22 de janeiro de 2014

Arts Magazine. Hors-série: Art & Bd.

Na discussão sobre o livro de Conefrey, assim como tantos outros momentos neste blog, ou de outros trabalhos tentativamente desenvolvidos por nós, auscultaram-se os pontos de contacto verdadeiros entre a banda desenhada e outros círculos da produção de arte, mormente contemporânea, para além de uma mera questão de representações mútuas ou de diálogos “de má vontade”. (Mais) 
Parece ser já uma constante que, uma vez por ano, determinadas revistas se dedicam a dossiers especiais sobre a banda desenhada, escalpelizada de acordo com este ou aquele instrumento, foco ou contexto determinados. A Beaux Arts Magazine, por exemplo, costuma dedicar-lhe números especiais. Os nossos jornais e publicações periódicas, de quando em vez, parecem também despertar das suas letargias e desatenções costumeiras para quererem criar abordagens generalistas, temáticas e as mais das vezes pensadas em termos absolutos. Se bem que nos últimos momentos já não se possa afirmar com toda a propriedade que não haja nenhum espaço integrado da banda desenhada nos focos sobre exposições, livros, eventos, etc., a verdade é que seria bem mais salutar considerá-la tão-somente como um outro território de criação artística e/ou literária, enfim, expressiva, como a poesia, o teatro, o cinema, a dança contemporânea, a literatura ou as artes visuais, do que lhe votar um silêncio quase total “corrigido” por dossiers que tentam enfiar o Rossio na Rua da Betesga.

O número especial deste Janeiro da Arts Magazine é dedicado precisamente aos diálogos entre a banda desenhada e as práticas artísticas contemporâneas, mas como se espera, sendo uma revista necessariamente de artigos generalistas, espraia-se por toda uma espécie de vertentes diversificadas que podem criar a ilusão de esgotarem as dimensões a discutir, mas jamais entram em questão mais aprofundadas ou de verdadeiro ensaio, na plena acepção da palavra.

A revista está estruturada de uma maneira simétrica e clara. Duas partes apresentam uma equação, aparentemente idêntica, mas que prova a inexistência da permutabilidade nas questões estéticas: “A arte é banda desenhada” e “A banda desenhada é arte”. A primeira parte desdobra-se em questões ainda relativamente prementes, como a de vasculhar a história da produção sígnica pelo homem, e entender se alguma dessa produção possui elementos passíveis de serem compreendidos à luz da noção de banda desenhada, havendo coincidência de alguns processos imagéticos, de sequencialização, de narrativização, etc. Nomes de pessoas que tem estudado com a máxima profundidade certos momentos da história da arte são aqui entrevistados, ainda que brevemente, e por isso temos Danièle Alexandre-Bidon para falar de alguma produção de iluminuras medievais, ou especialistas das pinturas rupestres, certos ciclos da cultura bamoun, dos Camarões, do antigo Egipto, etc. Um outro artigo arrola um conjunto judicioso de pinturas de um período alargado da História da arte, do Renascimento dos Países Baixos ao Barroco (Memling, Brueghel, Bosch, o mestre dos cassoni Campana e Rubens), para lhes “decifrar” as árias estratégias de narrativização, onde existem verdadeiros protocolos de leitura que ultrapassam a questão iconográfica, e chegando mesmo a envolver ora a materialidade dos objectos – painéis num cofre – ou a disposição espacial – a galeria Médicis…

Uma quase obrigatoriedade é a citação de artistas que fizeram banda desenhada, e os suspeitos do costume encontram-se na linha explorada: Picasso, Salvador Dalí, Lyonel Feininger, Masereel, Isidore Isou, e Max Ernst, mas também Töpffer, o que não deixa de ser algo estranho, já que a sua fama é sobretudo a de escritor, dramaturgo e “pai” da banda desenhada, e não tanto como artista: servirá portanto de “ponto de partida” ou de intersecção. Mas naquela constelação, estão a misturar-se formas e forças e presenças que são bem distintas entre si. Afinal, Feininger criou mesmo banda desenhada tal como ela é entendida consensualmente, na sua plena expressão no plano social (comic strips nos jornais), ao passo que Picasso elaborou uma pequena sequência numa correspondência pessoal, e um ciclo de gravuras de limitada circulação. Não é que não seja x, mas um x num grau distinto, que não é discutido.

Um breve texto de Pierre Sterckx, conhecido crítico de arte e defensor da banda desenhada no plano estético e intelectual, tece algumas considerações, algo impressionistas, sobre o plano formal (quase em exclusivo), aproximando os planos de pesquisa bidimensional de um Mickey com os móbiles de Calder, ou a découpage do movimento em Muybrudge e McCay, terminando com um breve diálogo com Serge Tisseron, que não vem trazer uma inflexão significativa ao que havia sido discutido. Apesar de estar presente uma imagem do comic book In the Crack of the Dawn, de Matt Mullican e Lawrence Meiner, ele não é discutido de forma alguma, nem contextualizado, etc., pelo que não se compreende muito bem quais são os espaços de efectivo diálogo, fricção, contaminação e exploração “interna” de uma pela outra…

Finalmente, apresenta-se um longo artigo, baseado numa conversa e visita ao atelier, sobre o artista Hervé di Rosa, “filho” do entrosamento da Figuração Narrativa e do punk, grande cultor da banda desenhada enquanto criador e editor numa determinada fase da sua vida, mas cuja “paixão” (a palavra é sempre repetida nestas ocasiões, de uma maneira quase insalubre sobre a relação com a banda desenhada, ao contrário de, por exemplo, a música erudita ou as artes visuais) se mantém enquanto coleccionador e leitor atento. Di Rosa, que por sinal, habita agora entre Paris e Lisboa, havia criado uma série de strips, de personagens chamadas Renés, de que aqui se publica uma parte. Uma brevíssima comparação a algum do seu trabalho mais recente, como as “Virgens da arte contemporânea”, farão entender que existem muitos pontos de continuidade em termos figurativos, materiais e de humor entre ambas as práticas, ou melhor dizendo, enquanto uma única prática unida e contínua…

A segunda parte como que inverte a questão, abrindo então com um ponto “contrário”: a discussão de autores de banda desenhada que ou têm integrado processos típicos da arte contemporânea na sua criação de banda desenhada ou que, ou por essa mesma razão, têm conquistado espaço no circuito galerístico e, necessariamente, da crítica especializada das artes visuais: Winshluss, Jochen Gerner, Frédéric Pincelet, Ruppert & Mulot, entre uns poucos outros. Uma inflexão particular desta questão é a agregação daqueles autores de banda desenhada que fizeram pintura, com vários graus de fortuna: Tobias Schalken, Marjane Satrapi, Paul Cuvelier, Jean-Marc Rochette (do Transpierceneige) e também Hergé e Jijé (as duas pinturas aqui mostradas são destes autores, respectivamente “6-63” de 1962, e “Vent d’orage sur le Connecticut”, de 1973). No entanto, mais uma vez, a ausência de maior contextualização falha em perceber que tipo de circulação e recepção crítica pode ter havido ou existe, levando à ideia de que a prática totalmente informada e integrada no seu tempo de Schalken, por exemplo, vive no mesmo plano do que as abordagens sensaboronas de Satrapi, a mediocridade de um Manara, ou a total ausência de impacto da pintura de Hergé, que apenas é procurada pela razão da fama da sua outra criação.

A recente tendência de criar biografias de artistas pela banda desenhada é também explorada, se bem que haja uma particular atenção para aquelas obras que vão para além de uma abordagem factualista ou escolar, digamos assim, para mergulharem num diálogo de confusão entre as práticas e questões mais fundas da arte. Assim sendo, temos Oubrerie e Birmant, assim como Bertozzi, à volta de Picasso, o recente livro de Baudoin sobre Dalí, e o magistral Pascin, de Joann Sfar. Segue-se uma pequena colecção de pranchas de banda desenhada (de Otto Soglow, Frank King, Fred e Alexis, Druillet e Jens Harder, entre outros) que, de uma forma ou outra, séria ou sarcástica, consciente ou ignorante, superficial ou profunda, “falam” da arte sua contemporânea. No entanto, este é um brevíssimo exercício que apenas indica a sua existência, não a questiona ou tenta compreender até que ponto é efectivo, produtivo ou informado esses mesmos discursos. A esmagadora maioria dos casos, na verdade, surgem mais de forma anedótica, um humor relativamente fácil e recorrente – se não idêntico – que poderia ser ainda multiplicado por outros exemplos, e que, a nosso ver, reforça ainda mais a substancial cegueira e surdez entre uma área e outra.

Como não podia deixar de ser, a discussão de uma arte que existe na sua possibilidade de reprodução técnica, na sua qualidade intrínseca de múltiplo (mas sê-lo-á de facto?, não haverá aqui o perigo não apenas de essencialização mas determinação tecnológica?), com a de outro circuito de produção que também tem a ver com circulação, isto é, em espaços privilegiados – os museus, as galerias ou qualquer espaço que seja revestido desse papel mesmo que num momento temporário – passa pela questão da sua exposição, questões de materiais, composição do espaço, diálogo com espaço e outras obras (vendo-se em experiências várias, desde a exposição Bande dessinée et Figuration narrative em 1967 à mais recente Vraoum!

Além destes artigos, tudo apresentado em colunas rápidas, caixas e profusamente ilustrado para garantir uma leitura simples, fácil e rápida, tornando-o num instrumento nada displicente de informação, ainda que não de aprofundamento, existe um número substancial de bandas desenhadas, ora histórias curtas ora excertos de obras maiores, mas todas elas ora focando a figura de um artista famoso e real (Picasso por Bertozzi, Antonello de Messine por Jean Dytar, possivelmente empregando o processo de uso de lentes que David Hockney explora em Secret Knowledge) ora de uma personagem perdida num mundo obtuso das artes plástica (Dupuy e Hui Phang, Piort com o seu Marc Édito, ambos recordando o discurso de Francisco Sousa Lobo, mas distanciando-se do artista português por não atingirem o mesmo tipo de investigação conceptual, ficando-se ora pela anedota ora pela platitude emocional), ora ainda elaborando pequenos exercícios de imitação formal, como as versões do Capuchinho Vermelho “à moda de” Picasso, Chirico, Léger, Rousseau, por Jean Ache, muito pouco inventivos fora a sua superfície. Além disso, o Mitsou, de Balthus enquanto criança, é reproduzido na íntegra, mas com uma estratégia de paginação que leva a crer haver uma preocupação a priori com uma sequencialidade que não existe (um pouco como a gravuras de Picasso quando foram publicadas pela Dark Horse).

No cômputo final, este número de Arts Magazine não é mau de todo, em termos de imagens, informações, e referências, e mostra alguma preocupação em tentar alargar o leque de autores, produções, pensamento e circuitos de criação, mas não deixa de sofrer em parte por uma espécie de limitação nos exemplos procurados, numa ideia mesmo relativamente conservadora do que é entendido enquanto banda desenhada ou da variedade de práticas materiais, estilísticas e narrativas (ou anti-isso tudo) que existem de facto. Pois a questão já não é somente de potencialidade, mas de objectos existentes
Nota final: agradecimentos a Henry DeBaecque, Frederico Duarte e Hervé Di Rosa pela obtenção da revista e algumas conversas. O Lerbd tem uma cópia a mais da revista (não totalmente grátis). Aos interessados, deixem um comentário com email.

8 comentários:

  1. épá!
    quero a cópia extra!
    esta revista sai sempre com algo de BD por causa de Angouleme...
    venha lá ela!
    abraços

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  2. Olá Pedro,
    Esta entrada e a anterior relembram-me as discussões da "transmediação", das definições de banda desenhada e mais profundamente as da origem da banda desenhada. Li há pouco tempo o "The Dying Draughtsman", ainda tenho bem fresco o quase adágio "a natureza da imagem parece-me promíscua". Realmente a imagem pode funcionar em "duas ou três situações" e assim como a revista dança entre esse suposto vai-e-vem de pintores que fazem umas graças na bd e autores de bd que procuraram reconhecimento também pela pintura, a imagem confunde e não tenho o conhecimento para dizer com segurança se ela pode conter em si a representação de várias formas de arte, ou se cada forma de arte necessariamente produz a tradução da imagem. Mais que os tais suspeitos do costume, lembro-me dos eternos culpados que, de óbvios, recorrentes e fáceis de desmontar, sempre recordo nestas questões: pinturas rupestres, hieróglifos, tetos de igrejas, biombos chineses, gravuras japonesas, etc. Penso que não concordarás com as origens e ainda menos com a classificação. A escrita cuneiforme sobre a pedra é capaz de produzir um código civil? Então também produz banda desenhada? E pelo inverso porque não recordar o Roy Liechtenstein, o exemplo popular de quem criou pintura através da utilização sardónica de reproduções de banda desenhada? A etimologia de "banda desenhada" atrapalha e condiciona o preconceito, mas aqui na Europa não estamos assim tão mal servidos. Muito mais justificações têm que dar os americanos com os seus "comics" e "funny papers".

    Estive com "Os Labirintos" nas mãos e, perdoa-me mais este prosaísmo, desejei que o livro fosse mais grande (maior já o é:-). Se o Arquipélagos perde para a impressão ganha na dimensão.

    Obrigado e Abraços,
    José

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  3. A questão é demasiado complexa para a despachar num comentário de blog. Mas a história não se compõe de descrições formalistas e essenciais de determinadas formas de expressão, ela faz-se com atenção para com certos desenvolvimentos sócio-culturais, que levam ao aparecimento de artefactos determinados. A escrita cuneiforme poderia ter banda desenhada? Não, pois ela só surgiria séculos mais tarde, possivelmente necessitando de, pelo menos, uma segura distinção entre marcas gráficas que servissem a uma representação simbólica da linguagem oral (a escrita) e outras que tivessem propósitos icónicos (as imagens). Poderíamos imaginar um pastiche cuneiforme de bd? Claro que sim, mas não seria mais do que uma ficção. E a questão da nomenclatura pode tornar-se complicada, já que mesmo a expressão "banda desenhada" é decalcada de outra francesa, "bande dessinée" que é por sua vez tradução de um termo norte-americano "drawn strip", e nada tem a ver com os descritivos usados antes, a começar por "littèrature en estampes" do Töpffer... Ui, ui, a lama...
    :)
    Pedro

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  4. Pode parecer que não vem ao caso, se calhar só vem mesmo na minha cabeça, mas esta entrada, este debate, a revista, o Francisco, fazem-me lembrar o universalismo a desentender-se com o multiculturalismo.

    Abraço,
    José

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  5. Toda e qualquer conversa faz sentido, desde que se a entabule de forma série e sustentada. Não percebo essas associações, e mesmo essas noções, penso eu, teriam de ser bem descritas para que se percebesse o seu escopo e aplicação neste contexto.
    Pedro

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  6. José Sá7:45 da tarde

    Olá Pedro,

    Peço desculpa, estava só a dizer que é difícil combinar as visões contraditórias que por vezes se tem (tenho) de achar que a banda desenhada se pode apropriar de qualquer época, cultura ou outra forma de arte visual, sendo que neste caso associava ao universalismo que há em qualquer um de nós em querermos achar que o mundo e as pessoas são iguais em qualquer parte e época da história do mundo, isto contra a outra visão de achar que não, que cada forma de arte tem o seu espaço bem definido e que a observação interdependente/interdisciplinar do real entre as várias formas de arte tem de obedecer a essas fronteiras e planos distintivos, sendo que aí chegava-me ao multiculturalismo (isto podia ser melhor explicado mas não há espaço).
    Eram só associações livres, como uma pintura, se nos dizem alguma coisa parámos e reflectimos, caso contrário prosseguimos. Daqui são sempre bem intencionadas e, é verdade, pouco sérias (no bom sentido) quando tentam disfarçar alguma (muita) falta de arcaboiço para o debate.
    Abraço
    José

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  7. As associações livres são mais do que bem-vindas e usualmente são produtivas, simplesmente devem ser "cavadas" o mais possível para medrarem verdadeiramente.
    Aceitamos que a banda desenhada é uma arte de pleno direito? Pois bem, então ela, enquanto prática artística, estará apta a mergulhar de uma forma típica do "jogo livre"" das artes, ou até sob uma certa ideia da pós-modernidade, em todo o passado humano, e isso permitir-lhe-á apropriar-se de qualquer época ou estilo. Estamos a falar aqui a prática, da criação de novas peças, "ao estilo de x", como ocorre nalgumas pequenas peças, superficiais, neste revista, ou numa adaptação da "tapeçaria" de Bayeux de que falei há uns tempos... Se, porém, estivermos a falar de um ponto de vista disciplinar, isto é, de uma discussão sobre a história e até a "ciência", se se quiser, da banda desenhada, então é necessário ser-se muito cuidadoso no que diz respeito a inclusões "selvagens". No entanto, não só aceito como eu próprio pratico a possibilidade de "ler uma determinada obra de arte ou artefacto que não de banda desenhada como se fosse banda desenhada". Aquela pequena expressão, "como se", é fulcral, e diz respeito ao "als ob" kantiano, o que neste caso significa que se abre à possibilidade de utilizarmos instrumentos formais e sociais que foram desenvolvidos no campo da banda desenhada sobre objectos que não haviam sido contemplados para essa aplicabilidade, sejam eles obras de arte não-banda desenhada actuais ou objectos históricos.
    Nesse sentido, penso que pode haver um equilíbrio entre as duas atitudes: não é uma mera entrega acrítica ao "universalismo" ("sempre existiu banda desenhada", ou "isto significa sempre a mesma coisa"), mas tampouco um "multiculturalismo" exacerbado e sem limites ("cada macaco no seu galho", "não há comparação possível", " isto não tem nada a ver com aquilo"...).
    É uma ideia.

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