Forçosamente como no caso de Sandman: Overture, a leitura de Living Will terá de se pautar pela sua edição parcelar. Sendo este apenas o primeiro de sete capítulos, numa publicação de dezasseis páginas (portanto um caderno duplo somente), imaginamos que haverá um ritmo relativamente lento da sua estruturação, mas isso permitir-lhe-á também uma tranquila entrada na vida dos leitores que se entregarem à sua construção.
A escolha da língua inglesa é uma estratégia que não importa pôr em causa em si mesma, sendo judicioso e compreensível o desejo de chegar a um público mais alargado que as poucas centenas de leitores potenciais no nosso país. O único senão terá que ver com o facto de que existem determinados tipos de jogos de linguagem que apenas conseguimos escavar no nosso próprio idioma, na nossa língua-mãe (que poderão ser mais do que uma, é certo), e que existem sempre limites ao uso das línguas estrangeiras, limites que expõem uma navegação menos própria entre os seus vários registos e tons, a ausência do quotidiano aturado nelas, uma dimensão que escapa à mera ideia da comunicação. Por isso Wiigenstein, em Culture and Value, fala de um “disgust” que sente em relação ao Esperanto, por ser uma língua fria, que apenas pode “brincar” às línguas e não possui, não permite, não respira as associações “naturais” que uma língua pode ter. Se é cedo para compreendermos se há um ritmo vivo do inglês para além da comunicação entre as personagens, o título estipula logo os espaços em que se criam os profundos pontos fortes do projecto.
Em inglês, “will” tem a sua raiz etimológica imediata no antigo inglês *willan, que significa “desejo”, “vontade”, que derivará por sua vez da raiz indo-europeia *wel-, relacionado com “preferência” ou “escolha”. algo, portanto, que nasce de uma tomada de consciência de si mesmo, dos seus limites e dos objectivos que estão para além deles. O seu uso para se referir a um documento jurídico específico data do século XIV. É de facto incrível que uma sociedade tenha desenvolvido um mecanismo que possibilita a uma pessoa, enquanto viva (living), possa exprimir o seu desejo (will) sobre a suas propriedades depois da sua morte. O uso da palavra “propriedades” não é inocente, da nossa parte, e pretende apontar à sua própria ambivalência. Se no sentido contextual imediato significará todas aquelas possessões e objectos que pertenciam ao vivo, também poderiam significar as qualidades intrínsecas da própria pessoa, a sua natureza, o seu carácter.
Living Will é a história de um velho, Will (um terceiro sentido para a palavra, então), que se apercebe da inexorável proximidade da morte e, no momento em que é tocado pelas suas raias, resolve dar início ao que adivinhamos ser uma pequena grande odisseia em que resolverá as pontas soltas do que lhe resta da sua vida. Adivinhamos também que cada número centrar-se-á numa dessas resoluções, e que elas lhe permitirão a um só tempo regressar a momentos anteriores da sua vida, mas também libertar-se da sua canga para poder partir mais leve. Assim, mais do que uma questão de “testamento” e disposição da riqueza material (um dos sentidos, primários, de will), o que Will pretenderá é um último, consciente, totalmente livre e por isso ambicioso acto da sua vontade: a disposição do seu próprio ser. Para além de um sentimento de sobrevivência e de procriação, que Will compreende, sem melodrama nem melancolia, mas uma paradoxal resignação jubilosa, já não estar ao seu alcance, a “vontade” estrutura-se nesses próximos desejos de coisas a resolver, assuntos por tratar, pontos por dar.
Neste primeiro episódio, André Oliveira e Joana Afonso criam os espaços primários do protagonista, e a pequena constelação de que parte. Tendo em conta a necessária celeridade com que os autores têm de trabalhar, vemos determinados signos de relações a surgirem de imediato, mesmo que merecessem um tratamento mais alargado - a sua proximidade, ainda que autónoma, dos proprietários do pub ou com o jovem médico, a picardia com os inquilinos ou senhorios. Aliás, o episódio da visita ao médico, até por estar em duas páginas autónomas (6 e 7) “entaladas” entre a chegada de Will à sua residência, parece desligar-se da cronologia do resto da diegese, mas poderíamos interpretar essa aparente falta de fluidez de encaixe com a própria percepção confusa do tempo do velho. De resto, existem mecanismos de travessia cronológica, como quando no final do episódio, a nossa (leitores) passagem de página, implica necessariamente uma travessia diagonal para o passado de Will.
Não é a primeira vez que o tema da velhice é abordado de modo maduro e que prefere centrar-se naquele cliché a que se chama “escala individual”, em vez de grandes princípios generalistas que apenas tocariam outros clichés. Talvez no cômputo geral, Living Will possa ser pensado em conjunto com Rugas, El arte de volar, Une plume pour Clovis. É cedo para o afirmar, não é cedo para o imaginar ou mesmo desejar. Se há necessariamente uma perspectiva criada e apresentada por dois autores jovens, o argumentista e a artista, os autores procuram ainda assim compreender em parte a perspectiva da experiência de um homem de mais de 80 anos, até pela sua dimensão física. A página que mostra a queda, rápida e curta, à porta do pub, mas que se apresenta numa metáfora de queda tremenda, ou o sincopado e lento movimento de se ajoelhar junto a uma cómoda demonstrando o peso da sua história, são apenas duas imagens que revelam essa perspectiva. A mala de recordações, de papéis e fotos guardadas, poderá dar a entender que há um peso particular do passado, mas todas essas peças são pistas afinal para o imediato futuro de Will.
Joana Afonso não se desvia do registo de O Baile, no sentido da sua abordagem “abonecada”, que na verdade é mais apropriada a géneros com humor ou de explorações narrativas mais convencionais, havendo algum desconcerto com a gravitas que se pretenderá explorar neste projecto (sobretudo pelas suas estratégias de figuração, estilizadas com recursos mais típicos de uma banda desenhada convencional ou de uma certa escola de animação). Afonso, neste seu registo, está próxima de um Rui Lacas (mais dos Asteroid Fighters do que Hän Solo), de Jim Mahfood, ou de Jamie Hewlett, menos no aspecto da figuração, do que a plasticidade dos corpos permitem imaginar. Não obstante, é essa mesma leveza que obrigará decerto os seus leitores a compreenderem a lentidão e atenção que são necessárias votar as estas páginas. A leitura, em termos físicos, pode ser rápida, até pela quantidade de vinhetas sem texto, ora interrompendo diálogos já de si esparsos, pensamentos na primeira pessoa já de si lacónicos, ora criando mesmo sequências que isolam os gestos e as reminiscências. Mas em termos de experiência, podem levar a vida toda.
Impresso a duas cores (preto e vários gradientes muito esbatidos de vermelho, quase castanhos ou sépias; cada número perseguirá uma cor, mas adiante interpretar-se-ão esses usos conforme os eventos retratados), num simples caderno, e sem grandes pirotecnias, Living Will apresenta-se como um projecto não apenas sustentável mas humilde e que pretende preencher um caminho apenas de passos percorridos, e não de promessas, de uma forma decidida muito similar à da própria personagem. Por ocasião do Festival de Beja chegar-nos-á o segundo capítulo.
Nota final: agradecimentos ao autor-editor, pela oferta da publicação. Site da plataforma editorial.
22 de novembro de 2013
Living Will no. 1. André Oliveira e Joana Afonso (Ave Rara)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:23 da manhã
Etiquetas: Portugal
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