Um
contrato com Deus.
Will Eisner. De
todos os livros desta colecção, e suspendendo uma questão de
gostos e ou juízos de valor particulares, é inegável que este
título veio a ocupar um papel fulcral na história da banda
desenhada contemporânea. Mesmo que se saiba que não é aqui que o
termo “graphic novel” foi fundado, é nele que acabou por escapar
a uma certa invisibilidade e, em retrospectiva, que se consolidaram
nele os desejos de conquista de um papel que apenas mais tarde seria
assegurado. Originalmente publicado num só volume em 1978, esta foi
a primeira vez que Eisner resolveu publicar de uma vez só uma obra
que equivalesse a um livro. Ele faria o mesmo com obras posteriores,
mas que sairiam em pré-publicação episódica. Pintadas a um
ligeiro dourado, estas quatro histórias sobre personagens vivendo
num bairro pobre de Nova Iorque bebem, da estranha colisão entre o
melodrama e o humor judaico, em que nenhum dos protagonistas sai bem.
Ou é “podre” por dentro, ou é fraco demais, e pairando sobre
todos o Deus vindicativo do Velho Testamento...
A
louca do Sacré-Coeur.
Alejandro Jodorowski e Moebius. Segunda
colaboração dos dois autores do mítico e extremamente influente
Incal,
quando do lançamento do primeiro volume, em 1992, esta obra
surpreendeu alguns dos seus leitores, já que parecia ancorada
totalmente na realidade mais banal da existência humana. Um
professor de filosofia, boémio judeu parisiense cuja chama “já
havia passado”, tudo parecia longe das fantasias tecidas por
Jodorowki em todas as suas obras. Mas esta era a que mais bebia da
sua experiência real, do seu papel de “guru” na sua técnica que
mistura o Teatro Pânico, por si fundado nos anos 1960 com Topor e
Arrabal, o psicoteatro, e todas as lições que o autor foi
angariando ao longo da sua vida em torno da magia e espiritualidade.
Essa matéria transforma-se numa mole que lançará o professor numa
terrível curva de aprendizagem, bem clássica: descendendo até
literalmente vomitar as tripas para renascer. Moebius, também adepto
de algumas das disciplinas aqui exploradas, seria o companheiro
ideal, mas se os dois primeiros volumes têm uma abordagem límpida e
sossegada, os atropelos rocambolescos do terceiro tomo são servidos
por um trabalho de composição algo encavalitado, que o tornam um
pouco mais pobre. Resta-nos
indicar igualmente que o prefácio da presente edição foi por nós
escrito.
A
Viagem.
Edmond Baudoin.
Extensão
do livro anterior que seria rebaptizado
Le premier voyage,
esta obra havia sido construída de propósito para o mercado
japonês, na revista Morning,
que desejava apresentar conteúdos informados pelas tendências
contemporâneas, “literárias” se assim o desejarem, da banda
desenhada ocidental. Retomando a mesma personagem do livro anterior,
mas inflectindo-lhe um novo percurso, em que a irresolução se transforma numa galeria de encontros, e que acaba por se revelar
uma recompensa, de alguma forma, da questão colocada no primeiro
livro. Podemos considerar que este livro está ligeiramente fora do
seu Poema Contínuo, como sempre repetimos, a agregação a par e
passo das pessoas e acontecimentos que compõem a sua vida, mas sendo
a sua obra parte integral e indelével da sua pessoa, estará isso
correcto?
Foi
assim a guerra das trincheiras.
Jacques Tardi. A
apresentação de Tardi não deveria ser necessária, tendo em conta
a sua presença contínua num certo imaginário e até mesmo
maturação desta arte. Precisamente como um dos autores-chave da (A
Suivre),
é natural que o seu nome ocupe um dos lugares de destaque. Cultor de
um estilo que parece distorcer os princípios perenes da linha clara
clássica franco-belga, estão ainda lá os fundamentos realistas dos
espaços e objectos para colocar personagens desenhadas com linhas
fluidas e nervosas. Em parte, são essas as características que o
tornaram um dos autores principais da tendência dos anos 1970 a que
os críticos Bruno Lecigne e Jean-Pierre Tamine apelidariam de “Novo
Realismo”, que Ann Miller sintetiza como sendo uma “abordagem
crítica não apenas com o realismo mas também com temas políticos
contemporâneos”. Nesse sentido, e revisitando um dos seus temas de obsessão, a 1ª Grande Guerra, esta obra endereça-se igualmente ao
público contemporâneo para repensar a sua identidade, e os mitos
tecidos pelas malhas políticas de hoje. Reunindo na verdade dois
trabalhos distintos, temática, estrutural e narrativamente, cada
qual do seu modo surge como um dedo em riste acusando a inépcia e a
estupidez dos “líderes natos”, ainda que sempre a medo que se
lhe rebente. “Gigantesco e anónimo grito de agonia”, escreve o
autor no seu prefácio, e cumpre-o com estas páginas.
Beterraba:
A vida numa colher.
Miguel Rocha. Este
autor português é multifacetado mesmo somente no interior da banda
desenhada, tendo criado livros a solo como trabalhando com
argumentistas, em graus bem diversos de colaboração. De todos os
seus livros a solo, e sem desprezar quer os anteriores esforços quer
os que se seguiriam, Beterraba
ocupa um lugar particularmente distinto, por razões visuais e de
escrita. Visualmente, Beterraba
é um magnífico caso de uma banda pintada,
já que as imagens são criadas com acrílicos sobre cartão
colorido, levando a efeitos de brilho e esquemas cromáticos. Se já
antes Março,
criado com Alex Gozblau, tinha “soltado” Rocha para a pesquisa
das cores, é este livro, de 2003, que faz explodir essa dimensão de
uma forma a um só tempo expressiva, poética e profundamente aliada
aos propósitos narrativos. No que diz respeito à intriga, estamos
perante um encontro magistral entre um olhar apaixonado e implicado
sobre um certo estado da história do país, olhando para um mítico
ruralismo passado, e um nível de fantasia que desloca essa pesquisa
para territórios quase mágicos. Centrando-se na vida de uma família
que parece saída dos universos circenses de Fellini ou de Erice, com
contornos oníricos, Beterraba
acaba por ser um retrato de um país muito real, cruel e brutal, que
ainda sobrevive. Ocupando um lugar raro na maturidade da escrita da
banda desenhada contemporânea portuguesa, este título ocupa um
lugar justíssimo nesta selecção.
A
arte de voar.
Antonio Altarriba e Kim.
Publicado em 2009, este livro angariaria uma atenção crítica
incrível no seu país, e não só, assim como prémios, inclusive o
Premio Nacional Del Comic. Um livro denso, complexo, numa rede multifacetada de memórias próprias, memórias alheias e memórias colectivas, este é um retrato da vontade de um homem face ao edifício da história e da vida. Se essa vontade é indómita ou vencida, caberá ao leitor descortinar. Tendo escrito largamente sobre o mesmo quando da sua edição espanhola, assim
como prefácio da edição portuguesa, remetemos os leitores a esses
textos.
O
livro do Mr. Natural.
Robert Crumb.
Ainda que não seja a personagem mais famosa de Crumb, nem a única
que se tornaria recorrente ao longo dos anos, é Mr. Natural aquela
que melhor sobreviveria às transformações sociais e históricas na
cultura dos Estados Unidos, desde os anos 1960 – é por demais
evidente que esta personagem é uma concatenação e redução das
centenas de “gurus” surgidos nas eras beat, hippy e as que se
seguiriam – até à actualidade. Mestre zen como manda a lei, a
espiritualidade de Mr. Natural encontra-se sobretudo na sua
capacidade em abraças a mais básica das materialidades da
existência, não ter medo da banalidade e, claro está, na sua
vontade férrea, absolutamente invencível. Neste sentido, é esta
personagem aquela que melhor cumpre o papel do Super-homem anunciado
pelo Zaratustra de Nietzsche (e não aquele de cuecas vermelhas, o
qual, bem pelo contrário, é quase uma personificação, ainda que
energética, do homem mole) e Flakey, tal como o nome indica, o
espelho em que nos olhamos no confronto com ele.
Sharaz-De:
Contos das mil e uma noites.
Sergio Toppi. Obra tardia do mestre
italiano, o que salta à vista nesta obra é o uso da prancha inteira
como superfície de inscrição das suas imagens, num daqueles usos a
que B. Peeters chamaria de “decorativo”, ainda que esse termo
pareça ter um juízo valorativo algo negativo. As histórias
dividem-se de um modo mais claro do que na estrutura literária, já
que os vários níveis hipodiegéticos são aqui mais “arrumados”,
até visualmente, com o rosto de Sharaz-De como que enquadrando cada
novo conto. Criadas a meados dos anos 1980, pela colaboração de
Toppi com a Linus,
a fabricação de cada um dos contos foi obedecendo a circunstâncias
cambiáveis, mas sente-se desde logo o ensejo em conquistar um espaço
que, à época, talvez não fosse totalmente imediato, apesar das
experiências de muitos outros autores, mais jovens alguns. Se
narrativamente Sharaz-De
não é, quiçá, a sua maior conquista, este é uma das peças que
torna Toppi num vocábulo que deveria significar imediato
reconhecimento.
O
diário do meu pai. Jiro
Taniguchi. De uma forma ou outra, e com
a excepção de Love Harbour Hotel,
foi este livro que deu início a uma aturada travessia da obra deste
autor maior japonês para as terra do Ocidente. Se se o pode irmanar
a Quartier
Lontain, a ausência da dimensão
fantástica no volume agora publicado torna-o mais ao “rés da
vida”, e às experiências reais e tangíveis que se podem atingir
no interior das nossas emoções e pensamentos. A fantasia de voltar
no tempo e seguir um caminho alternativo toca a todos, mas a mudança
efectiva dos nossos corações é possível a todos, e é esse o
objecto de O diário.
Tendo escrito sobre a sua edição francesa, assim como o prefácio
deste volume, a ambos remetemos.
Mort
Cinder. Héctor Gérman
Oesterheld e Alberto Breccia. Os
episódios que compõem a estranha saga do homem que “salta no
tempo” havia saído na revista Misterix
ao longo de uns dois anos (Agosto de 1962 a Março de 1964), e
constrói uma paisagem humana e política em que os posicionamentos
dos autores face às injustiças, abusos do poder, e às crueldades
perpetradas pelos seres humanos entre si se torna a matéria plástica
directamente enfrentada pelos protagonistas, que poderiam ser vistos
como dois graus da réstia da bondade e coragem humana. Tendo já
saído em Portugal numa edição parcial, pela Asa, a presente edição
é completa e restaurada (possivelmente seguindo os passos daquela da
Planeta DeAgostini, em espanhol, de 2002) em que a convivência dos
formatos oblongos e vertical espelham a mudança da própria
Misterix,
temos agora a oportunidade de integrar este volume no nosso
conhecimento mais alargado da produção da banda desenhada mundial,
tal como ocorre em relação a muitos dos outros títulos reunidos.
Nota final: Agradecimentos a José de Freitas, pelo envio das imagens das capas.
Raramente ou nunca nos referimos aos preços dos livros, pois eles não pode ser factor de uma leitura crítica, mas se se pensar bem no assunto, o preço individual de cada um destes livros, que ficará disponível durante algum tempo primeiro através do jornal Público, depois nas livrarias, é uma benesse à construção de uma atenta compreensão da banda desenhada, como indicado no texto anterior.
Raramente ou nunca nos referimos aos preços dos livros, pois eles não pode ser factor de uma leitura crítica, mas se se pensar bem no assunto, o preço individual de cada um destes livros, que ficará disponível durante algum tempo primeiro através do jornal Público, depois nas livrarias, é uma benesse à construção de uma atenta compreensão da banda desenhada, como indicado no texto anterior.
Uma pequena correção. Não existe "Love Harbour Hotel", deve estar a pensar na obra Hotel Harbour View, que penso ter sido a primeira BD do Taniguchi publicada no ocidente, e confundido com Love Hotel de Benoît Peeters e Frédéric Boilet.
ResponderEliminarOlá Pedro. Belo texto! só duas correcções.
ResponderEliminarA Louca... não é a segunda colaboração entre Moebius e Jodorowsky. É a terceira. Esqueceste-te do Les Yeux du Chat.
O Sharaz-De foi publicado na revista Alter Alter, não na Linus.
Abraço
Oi outra vez,
ResponderEliminarSó pra dizer que esta colecção, se não fora também por todos os outros méritos, já valeria pela presença do "Mort Cinder" do Oesterheld. Alguns autores de literatura ficaram famosos na história por desafiarem regimes ditatoriais escrevendo romances que defendem o direito à igualdade e à dignidade humanas. Oesterheld fê-lo pela e para a banda desenhada e morreu por isso. Merece que o conheçamos por esse feito e que o reconheçamos também pela enorme qualidade da sua escrita. Diz quem o lê pela primeira vez que a partir daí nunca mais deixa de sentir a presença do "Eternauta". É mesmo assim, há sempre a presença de um espírito em Oesterheld e Mort Cinder é o prolongamento desse espírito de combate e de sobrevivência humano. Como já veio escrito numa edição estrangeira dessa "novela gráfica", este é mais um grande exemplo daquilo a que se referia Italo Calvino quando afirmava que os clássicos são obras que nunca acabam de dizer o que têm a dizer.
Não compreendo a razão do Mort Cinder ser lançado um dia antes do último livro desta colecção e de vir divulgado no jornal "Público" que "parte da história" não tem de ser adquirida juntamente com a compra do jornal. No entanto, fiquei mais aliviado por vires aqui dizer que a edição que vai sair é completa e restaurada. O resto deve ter alguma explicação...
Abraço e obrigado.
José
João Miguel,
ResponderEliminarJá não é a primeira vez que indico este título. Cá para mim, ando a misturar memórias de um mês passado sob nuvens de ópio na Tailândia como título do Taniguchi... Vou já corrigir!
E por que estranha razão me esqueci do "Olhos de gato", que tanto prezo? Essa foi uma distracção mais básica, mas a outra... ui, se fosse falar. Era um blog mais lido!
Caro José,
Isso dava pano para mangas. Sendo um fã do Oesterheld - e tendo no João Miguel Lameiras e no Domingos Isabelinho dois leitores e investigadores intensos desse autor em Portugal -, tenho algumas reservas em criar essa linha de causalidade directa. O Oesterheld foi "castigado" politicamente pelo seu envolvimento directo em movimentos de esquerda no seu país (os Montaneros),através das suas filhas. É verdade que o "Che" não ajudaria ao CV sob a ditadura, mas querer transformá-lo num "mártir da bd" é um desserviço à sua vida, ao envolvimento político efectivo, e até mesmo uma construção desnecessária ao mito. Mas é um tema apaixonante, sem dúvida... A continuar?
Abraços,
pedro
Relativamente ao envolvimento político de autores de BD durante a vigência de regimes fascistas, talvez a minha intuição se alimento do mito. Só costumo ter reservas em relação ao "período nazi" do "Hergè do Congo" e dou de barato que somos seres humanos que por vezes não estaremos à altura moral dos heróis que criamos e do grande trabalho que desenvolvemos, apesar desse desnível. Nem todos os autores podem produzir heróis à sua imagem como o Hugo Pratt. No caso do Oesterheld temos um ser humano que vivia a bd bem antes de se envolver politicamente contra o regime militar argentino. Não é um caso diferente de muitos miúdos que começam desde sempre a ter como modelos os heróis das histórias aos quadradinhos e que prolongam esses valores de justiça e de defesa dos mais fracos muito além na sua vida adulta. Esse saudável complexo messiânico, quero crer, resulta da paixão pela BD que muitas vezes conseguimos identificar em certo tipo de autores, que sem dúvida é o caso do Oesterheld. Como modesto apreciador de BD também o sinto e muitas vezes sou impelido por ele em batalhas contra moinhos de vento. Oesterheld, como um Cervantes, a seu modo leu e escreveu sobre contos de cavalaria e também conduziu a sua vida debaixo desses princípios. Não consegues ver o nexo de causalidade entre "a vida e os tempos de Oesterheld" e o facto dele ser um grande autor de bd? Pois eu do outro lado também não consigo encontrar o "nexo de casualidade" :-). Da mesma forma eu interpreto uma pessoa como tu quando penso nas horas que gastarás de dedicação a este blogue (principalmente) e a todos os outros suportes para divulgares a bd junto dos seres humanos comuns :-). Complexo de super-herói? Bem-hajas por isso.
ResponderEliminarObrigado, Abraço,
José
O único elo de causalidade que colocaria em causa é o da lógica, "foi por causa da bd x que Oesterheld foi 'desaparecido'". Isso é pura e simplesmente falso. Não ponho em causa, de forma alguma, que os autores, quando são movidos por seja que causa social for, e a expressam nas suas obras criadas, e o humanismo profundo, a empatia pelo sofrimento humano, a compreensão de que numa guerra todo e qualquer ser humano pode ser um cobarde, um herói, um carrasco, um santo, enfim, um ser humano, está em todas as páginas. Terá sido isso o que o impeliu a lutar contra o fascismo? Poderíamos dizer que ele sempre o fizera, e a banda desenhada não é senão uma outra frente dessa batalha. Aí concordo.
ResponderEliminarE os mitos são também necessários. Pelos vistos, acreditas no de Hugo Pratt. Eu, por exemplo, gosto do de Charles Schulz, morrendo com a sua obra. Quanto ao "collabo" Georges Rémi... ih, não vamos abrir a tampa!
Pedro