Não deixa de ser “natural” que a Kingpin tenha encontrado
neste projecto a continuação de uma linha editorial que procura expandir. Não
havendo dúvida de que o critério eleitor nessa integração tenha sido a
prestação gráfica da autora italiana, acreditamos que terá a ver com certas
afinidades estilísticas com Tony Sandoval, cujo recente Nocturno também foi publicado há recente pela mesma casa, e cuja
colaboração também trouxe a lume Les
echos invisibles (que imaginamos ser desejado pela editora). O que une La
Padula e Sandoval é múltiplo: uma linha de contorno semi-livre e gestual, uma
figuração entre o anatómico e o cute-grotesco dos cabeçudos do século XVIII,
que já havíamos debatido a propósito de Phoenix, e uma aplicação de cores
suaves mas exactas. La Padula, todavia, parece herdar outras características
ligeiramente diferentes. Ainda que haja igualmente uma preocupação pelo
acrescentar de pormenores nos cenários cheios, parece-nos ser mais devedora de
um Nicolas de Crécy, ainda que sem atingir a mesma intensidade, verve e
alucinação. Mas os cenários urbanos, abertos, imensos, distorcidos de acordo
com boas práticas visuais, fazem-nos lembrar as vinhetas cheias de Le Bibendum celeste ou Journal d’un fantôme. É possível que tal
comparação seja desequilibrada, em detrimento para com Padula, mas há um mesmo
esforço, desejo e prestação. (Mais)
30 de maio de 2017
24 de maio de 2017
Colaboração no The Comics Alternative: entrevista a Maaheen Ahmed.
Por ocasião da leitura de Openness of Comics. Generating Meaning within Flexible Structures, entrevistámos a sua autora, Maaheen Ahmed, para o site The Comics Alternative. A introdução contém algumas ideias breves em torno do volume, e seremos breves aqui na sua descrição.
Em termos conceptuais, este livro vem trazer um contributo substancial, empregando a noção de "abertura" que havia sido delineada e teorizada por Umberto Eco, para a banda desenhada. Essa noção tem sofrido alguns abusos ao longo dos anos em certas abordagens que a empregam e aplicam, ou como o próprio Eco diria, escolhos da sobreinterpretação. Se nos for possível apresentar uma ideia simplificada, trata-se tão-somente do leque de interpretações possíveis, mas igualmente as suas limitações configuradoras, ofertados por um texto determinado graças a toda uma série de elementos presentes nesse próprio texto. Esses elementos apresentar-se-ão de uma forma "incompleta", exigindo uma participação activa da parte do leitor-espectador, o qual, completando o texto, colocá-lo-á numa forma mais finalizada no seu próprio acto individual de leitura (observação, experiência, interpretação, etc.). Não se trata, de forma alguma, de poder "interpretar o que se quer", num quase total abandono à total e infinita relatividade, que levaria a um esvaziamento da obra, na verdade, mas tampouco uma libertação da materialidade dessa mesma obra.
Isso levará então à distinção entre alguns textos mais fechados, menos flexíveis, que não oferecem espaço para uma completação da parte do leitor, e outras mais abertas. Neste ponto, caberá a quem argumentar o tentar descobrir como é que esses elementos funcionariam para que se pudesse cumprir tal distinção. Ora, é precisamente esse o papel que Ahmed cumpre no seu livro, analisando um corpus impressionante de banda desenhada, sobretudo no que diz respeito à sua diversidade de origens geográficas, anos de produção, géneros, estilos e até mesmo campos culturais. Encontraremos alguns "clássicos" europeus, como A Balada do Mar Salgado e a obra de Tardi, mas igualmente trabalhos de alguns dos autores contemporâneos finlandeses, como Marko Turunen, e títulos do mainstream de super-heróis norte-americanos. Esta diversidade é relativamente inédita em livros académicos em língua inglesa, revelando Ahmed como não apenas uma leitora transversal (muitos o são) mas uma investigadora interessada mais na operacionalidade do conceito do que na estruturação social e estratificada da banda desenhada em termos de produção (uma das suas limitações enquanto discurso cultural, inclusive académico).
O livro poderá, aqui e ali, sofrer de uma repetição de estratégias, uma vez que apesar da divisão de capítulos por género (aventura, ficção científica, noir, etc.), o argumentário regressa sempre ao mesmo ponto. Todavia, fica muito claro o que a autora pretende deixar nas mentes dos seus leitores, de forma a que estes possam, a partir daí, re-empregar esta noção. As leituras de Ahmed são, as mais das vezes, curtas, mas incisivas e iluminadoras, apenas diminuídas por pequenos deslizes factuais ou a ausência de um quadro mais sólido das referências do seu contexto específico (um preço a pagar pela economia de uma tão incrível variedade).
Poderão ler a entrevista aqui.
Em termos conceptuais, este livro vem trazer um contributo substancial, empregando a noção de "abertura" que havia sido delineada e teorizada por Umberto Eco, para a banda desenhada. Essa noção tem sofrido alguns abusos ao longo dos anos em certas abordagens que a empregam e aplicam, ou como o próprio Eco diria, escolhos da sobreinterpretação. Se nos for possível apresentar uma ideia simplificada, trata-se tão-somente do leque de interpretações possíveis, mas igualmente as suas limitações configuradoras, ofertados por um texto determinado graças a toda uma série de elementos presentes nesse próprio texto. Esses elementos apresentar-se-ão de uma forma "incompleta", exigindo uma participação activa da parte do leitor-espectador, o qual, completando o texto, colocá-lo-á numa forma mais finalizada no seu próprio acto individual de leitura (observação, experiência, interpretação, etc.). Não se trata, de forma alguma, de poder "interpretar o que se quer", num quase total abandono à total e infinita relatividade, que levaria a um esvaziamento da obra, na verdade, mas tampouco uma libertação da materialidade dessa mesma obra.
Isso levará então à distinção entre alguns textos mais fechados, menos flexíveis, que não oferecem espaço para uma completação da parte do leitor, e outras mais abertas. Neste ponto, caberá a quem argumentar o tentar descobrir como é que esses elementos funcionariam para que se pudesse cumprir tal distinção. Ora, é precisamente esse o papel que Ahmed cumpre no seu livro, analisando um corpus impressionante de banda desenhada, sobretudo no que diz respeito à sua diversidade de origens geográficas, anos de produção, géneros, estilos e até mesmo campos culturais. Encontraremos alguns "clássicos" europeus, como A Balada do Mar Salgado e a obra de Tardi, mas igualmente trabalhos de alguns dos autores contemporâneos finlandeses, como Marko Turunen, e títulos do mainstream de super-heróis norte-americanos. Esta diversidade é relativamente inédita em livros académicos em língua inglesa, revelando Ahmed como não apenas uma leitora transversal (muitos o são) mas uma investigadora interessada mais na operacionalidade do conceito do que na estruturação social e estratificada da banda desenhada em termos de produção (uma das suas limitações enquanto discurso cultural, inclusive académico).
O livro poderá, aqui e ali, sofrer de uma repetição de estratégias, uma vez que apesar da divisão de capítulos por género (aventura, ficção científica, noir, etc.), o argumentário regressa sempre ao mesmo ponto. Todavia, fica muito claro o que a autora pretende deixar nas mentes dos seus leitores, de forma a que estes possam, a partir daí, re-empregar esta noção. As leituras de Ahmed são, as mais das vezes, curtas, mas incisivas e iluminadoras, apenas diminuídas por pequenos deslizes factuais ou a ausência de um quadro mais sólido das referências do seu contexto específico (um preço a pagar pela economia de uma tão incrível variedade).
Poderão ler a entrevista aqui.
23 de maio de 2017
Mazzeru. Jules Stromboni (Casterman)
De acordo com uma crença da cultura autóctone da Córsega, os
mazzeri (pl., singular mazzeru) são pessoas que têm um dom
profético da morte de alguém da sua comunidade, por via de sonhos, o que remete
desde logo a práticas provavelmente muito antigas e irmanáveis com algumas das
estruturações experienciais dos (vários tipos de) xamanismos. Nesses sonhos, as
pessoas imaginam-se caçando animais da natureza circundante – javalis, raposas,
coelhos, cabras, etc. -, acto que revelaria o rosto daquele que depois morrerá.
Como se poderá imaginar, crendo nestas possibilidades, a pessoa a quem cabe
esta tarefa é tão integrada quando apartada da “normalidade” da sua sociedade. (Mais)
22 de maio de 2017
Aurora. Felipe Folgosi et al. (Instituto dos Quadradinhos)
É provável que estejamos a observar
um novo fôlego nas relações entre a banda desenhada brasileira e
portuguesa nos tempos correntes. Se durante algumas décadas essa
relação passava tão somente pela distribuição comercial de
publicações made in Brasil (de produções locais ou
norte-americanas, sobretudo), neste momento as acções desdobram-se
em exposições, autores publicados em Portugal ou títulos
brasileiros com uma recepção particular por cá. Não se poderá
falar ainda de um equilíbrio mútuo, mas essas relações estão com
efeito fortalecidas. Aurora parece ser mais um dos elementos
que contribui para esse cruzamento, dada a forma como a editora tem
procurado estabelecer contacto com agentes nacionais, inclusive este
mesmo espaço. (Mais)
19 de maio de 2017
Três Histórias Desenhadas. José de Almada Negreiros (Assírio & Alvim)
Este pequeno livro de bolso reúne as três mais longas
histórias de banda desenhada que Almada criou para o jornal O Sempre Fixe,
todas elas datando do ano de 1926, também as maiores que ele alguma vez criou
(se bem que não as esgotam). São os seus títulos “Era uma vez...”, “O sonho de
Pechalim” e “A menina serpente”. A edição em causa é criada a partir dos
desenhos originais “que sobreviveram presentes no espólio do artista”, nas
palavras de Mariana Pinto dos Santos, na nota final, e descritos por Sara
Afonso Ferreira, na introdução, como estando num “caderno composto pelo autor
que colou, em cada folha, um desenho numerado”. São essas circunstâncias
físicas e apartadas do seu contexto original que permitem às editoras publicar
as histórias com um desenho por página, o que reformula, de certa maneira,
estas narrativas. Publicado no quadro da magnífica exposição patente na
Fundação Calouste Gulbenkian ao escrever estas linhas, com curadoria de Mariana
Pinto dos Santos e Ana Vasconcelos, a sua circulação pode ser vista, até certo
ponto, como uma maneira de dar corpo às extensões polivalentes e
multidisciplinares desta “revisitação” da obra de Almada, assim como a uma
concretização física das especificidades desta obra em particular. Ela emergiu
para existir como objecto reproduzido, dado à estampa. (Mais)
17 de maio de 2017
20/MAIO: 17h: "Da Iconofagia", encontro com Hervé Di Rosa, na NLF.
Car@s amig@s, no próximo Sábado, dia 20 de Maio, na Nouvelle Librairie Française, em Lisboa, decorrerá uma conversa entre o artista Hervé Di Rosa, figura fundamental de um certo "regresso à figuração" nos anos 1980 em França, e cultor da mais diversa produção de imagens, e este vosso criado.
Estará patente uma pequena mas importante mostra bibliográfica e gráfica do autor, e a conversa rondará sobretudo as fronteiras diluídas pela sua arte entre territórios que muitos ainda forçam a estar separados.
Apareçam.
15 de maio de 2017
Martha & Alan. Emmanuel Guibert (L’Association).
Esta
autobiografia tecida por um outro é um projecto notável. Uma vez
que havíamos dedicado algum tempo ao debate do que significa em
termos culturais este gesto de Guibert, o de criar vários livros
“d'aprés les souvenirs d'Alan Ingram Cope”, em que a voz está
na primeira pessoa mas toda a sua estruturação e mediação é
feita por um “terceiro” (uma das palavras associadas à ideia de
“testemunha” em termos etimológicos), remetemos às notas sobre
o último volume de La guerre d'Alan e L'enfance d'Alan
para compreender o pasto de onde emerge este novo livro. Todavia,
Martha & Alan é uma criatura bem distinta, por questões
formais, textuais e estilísticas. (Mais)
13 de maio de 2017
Sticks Angelica, Folk Hero. Michael DeForge (Koyama)
Pensamos que este é o projecto narrativo mais longo do
autor, se bem que ele não se apresente com uma estrutura tipificada de livro. Afinal
de contas, trata-se de uma tira semanal (irregular, porém) publicada online ao longo de quase um ano (e ainda
disponível aqui). E se existe uma história central unificada e quase-coerente,
ao mesmo tempo existem consideráveis desvios, ”excreções” ou alterações do
ponto de vista que permitem expandir a perspectiva sobre as situações graças a
outras personagens que não a protagonista, Sticks Angelica, ou desarrumar a
organização temporal. Seja como for, a forma como a “história” é fechada, com
uma prolepse já depois da morte da personagem, torna todo o material numa
unidade fechada e coesa. (Mais)
12 de maio de 2017
Les têtards. Pascal Matthey (L’employé du moi)
Ao olharmos agora para o conjunto de alguns dos seus livros,
compreendemos que Pascal Matthey tem na autobiografia uma das suas preocupações
centrais. Este pequeno volume vem na sequência de Le verre de lait, Pascal est enfoncé, do qual falámos largamente aqui, de Du shimmy dans la vision, e de outras pequenas peças espalhadas
pelas mais diversas antologias. Conforme o que já havíamos discutido a
propósito desse livro anterior, a equação entre autobiografia, auto-ficção,
desvio autobiográfico, versão, etc. é algo elástica, e é tão necessária na sua
categorização ou análise quanto supérflua na sua leitura. Depende, portanto, da
escala de atenção. (Mais)
3 de maio de 2017
Heavy Metal, l'autre Métal Hurlant. Nicolas Labarre (Presses Universitaires de Bordeaux) & entrevista no The Comics Alternative.
Por ocasião da leitura deste livro, entrevistámos o seu autor, na nossa colaboração com The Comics Alternative. A entrevista está disponível aqui. Uma vez que nesse outro texto tecemos outras considerações e a própria entrevista sublinha aspectos do livro de Labarre, ficam aqui apenas alguns outros apontamentos complementares. O foco deste livro são os primeiros anos da revista norte-americana Heavy Metal (HM), no quadro da sua relação directa com a influente publicação francesa Métal Hurlant (MH). Com efeito, a HM nasceu como um projecto editorial afecto à plataforma que publicava a National Lampoon, até certo ponto uma herdeira mas igualmente desvio da Mad magazine, e que tinha como objectivo a divulgação desse material europeu nos Estados Unidos. Todavia, até hoje a HM é vista como uma versão deslavada, necessariamente inferior, da Métal Hurlant: menos experimental, menos influente, mais atreita a géneros de pouca intensidade criativa (ficção científica e high fantasy “clássicas”) e um claríssimo propósito machista, com as suas capas de pinups. Não é que essa imagem seja totalmente injusta, mas o grande objectivo de Labarre neste volume é corrigir a exatidão histórica das relações entre as revistas e uma mediascape mais alargada e, de certa forma, matizar o juízo sobre a revista americana, a qual criou “uma forma inédita nos Estados Unidos de negociar a articulação entre o underground e a banda desenhada de grande público” (207). (Mais)