1 de fevereiro de 2019

Estamos todas bien. Ana Penyas (Salamandra)


Vivemos num tempo em que, afortunadamente, se discutem muitas questões de representação e sub-representação sócio-cultural, em todas as dimensões da esfera pública, na qual se destaca, por razões óbvias, textos de cariz artístico e produções da cultural popular. Mas se existem cada vez mais discursos permeáveis e reequilibrados em relação a toda uma série de categorias e sub-culturas, a velhice continua a ser uma espécie de tabu.

Velhos são os trapos, como se costuma dizer, e parece que passado um determinado limita, as pessoas deixam de ter préstimo, como se a acumulação das suas experiências não fossem, só por si, uma muito provável fonte frutífera de aprendizagem aos que se seguem, sejam essas experiências felizes ou infelizes, de glória ou infortúnio, boas ou más. A falta de diálogo intergeracional é, na verdade, uma das dimensões que caracteriza o ensimesmamento actual nas identidades, estas reduzidas aos seus mais superficiais traços, sem quaisquer auto-interrogações, dúvidas ou gestos de aproximação a outras esferas. (Mais)

Estamos todas bien é um gesto particularmente simples, mas por isso mesmo revestido de uma importância quase extrema. Ana Penyas, neste seu primeiro livro de banda desenhada, decide contar um pouco da história das vidas das suas duas avós, entretecendo as suas rotinas contemporâneas com troços das suas memórias de infância, primeira maturidade, e mundos que foram vivendo ao longo das décadas. Organizado de uma forma fluida, em que navegamos por todas essas linhas temporais de maneira rítmica e com uma coerência muito próprias, o objectivo não é tanto criar comparações entre as avós, mesmo que as semelhanças ou os contrastes ocorram com naturalidade, mas antes dar a ver a própria atenção e vida partilhada com a autora.

A parte de leão, em retrospectiva, do livro, recai de facto sobre as vidas de Maruja e Herminia. A primeira atenção cabe à avó Maruja, cuja vida foi marcada por uma carestia significativa, marcada pelos problemas da pobreza e hierarquias sociais do seu tempo, a mancha da Guerra Civil, e os preconceitos tipificados dos pequenos pueblos em que habitou. O seu casamento com um médico local não lhe terá dado a liberdade – sobretudo de pensamento e alma – que almejava, e hoje encontra-se ainda presa a rotinas treinadas nessa era. Herminia provém de um mundo social ligeiramente mais aberto, mas não necessariamente com maior fortuna financeira e que acabava por se tornar um outro tipo de espartilho doméstico. Nesse aspecto, ambas avós são um exemplo normativo do papel das mulheres na Espanha do pós-guerra e até à contemporaneidade.


Os afazeres domésticos e o “controlo” que ambas designam para si nessa esfera, e que guardam com egoísmo junto aos seus filhos e netos, mesmo compreendendo que as suas capacidades físicas já não são as mesmas, são um claríssimo sinal do mundo que criaram para si mesmas, ou que lhes foi imposto pela força das circunstâncias sociais, e que agora vêem como último bastião das suas individualidades. As duas passeiam um pouco, têm encontros com outras amigas, e fazem comentários sobre o mundo todo, compreendam ou não aquilo que discutem. Ana, através das conversas e, claro, do que nos mostra como fruto das suas conversas, mas que surgem como situações pertencentes à “realidade”, vai escavando dessas superfícies para desejos mais profundos, ainda que seja o leitor a ter de compreender o seu valor, não apenas quando foram experienciados, como quando são expostos e como são perenes. Maruja terá o seu segredo na arte que fazia e vendia, de quadros de flores, e Hermínia no romantismo e sexo que viveu com o seu marido.

Com efeito, a própria autora surge de modo tangencial na narrativa para fazer uma confissão de arte, explicitamente, ainda que dita à sua avó Maruja, e não num mecanismo metatextual de se dirigir ao leitor. Numa conversa em que lhe querer escrever a história das suas avós, Maruja diz-lhe que devia antes escrever histórias de amor. Mas a neta diz-lhe que “histórias de amor há muitas, de avós é que não”.

Já a propósito de outros títulos, falámos de livros que lidam com protagonistas velhos, e como isso rompe com algumas expectativas dos géneros em que se inscrevem: Une Plume pour Clovis, Rugas, Living Will, El arte de volar, cada um a seu modo e suas intensidades apresentam-nos, a um só tempo, o cansaço sentido agora e a energia que se guarda nessas memórias, e como as segundas poderão fazer desaparecer o primeiro.

Abstendo-se de qualquer estrutura dramática, Estamos todas bien quer mostrar simples formas de felicidade nesta dinâmica de diálogo e recordações. O que não quer dizer que ler estas vidas não possa abrir espaço para discutir outros temas maiores, como a herança da opressão católica na sociedade espanhola, a duradoura sombra do franquismo (ainda hoje viva), a dificuldade em acompanhar as transformações culturais na isolação, os diálogos de surdo entre gerações, e até aspectos mais comezinhos como a incompreensão da trabalheira que dá “tratar da casa” por quem não o faz... Ainda assim, apesar dessas possíveis aberturas, o livro regressa sempre a um nó caseiro, pequeno, imediato, e suficientemente feliz. Mesmo a frase do título, compreendida no fecho, tem uma nota melancólica, mas que não nos deveria preocupar.


De formato oblongo, com composições simples, e desenhos sólidos que optam ora por abordagens minimais e estilizadas, ora presenças fortes de texturas gráficas, padronizações, e colagens de materiais como jornais, ilustrações, fotos, tecidos, este livro participará mais de uma combinação de estratégias usualmente advindas do mundo da ilustração, de onde a autora vem, do que das convenções mais classicizantes, realistas e comerciais da banda desenhada. A escolha de duas cores dominantes para cada avó, e a maneira como uma dá lugar à outra, demonstra a compreensão da artista em que a construção do sentido não se faz, de modo algum, apenas através das formas verbais ou mesmo a figuração. A assinatura de Penyas, caracterizada acima de tudo pela solidez e energia da figuração a lápis e depois a suavidade da construção do mundo em seu torno, aproxima-la-á de toda uma série de outras autoras que trabalham caminhos similares, de Renée French a Sílvia Rodrigues.
Nota final: agradecimentos a M.T., pelo empréstimo do livro.

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