Este pequeno volume reúne uma centena dos cartoons que António Jorge Gonçalves criou para publicação no suplemento O Inimigo Público, do diário Público, desde o seu surgimento, em 2003, até ao ano anterior (mas tiveram igualmente outra circulação, inclusive no site do autor, e em imprensa estrangeira). Estes cartoons assumem, de uma forma cabal, aquele descritivo que deve ter por nome cartoon ou ilustração editorial.
Muito provavelmente o nosso uso do adjectivo “editorial” é mais restrito que o habitual, e informado sobretudo por um seu uso em língua inglesa. No entanto, estamos em crer que em determinadas abordagens, procurar-se uma maior exactidão terminológica e, consequentemente, conceptual, de uso, de implicações ontológicas, analíticas, etc., é imperativo. Portanto, ao utilizarmos o termo “editorial”, não nos estamos a referir somente a ilustrações que tenham sido criadas num contexto de um órgão de comunicação social - jornal, revista, ou outros meios -, ou melhor dizendo, queremos referir-nos a algumas das ilustrações publicadas nesses órgãos, que se diferenciam pelos contornos do seu uso, uso esse eminentemente - ainda que num sentido lato - político.

As imagens de AJG não pretendem “ilustrar” uma situação, nem dar a ver um boneco de uma situação, e muito menos fazer humor pedestre em torno das questões abordadas – o que, a nosso ver, não é mais do que o suplemento semanal consegue atingir. Tal como outros autores, este autor prima os desenhos para se tornarem gatilhos de uma ideia breve, mas que por breve mais detonante se torna. Pertencem a uma família que se estende do rei-pêra de Daumier, pela obra de Thomas Nast, e a “Porca da Política” de Bordalo, às muitas imagens de revistas como a Simplicissimus, L’Assiete au Beurre, The Masses, e presenças n’Os Ridículos, na Combate e, ainda que com um instrumentário diferente, na Buraco.
Existem outros autores que colocam a arte das suas ilustrações ao serviço da desmontagem da hipocrisia e más gestões dos destinos dos cidadãos. António Antunes, numa posição de decano difícil de negar (ou estúpido de se o pensar sequer), avança caricaturas que revelam ideias poderosas e que desmontam os discursos das suas “vítimas” (penso sobretudo no Papa João Paulo II com palas de burro). Mas não me parece que Gonçalves faça caricatura. Essa disciplina é uma sucessão de particularidades encaixadas. Um retrato particular das particularidades de uma pessoa particular. António Jorge Gonçalves não utiliza esse instrumento de uma forma estrita, uma vez que os instrumentos gráficos empregues por este autor não se pautam por um cumprimento de virtuosismos fáceis (em que tantas vezes a caricatura descarrila, e só alguns Antónios e Andrés Carrilhos a elevam a modos de pensar), mas de transformação para exploração conceptual. Logo, e neste caso específico, o autor utiliza alguns dos princípios da caricatura com o seu intuito de identificação.
Depois temos aqueles autores que usam o cartoon e a ilustração ou a banda desenhada, ou uma mescla disso tudo, para recriar situações e lançar os seus protagonistas em reformulações dos eventos do momento. Cid é um gigante desse capítulo. E também há aqueles que, misturando géneros e níveis de humor, e até batalhas de classe e gosto, abrem caminhos mais brutos, mas nem por isso menos contundentes, como Manuel Vieira ou Vilhena. Todavia, tampouco nos parece que Gonçalves queira fazer humor. É como se estas imagens tivessem uma mais-valia se nos arrancarem um riso, mas não fosse esse o seu fito.


Não penso ser um desserviço querer destrinçar estas questões, usos e limiares, ao colocar certos autores fora desse círculo criativo, mesmo contra as primeiras impressões e a forma como os discursos em torno deles são tecidos. Nada disto lhes retira o poder criativo, sugestivo, artístico de que são capazes. Ao querer não descrever (talvez fosse desnecessário explicar que não é o mesmo que “não querer descrever”) Nuno Saraiva ou João Fazenda, por hipótese, como autores cujas imagens são eminentemente políticas ou editoriais no seu sentido mais estrito, nada disso lhes enfraquece o poder autoral que se lhes deve reconhecer. Trata-se tão-somente de querer obviar à tal exactidão analítica a que nos referimos acima. E António Jorge Gonçalves, a nosso ver, preenche de uma forma contundente esta possibilidade da ilustração poder servir de arma de arremesso, ou de acto de provocação.
O título desta colecção é irónico, claro está, mas ao mesmo tempo, como muitas das imagens, desmonta desde logo uma ilusão que ainda persiste: a de que temos de navegar pelas águas auto-reguladas da economia de mercado. Como alguém escreveu, o capitalismo tem de ser entendido como um “neo-colonialismo cognitivo”, que não apenas lança a sua rede ideológica sobre tudo, como sobretudo cria a ilusão de que não existem possibilidades fora dessa rede, e que qualquer outra ideia é ela mesmo “ideológica”, negando dessa maneira a sua própria raiz ideológica e confundindo essas ideias com “ilusões imprestáveis”. Vejam-se a quantidade de imagens que o autor tece em torno de percepções, máscaras, enganos, contrastes.
O propósito do capitalismo é, em última instância, a da sua autodestruição. O niilismo do programa das Luzes, do racionalismo, do positivismo, da banalidade e progresso inexorável e cego do progresso leva a que no extremo esteja a aniquilação. O capitalismo financeiro exerce um poder terrível e esmagador sobre o capital produtivo, e até mesmo, ou pelo menos cada vez mais isso é claro como a água, os Estados e as suas instituições (a começar pelo processo da democracia representativa). Ora, são muitas as imagens do autor que dizem respeito à forma como o poder económico mundial funciona, não apenas em relação a negócios particulares (supermercados, petróleo, Venezuelas, CPLPs, especulação financeira) como no que diz respeito a instituições, povos, democracias, o papel do cidadão, que se perde antes em exercícios masturbatórios de vária espécie do que na procura de informação, formação e, consequentemente, de uma acção verdadeiramente livre.
Boaventura de Sousa Santos, em Portugal. Ensaio contra a auto flagelação (Almedina: 2011), escreve que “Democracia é toda a transformação de relações de poder desigual em relações da autoridade partilhada” (108). Daí que a democracia participativa, para além da (já gasta?, mas não será perigoso dizê-lo dessa forma?) democracia representativa, seja uma possível ferramenta de resistência. Não acreditamos que estas imagens de António Jorge Gonçalves possam constituir uma verdadeira ou efectiva “transformação das relações de poder”. Afinal, elas surgem num veículo que não partilha do mesmo tipo de tom nem do bom equilíbrio do autor entre virulência e ideia. Ainda assim, estas pequenas imagens de resistência conseguem revelar, ou instituem, entre autor, cartoon e leitor/espectador, uma “autoridade” e, acrescentaríamos nós, uma responsabilidade, partilhadas.
Nota: agradecimentos ao autor e à editora, pela oferta do livro (imagens da net, filme do próprio autor)
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