6 de dezembro de 2013

Gekiga Fanatics. Masahiko Matsumoto (Le lèzard noir)

Apesar deste projecto de Masahiko Matsumoto remontar ao final dos anos 1970 e inícios dos anos 1980 em termos de produção, a sua história diz respeito aos anos entre 1955 e 57, supostamente os anos “de berço” do tipo de banda desenhada indicado no título. No entanto, quase automaticamente se lê este livro sob uma outra leitura, a de A Drifting Life de Tatsumi, lido antes de Gekiga fanatics, mas que foi criado em 2009. Ambos os livros partilham muitos elementos, não fossem ambos autobiografias dos protagonistas que fundariam esse “capítulo” da história da banda desenhada japonesa que dá pelo nome de gekigá, ou, para simplificar, uma banda desenhada de maior maturidade e mais moderna. Gekiga bakatachi!!!, ou literalmente “Os tontos da gekigá” foi publicada em vários capítulos, irregularmente, na famosa e central revista Big Comic entre 1979 e 1984, e vem-se juntar a um só tempo ao número crescente de material histórico japonês que se vai tornando acessível através de traduções, assim como ao número de biografias, autobiografias ou títulos em banda desenhada dedicadas aos agentes criadores desta arte (pense-se em Les aventures d’Hergé, Désoeuvré, El invierno del dibujante, as biografias de Tezuka, Maurício, etc.).

O livro tem barreiras muito específicas, como se entende. Focando num período muito conciso, ele segue um pequeníssimo mas decisivo trio de autores, a saber, o próprio autor do livro que estamos a ler, Matsumoto, o seu mais famoso companheiro Yoshihito Tatsumi, e ainda Takao Saitô, autor de Golgo 13, quiçá a sua série mais famosa, e decerto a de melhor circulação no Ocidente. Sendo eles os três vistos como “pais fundadores” da gekigá, Fanatics centra-se nos primeiríssimos passos dos autores nessa direcção, desde os primeiros trabalhos com um outro tom mais maduro, a fundação das revistas que marcariam o ponto de viragem da produção e a sua partida de Osaka, um dos pólos de produção de mangá na época, de onde era originário o próprio Tezuka, para Tóquio, o verdadeiro centro, onde Tezuka já se encontrava. A insistência no nome do pai de Atom deve-se ao facto de que, não sendo ele o “inventor” da banda desenhada japonesa, insuflou-lhe uma tamanha inflexão que é extremamente difícil não encontrar nele um factor espoletador de novas tendências, e até mesmo de um tipo de banda desenhada (“à la Disney”, como diz Saitô, com toda a razão) à qual a gekigá procurava responder, se não mesmo se opor.

Gekiga fanatics aborda a vida destes autores, e seus editores, patrões, companheiros de armas e famílias, de uma maneira muito, digamos, corriqueira. Representam-se episódios das suas vidas quotidianas, desde as suas rotinas de trabalho, as constantes discussões, promessas goradas, e sonhos megalómanos propostos pelo mentor da editora Hinomaru-bunko, de Osaka, aos pequenos dramas domésticos, acentuados que eram pela vida algo miserável e da mão para a boca. Mesmo assim, o que se destila de todo esse arrasto pelas dificuldades parece ser uma sobrevivência graças à perseverança e ao bom humor. O tom “simples e ligeiro”, como escreve Takao Saitô num dos três textos de apresentação do livro (e que complementam exemplarmente a própria narrativa e, logo, a história deste “género”), é explicável pelo facto de ter sido criada esta narrativa para uma revista generalista, o que também explicará, por projecção, a diferente liberdade e tom mais “sério”, se assim quisermos, da outra obra-irmã de Tatsumi.

Como nos é explicado num prefácio/posfácio de Shô Onoda, existem alguns pormenores reais que na versão de Matsumoto são disfarçados, chegando-se mesmo a falar de uma “ficção não-ficcional”. Um exemplo imediatamente apresentado é a figura de “M. Takigawa”, que não é senão o editor Masami Kurota, que também surge no livro de Tatsumi. Compreende-se então que estas estratégias diversas de Matsumoto, nos anos 1980, serviriam ainda de protecção à vida real das pessoas envolvidas nesta sua rede de relações. Gekiga fanatics é muito franco na representação das falhas de carácter de todos os intervenientes (se bem que o próprio Matsumoto surja ele-mesmo como um sujeito algo apagado, que segue os outros, apaziguador de quaisquer quezílias, etc.). No entanto, a leitura dos dois livros lado-a-lado, e a consideração dessas palavras de Onoda seriam um pasto interessantíssimo para a questão, premente mas vexatória, da “verdade judicial” versus “verdade autobiográfica” e “autenticidade”, etc. Contraste-se, a título de exemplo, a cena de encontro com os editores da Mishima-shobô, que iriam editar a revista Kagi, espécie de tábua de salvação financeira para os autores. Em Gekiga fanatics, o trio está todo presente nessa primeira reunião, mas em A Drifting Life é apenas Tatsumi quem aparece.

Este trio trabalhava, aparentemente, em conjunto, desde os primeiros passos na “carreira”. Saitô era mesmo barbeiro e tinha um negócio, que abandonou em nome deste seu sonho. Mas aquilo que é o cerne principal deste relato - encurtado no tempo, já que diz respeito a um par de anos, desde o lançamento da revista Kage, que lhes angariou alguma atenção, e à partida para os arredores de Tóquio para tentarem melhor sorte - são as dificuldades, sobretudo económicas, de todos eles. A penúria, a incerteza mas também os desequilíbrios e os gastos errantes em pequenos prazeres criam uma matéria assaz dolorosa de acompanhar. Os defeitos de todos eles não são de forma alguma escamoteados, como se indicou acima, desde o abuso do consumo de álcool, os maus-tratos às mulheres ou mesmo a negligência em relação aos filhos, os gastos com prostitutas, as directas em que não se ligava ao trabalho que se acumulava, etc. Se por um lado muitas destas condições são algo familiares a muitos dos autores de banda desenhada contemporâneos, sobretudo os portugueses, que são permanentemente confrontados com uma quase total ausência de soluções remuneradas (e até de outras contrapartidas e conquistas), esta estratégia não serve apenas para mostrar que nem tudo eram privilégios como se evitam endeusamentos das pessoas (e feitos pelos próprios, o que recorda por demais toda aquela “ética” da autobiografia da banda desenhada contemporânea).

Acompanham-se todos os detalhes das duas revistas mais importantes para a reunião, primeira exposição e experiências públicas destes autores: Kage (“Sombra”) e Machi (“Cidade”), exclusivamente criadas para as kashibon [ver imagem no parágrafo anterior], isto é, as bibliotecas de aluguer (como num clube de vídeo ou de DVDs). Ambas as revistas (a segunda imitando a primeira, revelando parte das estratégias promíscuas e de rivalidades entre as plataformas editoriais, bastamente exploradas no livro, e às quais se deveria acrescentar a Jager, de Tóquio) tinham a particularidade  inédita ou original de se tratarem de antologias de histórias curtas, isto é, não se tratavam de volumes coleccionando séries, mas antes títulos com uma diversidade significativa de histórias completas, tornando-as apelativas de um modo bem diverso dos demais projectos.

Matsumoto não parece particularmente interessado em alongar-se em questões teóricas e programáticas. De facto, a apresentação da “história” é mais centrada no dia-a-dia, e não se explora, pelo menos de maneira nítida e directa, o facto destas três personagens não concordarem em termos teóricos sobre todos os aspectos do que queriam fazer. Apesar de jamais se explorar essa questão em Gekiga fanatics (ainda que haja uma menção no texto complementar de Saitô e decididamente em A Drifting Life), a relação conceptual entre a mangá e a gekigá não era totalmente clara. Se alguns dos autores consideravam esta “nova mangá”, que Matsumoto chegou a chamar de “komagá”, como uma inflexão, mas parte integrante, da banda desenhada geral, alguns outros viam-na como um território totalmente aparte, como Saitô. Pouco importa agora tentar perceber quem “teria razão” - da nossa parte, não vemos aqui tanto uma fundação de um novo fazer, mas sim uma nova inflexão que não deixa de dar continuidade ou a possibilidade de integração numa tradição maior -, mas antes entender os diferentes matizes da consciência de que se estava perante uma mudança em termos estilísticos, narrativos e editoriais.

A gekigá parece ter tido pelo menos duas linhas de desenvolvimento. Por um lado, todas aquelas que enveredariam pela linguagem do sexo e violência, mais directamente associadas aos movimentos dos estudantes da época, surgindo quase sempre A lenda de Kamui, de Sanpei Shirato, como a grande referência nesse sentido. Mas todo este material “policial” da Kage, da Machi e das outras revistas estaria apenas um furo abaixo do grau de violência desse outro material, que de resto surgiria numa segunda ou terceira fase. Por outro, temos aquela atenção particular para com o quotidiano, a vida banal dos cidadãos, ou mesmo aquelas fugas pelo absurdo ou o (verdadeiro) surrealismo, de que Tatsumi, Tsuge, Shin’ichi Abe ou Suzuki seriam grandes cultores. Gekiga fanatics parece já beber dessas outras experiências, sobretudo exploradas na crucial revista Garo. No entanto, pensamos que esta segunda linha é, em parte, uma reconstrução mitificadora mais tardia, pois os próprios Tatsumi e Tsuge haviam “crescido” a criar histórias mais convencionais nos géneros do policial e de samurais, e Saitô, com o seu Golgo 13, assim como as suas séries de samurais na Big Comic, havia contribuído substancialmente para a “linha da violência”.   

Os propósitos do movimento que depois se viria a chamar gekigá eram tripartidos, se bem que eles devam ser vistos como tendo sido acumulados ao longo do tempo, e não imediatamente parte consciente das suas origens. Em primeiro lugar, temos uma claríssima noção de que as histórias desenvolvidas nestas revistas se dirigiam a um público ligeiramente mais velho e maduro do que o habitual público infantil. Ainda assim, estamos a falar de adolescentes e jovens adultos, em larga medida o público ainda “médio” da esmagadora maioria da banda desenhada a nível mundial, seja com os álbuns de ficção científica franceses, os super-heróis norte-americanos ou as aventuras japonesas (mesmo que os próprios se vangloriem de trabalhos “maduros” e “adultos”, isso não é totalmente líquido e confirmado pelas obras em si). Em segundo lugar, e enquanto estratégia para chegar a esse mesmo público, temos as opções gráficas mais sofisticadas em contraste com os trabalhos infanto-juvenis: desde uma figuração mais pormenorizada, um uso mais substancial de sombras, texturas e volume, ângulos mais dramáticos, vinhetas sem texto para criar modulações mais vincadas dos ambientes (de certo modo, a “fundação” do que S. McCloud chamaria de transições “aspecto-a-aspecto”, etc., tudo isso influenciado substancialmente pelo cinema, acima de tudo. Aliás, em vários momentos do livro de Matsumoto é revelado como muitas das fórmulas narrativas e o ambiente visual era decalcado de toda uma série de filmes da época, não apenas de Hollywood mas igualmente do próprio Japão (recordemos que é na década de 1960 que começam a surgir os filmes mais famosos e bem produzidos com yakuza ou samurais como protagonistas). Finalmente, algo que seria revelado mais tarde por Tatsumi no seu manifesto da gekigá, é que o elemento que finalmente consolidaria a “maturidade” do género ou movimento na década de 1960 era a associação, quase directa, à vívida e enérgica confrontação da nova geração em relação à anterior, que estava no poder, um conflito de contornos claramente políticos e sociais.

Como dissemos, Gekiga fanatics não aborda estas questões de um modo tão directo ou expositivo, mas contribui sobremaneira com pormenores para compreender a vida diária dos autores que foram compondo essa história. O estilo de desenho de Matsumoto é algo cru e quase naïf, disruptivo mesmo no que diz respeito à suave transmissão das emoções e tranquilidade que se imaginaria em certos momentos, se bem que as composições de página sejam muito precisas no ritmo desejado de transições, pautação do tempo, fluidez dos movimentos [como de depreende desta página]. Algum fácies de determinadas personagens parece ser construído de acordo com as convenções gráficas de uma banda desenhada mais infantil, a partir de elementos geométricos ou de identificação sumária e simplista. Mesmo considerando o desenho de Tatsumi algo “arredondado” ou mesmo “abonecado”, há uma coesão e definição mais sólida, talvez, ou até uma sofisticação de acabamento que Matsumoto não tem. No entanto, aplicado que está a esta novela - no seu sentido figurado de enleio de emoções humanas - essa abordagem “nervosa” e “trémula” é-lhe conveniente. É de recordar que o Matsumoto da década de 1970-1980 é mais modelado que aquele das de 1950-1960, mas ainda distante da abordagem estilizada da sua obra mais recente de maior circulação no Ocidente, Cigarette girl/La fille du bureau de tabac. Fanatics encontra-se então, a meio desse caminho, tal como a meio do caminho também andamos nós, leitores ocidentais, na compreensão mais abrangente da imensa história daquela tradução nacional de banda desenhada.
Nota final: para uma preview do livro, consultem o material que se encontra no Issuu, aqui.

2 comentários:

  1. José Sá8:08 da tarde

    Olá Pedro,
    Já tive a oportunidade de comentar numa tua entrada no blogue acerca de bd autobiográfica que encontrava no "A Drifting Life" do Yoshihiro Tatsumi uma proximidade distante (oximoro intencional :-) com a técnica "Pekariana", respectivamente, por e apesar de sentir que no final da leitura o meu conhecimento do autor japonês teria ficado circunscrito ao que ecoara através da sua (dele:-) cavidade craniana. Isto não é de todo mau quando percebo(emos) as qualidades humanas e humanistas do autor e a visão que ele tem de si como ser humano incompleto e da sua percepção do próximo como alguém que o ajudará ao preenchimento desse vazio. Digo isto, pela revelação/confirmação com que me deparo perante a composição que o Yoshihiro faz em ADL dos seus companheiros e das distâncias observáveis neste livro do Matsumoto, nesta nova perspectiva. Novamente digo isto para dizer :-) que pressinto que a tentativa de sincronização entre os tempos da acção e os tempos da leitura, técnica que Tatsumi decreve em ADL e emprega na sua Gékiga, é uma metodologia que talvez não partirá só da sua observação e comparação à banda desenhada ocidental, mormente aos comics, mas também dos paralelismos que se poderão fazer dos traços da sua personalidade e visão do outro e do essencial da sua caracterização/representação psicológica dos relacionamentos, o panorama observável da história que a velocidade das interacções permitirá contar.
    Outro aspecto do livro percebido da tua descrição, mas também repetido no ADL e que perpassa por todos os grandes autores de mangá japonesa (é conveniente esta distinção?), que não posso deixar de comentar com uma nuance às tuas palavras, é o do enorme desequilíbrio entre as muito menos que razoáveis condições de trabalho e o contraste com a qualidade e, ainda mais destacável, produtividade do mesmo, e que serão sempre, dentro dos limites desejáveis e distâncias idiossincráticas, um património exemplar para os autores "ocidentais".
    Abraços,
    José

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  2. Apenas responderei a dois pontos. O primeiro em forma de pergunta: não serão os verdadeiros humanistas sempre pessoas capazes de compreender a sua própria incompletude?
    A segunda tem a ver com as condições de trabalho. Depende. Há momentos na história da banda desenhada moderna em que os autores eram muito, muito bem pagos (alguns dos cartoonists dos jornais das décadas de 1910 e 1920). Noutros casos começaram de forma humilde (quase todos, afinal de contas), mas que rapidamente conseguiram conquistar um bom espaço de trabalho. Porém, é preciso não confundir uma coisa com a outra: há quem tenha más condições e é mau artista, quem tenha todas as condições e seja mau artista, etc. E no Japão não é excepção. O Tsuge, o imenso Tsuge, é um caso gritante desses problemas, mas haverá outras histórias...
    Pedro

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