7 de abril de 2015

Inside the Raibow. Julia Rothenstein e Olga Budasjevskaya, eds. (Red Stone Press)

Aos poucos, o edifício para uma mais completa e diversificada história da ilustração vai sendo construída. Tal como a banda desenhada até recente data, esta outra disciplina artística, inclusive aquela que está relacionada com a sua prestação mais pessoal, expressiva, artística, associada à literatura, mormente a infantil, era votada a um desconhecimento quase imediato na geração seguinte, salvo algumas referências incontornáveis graças ao baptismo de um prémio, a permanência de um título, ou a fundação de um estilo. Todavia, não se tornavam referências correntes como ocorre nas “artes maiores”. Duvidamos que estes gestos singulares possam alterar essa tendência e presença, como é óbvio, mas pelo menos vão contribuindo a dissipar as ausências. (Mais) 

O sub-título deste projecto é bastante explícito quer sobre o seu objecto de estudo quer à atitude política que o informa: Russian Children's Literature 1920-1935: Beautiful Books, Terrible Times. Em termos cronológicos, portanto, temos aqui uma colecção de livros ilustrados infantis criados na primeira fase da Revolução Soviética, desde os seus primeiros anos, cheios de alguma esperança e liberdade de criação, até à imposição do pensamento único estalinista (se bem que esta expressão de “pensamento único” teria bastas aplicações históricas, e não nos livraríamos dela nos nossos próprios dias), que encurtaria os horizontes de experimentação. Em termos políticos, evidentemente, temos um estudo sobre a forma como o trabalhos dos escritores e artistas (esta última palavra deverá abarcar as áreas do desenho, da pintura, da composição, da engenharia de papel, do design, da edição, etc., e os escritores não estão alheios a essas tarefas) espelhava a ideologia preconizada pela Revolução, mas como essas mesmas obras contribuíam para a sua divulgação, estruturação, circulação, inflexão e até mesmo subjectivação, se tivermos em conta que a sua aplicabilidade e leitura pelos leitores mais jovens os ajudava entrosar esses princípios.

Parte dos instrumentos recorrentes na leitura destes objectos é a comparação com alguns dos movimentos mais importantes das artes visuais na modernidade, mesmo que eles não tenham tido expressão histórica na Rússia, como é o caso do Cubismo ou do Pós-Impressionismo. No entanto, é quando nos viramos para os princípios efectivos do Construtivismo e, mais tarde, do Suprematismo, que encontramos traduções ou mesmo “aplicações” desses princípios nos livros infantis, não fossem os seus criadores os mesmos. Pois encontraremos aqui nomes importantes na criação cultural, visual, literária, dramática, etc., tais como os de Mayakovski, El Lissitzky, Daniil Kharms, Ossip Mandelstam, Samuil Marshak, e aquele que viria a sintetizar essas lições da melhor maneira cabalizadas para este território, Vladimir Lebedev. Além desses nomes, também encontraremos ou aprenderemos sobre outros enormes responsáveis pela emergência de uma “escola” muito própria, como Kornei Chukovsy, Alexei Laptev, Boris Ermolenko, Lidia Popova, Mikhail Tsekhanovsky, entre muitos outros.

Algumas editoras contemporâneas, sobretudo francesas, têm disponibilizado alguns dos livros que são alvo desta antologia e estudo em edições facsimiladas, como os de Lebedev (havíamos falado de um desses títulos) mas este volume disponibiliza um contexto mais completo, informado, já para não falar de muitos mais exemplos que não seriam fáceis de conhecer através de obras mais generalistas. O livro é feito a partir de toda uma série de colecções, sobretudo privadas, e transforma-se assim num excelente repositório para este magnífico capítulo na história dos livros infantis ilustrados, ou mesmo da história da cultura visual em termos mais gerais.

O volume está dividido em 10 capítulos, com títulos próprios, agregando no seu interior pequenas “famílias temáticas”, que julgamos serem compreensíveis sobre as matérias abordadas ou funções desejadas pelos livros: “Little Comrades”, “What is good and what is bad”, “How the world works”, “What grown-ups do”, “On the move”, “Meet the remarkable animals”, “Tall tales”, “Let's play!”, “Let's study, study and study” e “Hide and seek”. Mas cada um desses capítulos pode mostrar um livro que contribuíra para a propaganda comunista em vista à educação do povo como de reformulações dos mais antigos mitos populares russos (o pássaro de fogo, a Baba Yaga), da mais livre poesia a abordagens pedagógicas e enciclopédicas. Nalguns casos, temos excertos significativos das obras, em tradução, noutros spreads generosos mostrando páginas a fio de um só título. Mas as mais das vezes cria-se um apetite, voraz, para ter acesso aos livros inteiros.

Sem querer reduzir as dezenas de livros aqui mostrados a um só princípio, há porém um “ar de família” que emerge da sua comparação. As imagens das personagens, dos objectos, das paisagens, usualmente surgem reduzidas aos seus contornos geométricos basilares, em cores vívidas e isoladas, flutuando sobre páginas brancas, de margens generosas e que permitem ao desenho respirar. A presença do texto – em maravilhosas e, ainda que austeras, letras cirílicas – encontra-se sempre numa fortíssima dimensão material e espacial. Isto é um exercício de redução, claro está, mas são então os ingredientes que contamos livro atrás de livro.

Além disso, este volume contém ainda textos introdutórios, assim como excertos de discursos políticos (de Lenine, de Estaline), ou citações de “leitores” destas obras à época (de André Gide, ou Walter Benjamin, por exemplo, tendo sido este último um grande colecionador e amador de livros ilustrados), de forma a criar uma textura mais densa e mais sólida. Acrescentem-se, ao início, algumas breves palavras do escritor Philip Pulman (da famosa série His Dark Materials) sobre os livros e o seu fascínio por estes objectos, e um ensaio de Arkady Ippolitov, historiador de arte, sobre a brutal contextualização do brevíssimo sonho bolchevique e o seu desmoronamento contra um novo regime de burocratização e violência de estado. “[A] versão de infância do velho mundo tinha sido apagada, e as personagens principais da terra da imaginação pré-revolucionária exterminados.” A sua explicação do contexto social e da emergência de milhões de bezprizorniki, ou “crianças negligenciadas” pelos crimes perpetrados pelo Estado, demonstram que, se temos belíssimos objectos dignos da nossa admiração quer pelas suas conquistas estéticas quer pelo idealismo aventado, nascem de uma realidade terrível.

Até determinado momento, o projecto da editora revolucionária Raduga (“Arco-Íris”, daí o título do presente livro), fundada por Chukovsy e “alimentada” por Lebedev e Marshak, teve um papel preponderante nas letras infantis russas, mas o Partido, sob as orientações de Estaline, mudaria de ideias, e obrigá-la-ia, assim como a outras editoras, e fechar as portas, quando se decidiu pela criação de um monopólio estatal nessa criação. Este volume abre-nos as páginas então desse breve capítulo da história. Como escreveu o poeta Ossip Madelstam, citado na introdução, “Apenas na Rússia se respeita a poesia: ela mata pessoas. Haverá outro lugar onde a poesia é um motivo comum para o assassinato?”

A sobrevivência desses brevíssimos arco-íris, todavia, mantém-se viva nos livros em si, e neste agora.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

5 comentários:

  1. Olá Pedro,

    Vá lá, ainda existe um país diferente dos outros todos onde a literatura ilustrada, mesmo que infantil, pode servir de motivo comum para um assassinato. Talvez na Argentina também ;-). Ironias à parte, não é com cinismo que se pode olhar para a obra que apresentas. Belíssimo texto e faz desejar, não fora o subtítulo, poder estar presente nos tempos da criação dessas obras. Não haverá nada de mais estimulante, talvez, para um apreciador de uma forma de arte que estar pressente no momento em que algo seminal é lançado num meio? As imagens que nos apresentas facilmente nos transportam para esse tempo e fazem-nos recordar os momentos em que conhecemos uma novo livro,um novo artista, uma nova maneira de fazer a coisa (palavra maravilhosa que permite todas as formas de liberdade criativa :-)). Infelizmente essa sensação é só retrospectiva, mas por breves instantes fará certamente soltar a qualquer um de nós um eureka bedéfilo. MCKAY! Ou SHULZ! Ou WARE (para os mais novos)!
    Abraço e Obrigado.
    José

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  2. É muito certo, José Sá, e apenas farei dois comentários.
    1. muitas vezes é uma pena ver pessoas a deslatar ("estender assunto com muita lata") sobre génios incompreendidos na sua época e como essas gerações eram umas avantesmas por isso; todavia, essas mesmas pessoas poderão não ter sensibilidade para procurar e notar nos que estão a fazer trabalho digno de grande atenção NA SUA contemporaneidade;
    2. ou como se distendem em rasgados elogios sobre a sua obra, mas apenas quando ela surge num formato mais comercial (vulgo, "livro de capa dura"), ao passo que quando apareciam em publicações mais baratuchas, era votá-los ao silêncio senão mesmo desprezo (um "hipster" passa a não gostar quando atingem esse grau de visibilidade);
    3. há pouco, falava com um amigo e colega de trabalho, mais de dez anos mais novo e falávamos sobre o Ware. Eu disse algo como, "Deves lembrar-te quando saiu o primeiro Acme Novelty Library [em 1993], que encomendei em Lisboa. Tu também o compraste nessa altura?" Resposta, "Não,eu tinha 8 anos." Resultado: mais uma ruga na testa!
    Pedro

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  3. Bem... não tenho qualquer pretensão de estar fora do tipo de pessoas que desenhas no comentário 1 e 2. Sinceramente, já te disse algumas vezes que admiro o trabalho do crítico dentro dos parâmetros em que o Arthur Danto definia o "fim da arte". Pessoas como tu são muito importantes, tendo o talento de definir "o que fica do que passa", fabricam o tipo de pessoas, muito necessárias também, que ficam com o passado. Imagina se não fosse assim, mormente nos dias de hoje em que é tão difícil estar atento perante a variedade esmagadora à nossa disposição. Por alguma coisa não me esqueço de dizer obrigado no final dos comentários. Apropriando-me dos versos de John Donne, não penses mal dos "deslatores", eles foram criados por ti :-)
    José

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  4. Ooops, não me estava a referir a ti como "deslator" nem a mim como "árbitro" do que ficará, mesmo que tente na medida do possível de prestar atenção de facto a trabalhos que podem surgir em circuitos menores e dar-lhes tanta atenção quanto os "consagrados". E há inúmeros casos de autores e/ou obras que descobri bem tarde (não falo de uma questão histórica, claro, mas do que "passou ao lado").
    Não sei, porém, se gostaria de ter conhecido pessoalmente o Lebedev, se isso significava ir conhecer mais tarde a Sibéria...
    Pedro

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  5. Nunca interpretaria dessa forma as tuas palavras, já leio as tuas coisas há um tempito suficiente para perceber que és um homem da guerra no debate (e aparentemente invulnerável;-)), mas da paz no sentimento face ao outro. Estava a tentar ser sincero no que toca à dívida que pessoas como eu têm em relação a pessoas como tu. Como seres interdependentes que somos, não me esqueci de reclamar da dívida que os críticos têm para com quem dá sentido ao seu trabalho :-). Quanto ao Lebedev, eram os mesmos receios que eu partilhava quando me referi ao subtítulo "Terrible Times" :-(
    Abraço
    José

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