O subtítulo deste tomo é claro e explicativo: “O
Século XX Malvisto pelo Desenho de Humor”. Projecto assinado por uma série de
personalidades de grande importância na revalorização, recuperação da memória,
circulação e até mesmo transformação crítica de toda uma serie de artes
gráficas que incluem a ilustração, o desenho de imprensa e a banda desenhada no
seu necessariamente novo papel num novo contexto social, este livro é um objecto
obrigatório numa biblioteca mínima de referência. Apesar de haver um colectivo
por detrás do projecto, estamos seguros não sermos ofensivos para com os
intervenientes se destacarmos os nomes de João Paulo Cotrim, comissário da
exposição a que este livro-catálogo se refere, e de Jorge Silva, designer do
objecto, mas igualmente cúmplice no gesto museográfico, arqueológico, expositivo, editorial e
do pensamento, em acção, que ele implica.
A exposição partiu de um núcleo de trabalhos
pertencentes a uma colecção particular e identificada, a saber, a da família
Ricon, que se encontra em depósito no Museu da Presidência da República, o qual
recebeu este projecto, com muitas adições e participações de colecções
institucionais, pessoais e até mesmo dos artistas vivos que nela se encontram.
Mas independentemente do processo se desenvolver num qualquer espartilho
circunstancial aos trabalhos existentes, ou aos instrumentos possíveis de
criar, o que importa é entender qual o fito da estrutura que emerge deste
livro. Como dissemos atrás, este volume parece ter um uso muito claro, que é o
de objecto de referência. A parte de leão das imagens dos artistas
seleccionados encontram-se em breves secções cronológicas, separadas por
décadas e introduzidas por duas páginas, em spread,
com breves datas e dados que reúnem o sumo histórico desses mesmos anos em
termos de acontecimentos à escala nacional ou mundial, com particular foco nos
campos da política e da cultura, ou de outras esferas que influam sobre essas
áreas. Isso permite desde logo uma consulta rápida, simples, para confirmar ou
providenciar uma qualquer pista que depois tem de ser perseguida com mais
atenção. Não é este livro o local ideal para aprendermos um novo nome, apesar
das pequenas biografias no fim do volume. Não é aqui que nos poderemos inteirar
da força de uma qualquer publicação ilustrada, apesar de se encontrar aqui uma
plataforma para conhecer um panorama alargado e variado de publicações dessa
natureza.
Poder-se-ia apontar o facto de que as imagens surgem
de uma forma reduzida, quase na dimensão de selos, ou que algumas das imagens
foram já alvo de trabalhos anteriores – mais ou menos gravitando o mesmo
universo de referências dos produtores, de Cotrim a Jorge Silva, passando mesmo
por António Antunes, e às exposições, publicações e acções que os mesmos
protagonizam. Por outra palavras, que este volume servirá menos como um
catálogo de nova presença destas obras no nosso universo de referências do que
como um volume de verificação, súmula e síntese desta longa e variegada
história. Alias, arriscar-nos-íamos a dizer que ele deverá ser uma espécie de
nexo entre essa outra obra expandida, de que haverá seguramente capítulos
futuros (pensamos sobretudo nos livros assinados por Cotrim na Assírio &
Alvim, por exemplo, ou as transformações do AlmanaqueSilva em objectos livrescos e catálogos). Todavia, é esse mesmo propósito
que é preenchido cabalmente. A prosa de
Cotrim, que acreditamos ser aquela que pontua os textos de apresentação, e não
apenas o texto introdutório, encontra-se na sua capacidade de síntese e poética
mais aguda de sempre. Aliás, podemos encontrar neste verdadeiro compêndio, por
assim dizer, uma espécie de súmula do trabalho de investigação, levantamento,
divulgação e esclarecimento que ele tem cumprido ao longo dos seus vários
volumes dedicados as nomes centrais da história e da contemporaneidade da
ilustração nacional, de Bordalo e Stuart a Fazenda e Carrilho.
O centro nevrálgico do livro é constituído por uma
colecção assombrosa de desenhos de imprensa, caricaturas, cartoons, desenhos editoriais,
retratos, curtas bandas desenhadas, de tiras ou de página inteira, ciclos de
imagens ora temáticos ora narrativos, pinturas, esculturas, instalações, stills de filmes de animação, de cinema,
(querendo, ainda que não de forma sistemática, identificar territórios mais ou
menos distintos entre cada um destes termos). Muitos objectos são fruto do
trabalho solitário dos artistas, mas há casos de colaboração. Algumas imagens
vieram a tornar-se icónicas e parte de um património colectivo, e que devem fazer
parte da cultura geral de um português (o Pessoa de Almada, o Salazar à janela
de Abel Manta, o “novo Zé Povinho” de António), outros são pérolas mais ou
menos esquecidas mas que nesta ou anteriores recuperações deveriam ocupar o seu
lugar respectivo (um mapa da Europa de Leal da Câmara, de que faláramos quandoda sua exposição, um pedinte geograficamente dividido de José de Lemos, o
escudo quebrado de Cid, que bem poderia ser substituído hoje pelo Euro, um Gil
monstruoso de Nuno Saraiva). E mesmo os casos de trabalhos que parecem ser de
segunda linha, ou relativamente secundários face a um património mais vetusto,
e haver mesmo exemplos de um humor ora brejeiro ora parolo, ora impenetrável (a
ausência das supostas legendas e falas que iluminariam a situação cómica
ajudariam, decerto, caso repetido da rubrica “O riso amarelo”, de onde partem,
pensamos, as imagens de José de Lemos), tornam a potência arqueológica do livro
particularmente sentida.
A inclusão de objectos muito distintos do que se
consideraria mesmo uma família alargada de “ilustração de imprensa” ou “desenho
de humor”, como o cinema ou as obras de arte no seu sentido mais restrito,
encontram-se aqui não numa intenção de refundir nomenclaturas nem de elevar a
nobreza do gesto expositivo e editorial, mas sim de contextualizar mas também
de recomplexificar a relação desses mesmos desenhos com o mundo mais largo da
criação e representação do mundo, assim como para dar a conhecer dimensões
interdisciplinares ou multidisciplinares de alguns nomes, sejam os de Almada
Negreiros ou de Sam, de Amadeo de Souza-Cardoso ou António.
Para além deles, o catálogo tem um suplemento de cerca
de 100 páginas composto por dossiers temáticos, se assim os podemos chamar.
Estes vários textos, que se apresentam no núcleo final, intitulado “sínteses”,
são de uma qualidade muito díspar entre si, alguns dos quais densos em
informação (sobre jornalismo, por José Miguel Sardica), outros pautados por
experiências pessoais que informam a história (Paulo Costa Domingos sobre a
censura), outros um pouco mais impressionistas (uma breve história do design
por Mário Moura), mas todos eles compondo, no seu conjunto, uma exímia
demonstração das variadas qualidades que pautaram o século XX português, nas
suas especificidades mais renhidas, para bem ou para mal. Essa diversidade de
tratamento é salutar, na medida em que a própria selecção dos sintetizadores é
pensada nos seus contornos mais exactos, e multiplica assim as visões,
instrumentos, sensibilidades, estratégias de navegação, mas nunca colocando em
perigo ou em xeque a inteligência e completude que se lhe deve reconhecer.
No fundo, é talvez sob o signo da diversidade a toda a
linha que este livro se estrutura. Sendo, como é indicado, um projecto montado
sobretudo em torno de uma colecção particular, haverá ausências, é certo, sendo
discutível se são “gritantes” ou “circunstanciais”. Mas é um balanço
significativo e digno deste capítulo da história da arte portuguesa, e que
deveria fazer pensar todos e quaisquer projectos que se arrisquem a querer
surgir como representantivos da mesma área.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do volume
(imagens colhidas na internet).
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