Este pequeno volume reúne uma centena dos cartoons que António Jorge Gonçalves criou para publicação no suplemento O Inimigo Público, do diário Público, desde o seu surgimento, em 2003, até ao ano anterior (mas tiveram igualmente outra circulação, inclusive no site do autor, e em imprensa estrangeira). Estes cartoons assumem, de uma forma cabal, aquele descritivo que deve ter por nome cartoon ou ilustração editorial.
Muito provavelmente o nosso uso do adjectivo “editorial” é mais restrito que o habitual, e informado sobretudo por um seu uso em língua inglesa. No entanto, estamos em crer que em determinadas abordagens, procurar-se uma maior exactidão terminológica e, consequentemente, conceptual, de uso, de implicações ontológicas, analíticas, etc., é imperativo. Portanto, ao utilizarmos o termo “editorial”, não nos estamos a referir somente a ilustrações que tenham sido criadas num contexto de um órgão de comunicação social - jornal, revista, ou outros meios -, ou melhor dizendo, queremos referir-nos a algumas das ilustrações publicadas nesses órgãos, que se diferenciam pelos contornos do seu uso, uso esse eminentemente - ainda que num sentido lato - político.
Ora, a nosso ver, esta faceta de Gonçalves preenche de uma forma aguda essa dimensão editorial, no sentido em que é a própria complexa matéria – temática, figurativa, estilística, actancial, de personificação e referência – dos seus desenhos que revelam o seu posicionamento. Alan Male, numa das suas obras sintéticas sobre ilustração, identifica cinco contextos do uso da ilustração (aceitemos, apenas a título da argumentação presente, a possibilidade da redução domesticada de “usos” ou “funções” de disciplinas artísticas), a saber Informação, Comentário, Ficção narrativa, Persuasão e Identidade. Interessa-nos particularmente os dois primeiros contextos, e o modo como se diferenciam entre si. Ambos os contextos apontam a uma relação quase directa de representação do mundo histórico, real, em que vivemos no momento. Mas se a primeira quer dar a entender aquelas criações imagéticas que conseguem, de formas variadas, estruturar uma informação objectiva (no sentido de objectual, de ser passível em ser interpretada enquanto documentação, instrução ou referência), a segunda já pretende dar conta de um pequeno grau de afastamento desses mesmos objectos e deixar entrar a personalidade e o juízo de valor do seu autor. É nesse sentido que o primeiro contexto incluirá toda aquela ilustração que fez um primeiro momento na imprensa, antes do surgimento da fotografia, ou toda aquela que ainda hoje é empregue na transmissão de dados, desde as mais estilizadas e diagramáticas infografias à mais precisa ilustração científica (usualmente sintética) ou técnica (usualmente analítica), ou mesmo aquela que, mesmo expressiva, artística, quer ser directa na referencialidade. E, portanto, o segundo contexto é o berço daquelas imagens que revelam apenas alguns aspectos, salientam características, sublinham perspectivas, assinalam posicionamentos críticos, tornando os próprios ilustradores em comentadores ou críticos. Esse gesto abarca a caricatura (nem toda, é certo), alguns cartoons e ilustrações (lá, está, “editoriais”), mas até mesmo tiras de banda desenhada (talvez o caso mais significativo contemporâneo em Portugal seja o de Luís Afonso).
As imagens de AJG não pretendem “ilustrar” uma situação, nem dar a ver um boneco de uma situação, e muito menos fazer humor pedestre em torno das questões abordadas – o que, a nosso ver, não é mais do que o suplemento semanal consegue atingir. Tal como outros autores, este autor prima os desenhos para se tornarem gatilhos de uma ideia breve, mas que por breve mais detonante se torna. Pertencem a uma família que se estende do rei-pêra de Daumier, pela obra de Thomas Nast, e a “Porca da Política” de Bordalo, às muitas imagens de revistas como a Simplicissimus, L’Assiete au Beurre, The Masses, e presenças n’Os Ridículos, na Combate e, ainda que com um instrumentário diferente, na Buraco.
Existem outros autores que colocam a arte das suas ilustrações ao serviço da desmontagem da hipocrisia e más gestões dos destinos dos cidadãos. António Antunes, numa posição de decano difícil de negar (ou estúpido de se o pensar sequer), avança caricaturas que revelam ideias poderosas e que desmontam os discursos das suas “vítimas” (penso sobretudo no Papa João Paulo II com palas de burro). Mas não me parece que Gonçalves faça caricatura. Essa disciplina é uma sucessão de particularidades encaixadas. Um retrato particular das particularidades de uma pessoa particular. António Jorge Gonçalves não utiliza esse instrumento de uma forma estrita, uma vez que os instrumentos gráficos empregues por este autor não se pautam por um cumprimento de virtuosismos fáceis (em que tantas vezes a caricatura descarrila, e só alguns Antónios e Andrés Carrilhos a elevam a modos de pensar), mas de transformação para exploração conceptual. Logo, e neste caso específico, o autor utiliza alguns dos princípios da caricatura com o seu intuito de identificação.
Depois temos aqueles autores que usam o cartoon e a ilustração ou a banda desenhada, ou uma mescla disso tudo, para recriar situações e lançar os seus protagonistas em reformulações dos eventos do momento. Cid é um gigante desse capítulo. E também há aqueles que, misturando géneros e níveis de humor, e até batalhas de classe e gosto, abrem caminhos mais brutos, mas nem por isso menos contundentes, como Manuel Vieira ou Vilhena. Todavia, tampouco nos parece que Gonçalves queira fazer humor. É como se estas imagens tivessem uma mais-valia se nos arrancarem um riso, mas não fosse esse o seu fito.
Aliás, António Jorge Gonçalves é mesmo "bruto" nalguns dos seus registos. Este livro não reúne todas as imagens criadas (visite-se o site para isso, para contextos, outros trabalhos e surpresas do acaso), e na verdade estão ausentes algumas que consideraríamos as mais fortes e ainda hoje necessárias na circulação. Como a que havia criado a propósito do debate sobre as uniões de facto, mostrando o Presidente da República Cavaco Silva em duas relações bem distintas (haveria espaço para esse desenho de humor na exposição do Museu da Presidência?). Ou outra, bastante complexa, de uma limusine Mercedes com Sarkozy no lugar de motorista subalterno a uma Merkel toda-poderosa, mas inerte, uma vez que as rodas, Euros, haviam sido roubadas e substituídas por urnas de votos. Como se a democracia fosse a verdadeira razão da inércia da economia pseudo-federalista. E entretanto, a personagem principal, inidentificável (quer dizer, sendo essa falta de caracterização a sua principal característica), se afastava da cena com os Euros debaixo do braço… Mas as ideias sobre o conflito israelo-palestiniano, as eleições e revoluções “democráticas” no espaço árabe, os contrastes entre as atitudes dos portugueses e de outros povos face a uma crise económico-financeira e política internacional, a cegueira provocada pelo culto ao futebol, a miséria de espírito de muitos dos políticos (George W. Bush, Merkel e Sarkozy, Berlusconi, Eduardo dos Santos, Durão Barroso, mas igualmente Cavaco Silva, Sócrates, Passos Coelho) são igualmente peças fundamentais para o retrato de um país e de uma época. Que papel terão daqui a dez, vinte ou mais anos? Outros aspectos mais diários, comezinhos, do tuning ao facebook, não deixam de ter o seu papel nestas crónicas, e merecerão uma atenção particular para se pensar se atingem ou não os seus fins, e com que vitórias em termos de imagens.
Munido de instrumentos os mais variados possíveis, e de uma cultura visual alargada, Gonçalves opta por uma figuração muito descontraída, uma captura das ideias quase num tom de rabisco impensado, de apontamento ao telefone. Como se houvesse uma urgência em captar a ideia pelos mais mínimos traços. Mas ao nos apercebemos do trabalho de composição de uma caricatura a Sarkozy, ou dos contrastes de linhas e direcções de um cartoon sobre nacionalismos, ou a particular expressão de Durão Barroso em situações diversas, o modo icónico como se contrastam os elogios às revoluções de certos países e as negas à possibilidade da imigração, e o reaproveitamento do tal património dos ícones da ilustração nacional para reimaginar as relações entre instituições (Povo/FMI, a partir de Abel Manta), entender-se-á que não há nada de repentino ou impensado nessa sua prestação. Mais, a opção do autor em não usar caminhos mais usuais na figuração e pelo virtuosismo, acentuam a ambiguidade destas imagens, reforçando dessa forma o seu impacto emotivo e de ambiente, de incómodo, e impedindo-as de se tornarem “cromos” ou objectos capitalizáveis fora do seu âmbito comunicativo. E essa é uma força.
Não penso ser um desserviço querer destrinçar estas questões, usos e limiares, ao colocar certos autores fora desse círculo criativo, mesmo contra as primeiras impressões e a forma como os discursos em torno deles são tecidos. Nada disto lhes retira o poder criativo, sugestivo, artístico de que são capazes. Ao querer não descrever (talvez fosse desnecessário explicar que não é o mesmo que “não querer descrever”) Nuno Saraiva ou João Fazenda, por hipótese, como autores cujas imagens são eminentemente políticas ou editoriais no seu sentido mais estrito, nada disso lhes enfraquece o poder autoral que se lhes deve reconhecer. Trata-se tão-somente de querer obviar à tal exactidão analítica a que nos referimos acima. E António Jorge Gonçalves, a nosso ver, preenche de uma forma contundente esta possibilidade da ilustração poder servir de arma de arremesso, ou de acto de provocação.
O título desta colecção é irónico, claro está, mas ao mesmo tempo, como muitas das imagens, desmonta desde logo uma ilusão que ainda persiste: a de que temos de navegar pelas águas auto-reguladas da economia de mercado. Como alguém escreveu, o capitalismo tem de ser entendido como um “neo-colonialismo cognitivo”, que não apenas lança a sua rede ideológica sobre tudo, como sobretudo cria a ilusão de que não existem possibilidades fora dessa rede, e que qualquer outra ideia é ela mesmo “ideológica”, negando dessa maneira a sua própria raiz ideológica e confundindo essas ideias com “ilusões imprestáveis”. Vejam-se a quantidade de imagens que o autor tece em torno de percepções, máscaras, enganos, contrastes.
O propósito do capitalismo é, em última instância, a da sua autodestruição. O niilismo do programa das Luzes, do racionalismo, do positivismo, da banalidade e progresso inexorável e cego do progresso leva a que no extremo esteja a aniquilação. O capitalismo financeiro exerce um poder terrível e esmagador sobre o capital produtivo, e até mesmo, ou pelo menos cada vez mais isso é claro como a água, os Estados e as suas instituições (a começar pelo processo da democracia representativa). Ora, são muitas as imagens do autor que dizem respeito à forma como o poder económico mundial funciona, não apenas em relação a negócios particulares (supermercados, petróleo, Venezuelas, CPLPs, especulação financeira) como no que diz respeito a instituições, povos, democracias, o papel do cidadão, que se perde antes em exercícios masturbatórios de vária espécie do que na procura de informação, formação e, consequentemente, de uma acção verdadeiramente livre.
Boaventura de Sousa Santos, em Portugal. Ensaio contra a auto flagelação (Almedina: 2011), escreve que “Democracia é toda a transformação de relações de poder desigual em relações da autoridade partilhada” (108). Daí que a democracia participativa, para além da (já gasta?, mas não será perigoso dizê-lo dessa forma?) democracia representativa, seja uma possível ferramenta de resistência. Não acreditamos que estas imagens de António Jorge Gonçalves possam constituir uma verdadeira ou efectiva “transformação das relações de poder”. Afinal, elas surgem num veículo que não partilha do mesmo tipo de tom nem do bom equilíbrio do autor entre virulência e ideia. Ainda assim, estas pequenas imagens de resistência conseguem revelar, ou instituem, entre autor, cartoon e leitor/espectador, uma “autoridade” e, acrescentaríamos nós, uma responsabilidade, partilhadas.
Nota: agradecimentos ao autor e à editora, pela oferta do livro (imagens da net, filme do próprio autor)