arcos” interiores à trama principal, ou “actos”, melhor dizendo, que vão criando inflexões ou momentos especiais, como quando Nakoshi cose o olho, para “mergulhar” no mundo dos homúnculos, ou dos seus sonhos, nas palavras de Ito, que naquele momento parece querer impor a ideia de que são meras ilusões criadas graças à sua própria capacidade de persuasão hipnótica sobre Nakoshi. Mas em contrapartida, essa economia leva também a que haja a procura de soluções pela construção de páginas visualmente simples de executar, eliminando cenários, simplificando a figuração, optando por enquadramentos próximos o mais possível dos objectos, empregando tramas industriais ou até materiais pré-fabricados (como cenários urbanos). Um exemplo máximo dessa técnica de atalho é esta página [no presente parágrafo], em que o diálogo na penumbra de um quarto leva a que tudo de reduza a perfis ou apenas a olhos sobre fundos negros. Não obstante, isso faz igualmente aumentar a pressão na leitura dos textos e ao avanço rápido, até mesmo físico, das páginas (a que ajuda o formato tankobon), fazendo com que o corpo do leitor mime – como pode -  a tensão presente no diálogo.
A discussão no volume oito com Ito, antes da segunda intervenção cirúrgica, por exemplo, cria sequências magistrais desse movimento para trás e para diante entre as percepções “normais” e as “visões”, levando a um complexo, intenso e hipnótico ballet. São momentos como este que trazem alguma disrupção a certas ferramentas de análise da banda desenhada que se pretendem universais. Se as transições entre vinhetas, de acordo com as lições de McCloud, são de momento-a-momento ou de acção-a-acção, isso não será suficiente para descrever as travessias de significado presentes nessa cena. Isso tem implicações também a nível narratológico, que se vai complicando. Se o facto de ser-nos tornado possível observar também o que Nakoshi vê, mas somente nesses momentos, e sempre na “proximidade” dessa personagem, a narrativa leva-nos a imaginar um narrador (ou meganarrador, englobando o visual) que se mescla com a percepção do protagonista. Mas no volume 10 é-nos dada a possibilidade de acompanhar as memórias embaralhadas de Ito e do seu pai, para nos ser revelado o segredo “do peixinho da infância” (esta referência, asseguramos, é claríssima na sua leitura), aumentando o grau de omnisciência. Yamamoto tira partido, portanto, dos vários regimes possíveis, conforme isso o ajuda a tornar a intriga mais impactante a nível não só da informação, digamos em termos policiais, como a nível emocional. Se há uma complexa inter-relação emocional entre as duas personagens, uma espécie de ping-pong constituído por curiosidades e desconfianças mútuas, um instável jogo entre o que cada um revela ao outro de si mesmo, esse brusco movimento quebra-lhes a distância, fazendo mostrar as possibilidades (mas até ao fecho da série pode haver mudanças dramáticas) da interdependência. A qual, diga-se de passagem, é a estrutura basilar da narrativa, como havíamos já apontado. Em termos de agência, não se pode considerar Nakoshi ou Ito, individualmente, como os facilitadores das acções, ambos precisam um do outro.
Nalguns momentos, as visões – sendo sempre necessário recordarmo-nos que as transformações fantásticas são fruto apenas da perspectiva de Nakoshi, não pertencendo à “realidade” da diegese, e por isso mesmo constituindo matéria do fantástico tal como descrito por Todorov – acabam por ganhar uma proeminência assustadora, recordando o terror biológico de um Junji Ito ou de um Shintaro Kago (mas sem cair na abjecção e no asco),ou de Charles Burns ou Al Columbia (sem o desespero).
O corpo é um nódulo capital nesta obra. Não apenas porque a visão permite a Nakoshi a observação das tais “formas corpóreas”, mas porque ele se abandona a toda a maquinaria sensória – são várias as cenas em que o protagonista cheira, saboreia, escuta, tacteia, o mais atentamente possível superfícies de objectos, pessoas e lugares, e as vinhetas mostram o pormenores dessa acções penetrando ao nível microscópico e interior do corpo, até ao nível mesmo das sinapses, muitas vezes servindo de umbrais proustianos – revelando dessa maneira aquilo que o investigador britânico Ben Highmore chamou de “a mais estranha materialidade de todas”, a do corpo. E o corpo não surge apenas aqui como forma exterior, invólucro. Ele é discutido mesmo no seu peso carnal, na sua superfície enquanto factor de inscrição e aceitação social (pela beleza, os sinais de sucesso, etc.), mas também naquela dimensão de máquina sudorífera, ejaculante, sofredora, plasmável, nexo de dentros e foras. De facto, as várias explorações entre o interior e o exterior do corpo – a cena espelhada em que Nakoshi ejacula na palma da mão e ingere o esperma e a jovem rapariga bebe o sangue que faz sangrar nos calcanhares, a ingestão do peixinho por Ito – levam a que a ideia psicanalítica da incorporação se torne central. Na verdade, um quadro de conceitos psicanalíticos, tal como operativo na análise literária, revelar-se-ia seguramente produtivo nesta obra (mas possivelmente também, pela clareza desses movimentos, dogmático, ou de mera “aplicação””). Aliado à vivência de Nakoshi num limbo social, as práticas infantis, e depois impostas, de travestismo de Ito, a mitomania e constante desvio à verdade toda pelos dois, são igualmente sinais dessa complicação, explorada repetidamente, sempre com inflexões diversas, ao longo dos vários tankobon.
Uma das grandes linhas de força interessantes deste livro é que, apesar da sua dimensão fantástica, é ao mesmo tempo um olhar atento à sociedade japonesa. Aliás, a talvez até esse olhar se torne mais significativo precisamente por não se reduzir a uma abordagem realista, mas um gesto de contornos de pesquisa psicológica através do fantástico que vemos raramente empregue (como por exemplo em Zil Zelub, de Buzelli). A mera presença de sem-abrigos, dos vários tipos de prostituição ou actividades próximas da prostituição entre adolescentes, das cirurgias plásticas e a importância que isso revela naquela sociedade (e até associando-se aos modelos figurativos clássicos da mangá, de certa forma, mostrando aí, e noutros momentos breves, uma capacidade de metalinguística), as questões do desprezo que existe entre as classes sociais, são alguns dos elementos que demonstram a atenção social de Yamamoto.
Pela dimensão fantástica, pela ciência-limite, pela densidade psicológica, pelo jogo tenso entre as duas personagens, pela intriga, pela espelho semi-distorcido que pode dizer algo de nós, Homunculus é uma obra capital da cena da banda desenhada japonesa contemporânea.
Nota final: falámos de edições várias, uma vez que lemos sobretudo parte da edição brasileira (Panini Comics) e francesa (Tonkam), mas ainda alguns dos volumes numa edição pirata em scanlation – o que só em si merece toda uma atenção especial enquanto fenómeno entre a demanda comercial e o trabalho dos fãs - da edição original (Big Spirit Comics) em língua inglesa. Agradecimentos a José Marmeleira, pelo empréstimo do primeiro volume.