Nota inicial: Por várias razões, sobretudo de tempo, não nos será possível fazer uma leitura mais alongada, mas também cuidada, dos seguintes títulos. Todos eles abordam questões bem diversas, ora mais específicas ora mais genéricas, funcionando ora como repositórios de saberes passíveis de abordagens propedêuticas ora como aprofundamentos de saberes altamente especializados, todos contribuindo para o território cada vez mais matizado dos Estudos de Banda Desenhada. Esperamos, porém, que mesmo estes breves “recados” possam colocar os leitores interessados na senda destes livros, e que com eles possam desenvolver os seus trabalhos.
Antílope 1. Victor Gaspári e Luis Arangurí, eds. Comecemos por um projecto brasileiro que sabemos já não ir ter continuidade nos mesmos moldes, por várias razões editoriais. No entanto, este gesto, que encontrará seguramente novo ciclo noutro título, pretende criar um espaço em papel para a emergência de uma massa crítica de abordagens à banda desenhada que ultrapassem a mera divulgação e discussão ou encómio epidérmico. Não se trata propriamente de uma revista apenas de crítica, já que mais de metade dela é ocupada por trabalhos originais de banda desenhada, pequenas histórias curtas por um grupo muito heterogéneo: o próprio editor, Gáspari, o português-moçambicano Rui Tenreiro, e outros autores que presumimos, se não jovens, pelo menos novos: Ana Carvalho, Fernanda Ancil, João Francisco, Nino Cais, Samuel Rodrigues, Dina Kelberman, Vítor Torao Akeda, Ruben Castillo, Lucas Anelli, Bruno Maron e Autodestrutível. Apesar de serem muito diferentes entre si, pode-se dizer que, de uma forma ou outra, todos partilham uma vontade de criarem trabalhos que explorem possibilidades liminares desta linguagem e não tanto caminhos já trilhados. Algumas das histórias seguem, na verdade, um tipo de humor mais normalizado (Akeda, Castillo, Maron), mas alguns optam mesmo por sequências ora anti-narrativas (Francisco), ora que exploram cruzamentos com outras disciplinas (Carvalho e Ancil), ora ainda buscam ritmos mais próximos do silêncio, dos não-ditos ou de calmias que permitem desvios de construções lineares (Anelli, Autodestrutível, Rodrigues e, até certo ponto, Gáspari).
Apesar disso, parece-nos que o mais digno de nota é a abertura de espaço para textos mais ou menos alargados de leitura ou pensamento sobre banda desenhada. As mais das vezes, as revistas contentam-se com abordagens elogiosas ou informativas, mas há aqui uma procura, mais incipiente do que totalmente conquistada, por um escavar mais decisivo. Dessa forma, há uma longuíssima e muito esclarecedora entrevista ao artista Pablo Holmberg, mas conhecido como Kioskerman, quase à The Comics Journal. O arquitecto-autor de HQ Daniloz deixa um longo “depoimento” sobre “o lugar do espaço”, os seus métodos de trabalho do desenho, o processo criativo, a captação dos espaços e seus objectos.
Em termos ensaísticos, os textos são curtos, mas apresentando “teses”, isto é, ideias, com as quais o leitor é interpelado, cabendo-lhe a inscrição ou rejeição. São três os textos dessa natureza. Está presente a investigadora Greice Schneider, uma das fundadoras de The Comics Grid, com um curto estudo (traduzido da sua versão original em inglês) sobre tipografia, silêncio e relação entre o texto impresso diegético e o texto propriamente dito na banda desenhada Hey, Wait… do norueguês Jason. Ciro I. Marcondes elabora uma espécie de prosa livre sobre alguns desenvolvimentos e passagens de mãos dadas entre o cinema e a banda desenhada, para depois regressar às potencialidades contemporâneas. Uma vez que não há espaço para grande desenvolvimento, deixa de lado alguns dados importantes da efectiva produção de ambas as artes, ficando-se antes por alguns princípios generalizados (“Se os quadrinhos são um dispositivo de representação no limite da imaginação…”, o que deixa de lado todas aquelas obras que, mesmo no humor, procuravam explorar algum “efeito do real”, de Töpffer a Richard Doyle a Christophe e Thomas Nast, ou todos os exercícios, digamos assim, da cinética pelo desenho, onde se arrolariam Steinlen, Busch, Bordalo Pinheiro, Frost), assim como não se entrega a um diálogo com autores cujas teorias sobre precisamente os pontos que aborda (Groensteen sobre a moldura, para começar). Finalmente, Maria Clara Carneiro, que esteve presente nas últimas CBDPT, apresenta um texto sobre crítica, e mais especificamente que crítica é possível nutrir em torno da BD/HQ, bebendo de fontes clássicas como Barthes e Groensteen, para depois criar um passeio sobre várias experiências e plataformas, sobretudo francófonas (seu campo de especialização, mas não só) , para sublinhar a importância de ultrapassar precisamente aquele estádio selvagem da doxa epidérmica na consideração destes textos: “a crítica sem argumentação só funciona para os que comungam das mesmas ideias”, o que é notório sobretudo nos meios cada vez mais confinados a um público reduzido e que partilha, desde logo, todas as afinidades possíveis. A consequência é explícita: “[essa crítica] não aponta para fora do texto, assim como não atrai novos leitores”, nem dela mesma nem dos textos primários.
Ora, estes textos, mesmo que seja ainda uma tentativa que terá de encontrar um novo e maior fôlego, tentará chegar a esse “fora”, que se deseja cada vez mais expandido.
Drawn and Dangerous: Italian Comics of the 1970s and 1980s. Simone Castaldi. (University Press of Mississippi). A primeira e imediata impressão que o título desta monografia gera é que parece nascer de uma antologia de entrevistas de Andrea Juno a toda uma constelação de artistas: Dangerous Drawings. As afinidades que se estabeleceriam entre essa constelação de autores e aqueles que são o alvo deste estudo encontram-se no facto de que se tratam de artistas a trabalhar no meio da banda desenhada num momento em que a produção era ainda maioritariamente dirigida a um público generalista, ora infanto-juvenil ora buscando entretenimento de uma espécie ou outra, e se encontrarem aqui gestos de dissensão a vários níveis: não apenas gráfica e narrativa, mas também no que dizia respeito à representação da sexualidade, violência, papéis políticos, e todos os clichés associados aos géneros mais normalizados. A autora, que opta por chamar a esta produção “banda desenhada adulta” [adult comics], não deixa de associar o material central do seu trabalho à produção imediatamente anterior, ao contexto que proporcionou o surgimento desta nova geração de autores, criando linhas entre a revista Linus, a sua companheira Alter, passando pelo fumetto nero/giallo (Diabolik, Kriminal, e todas as subsequentes imitações), assim como não deixa de procurar as ligações com um quadro mais alargado ainda, registando as influências dos underground comix, da Hara Kiri, da Métal Hurlant/Heavy Metal, e de artistas em particular. Aliás, todo o contexto histórico é pensado em conjunto com o mercado francês, com o qual o italiano tem muitas ligações, logo o fado de títulos como a Fluide Glacial e (A Suivre) é mencionado como especular da situação em Itália.
Se se assume que aquela primeira produção adulta tem pontos altos de maturidade literária, digamos assim, com Battaglia, Pratt, Crepax e Buzelli, e mesmo Altan, esta outra geração, pós-1977, com as novas editoras independentes, e a forma como se envolviam com outras plataformas mediáticas, artísticas e organizativas, traz para a linha da frente um aberto e franco combate político, de uma nova esquerda, dirigido, endereçado, e não somente em termos de representação, como a geração anterior. Podemos dizer que o centro deste estudo serão as revistas Cannibale e, depois, com maior sucesso, inclusive internacional, a Frigidaire, e o grupo Valvoline, com artistas tais como Liberatore, Scòzzari, Mattiolli, Tamburini, Mattotti e Kramsky, Igort, Sparagna e Andrea Pazienza. Mais importante, porém, é que este seu foco permite que se encaixe tudo numa maior compreensão da história sócio-política italiana nessas décadas problemáticas (“particularmente conturbada, mas culturalmente viva”, 136) , que a autora lê como um período particular que tornou possível este hausto de criatividade, mas que também o coarctaria na sua dimensão total, quando chegou ao fim. As razões são variadas: do aumento dos preços do papel à repressão política pós-caso Aldo Moro, assim como a emergência de uma nova Itália capitalista sob os auspícios do mogul mediático e depois político Berlusconi; a autora fala mesmo de um “domínio opressivo dos meios de comunicação social” (134). Na conclusão, fala-se dos problemas de projectos similares (Fuego, Cyborg) em ganharem o mesmo tipo de presença entre uma intelligentsia da banda desenhada, já que o público teria a sua atenção diluída por projectos mais comerciais como Dylan Dog, as produções de mangá, da Disney, ainda que se encontrem na Coconino Press (de Igort) e, acrescentamos nós, na Canicola (de Andrea Bruno e companheiros) os possíveis continuadores e/ou herdeiros.
No entanto, as linhas gerais de todo esse grupo mantém-se: “a defensa do multiculturalismo e plurilinguismo, a crítica da velha esquerda oficial no seu provincianismo, e o constante ultrapassar da fronteira entre as belas-artes e a arte popular [lowbrow and higbrow art]” (136).
Construído através de entrevistas exclusivas aos protagonistas do “movimento”, consulta de documentação vária da época, memórias pessoais e análises textuais, Castaldi cria assim uma imagem inconsútil da “cena” e seus produtos. As memórias pessoais não deixam de ser centrais neste projecto, já que elas providenciam o quadro social e cultural que demonstra - mesmo que a partir de uma perspectiva individual - a diferença estabelecida pelo grupo da Frigidaire. Há toda uma geração de leitores portugueses e brasileiros que partilharão essas referências, se nos recordarmos que a esmagadora maioria deles foi introduzida a este pequeno e circunscrito universo graças à revista Animal, que contava nas suas páginas com material deste mesmo grupo.
O capítulo três apresenta-se sob a forma de sub-capítulos especificamente sobre um pequeno grupo de autores (Pazienza, Scòzzari, Tamburini e Liberatore, Mattiolli, e os Valvoline), menos enquanto notas biográficas do que descrições dos seus envolvimentos com a cena que havia sido anteriormente desenhada, mesclando-se com leituras analíticas de algumas das suas obras. Sendo um livro pequeno e de leitura rápida (cerca de 150 páginas) e com uma mão-cheia de imagens, cria-se uma vontade de, por um lado, reler o material que se conhece, mas também ter acesso a uma antologia que recuperasse algum do material que não foi recolhido em volumes. Seja como for, é precisamente por ser um livro concentrado num único capítulo de produção que torna este volume num excelente instrumento de aprendizagem sobre todo um excelente momento da banda desenhada italiana. Apesar de ter tido breve circulação entre nós, parece-nos ter sido extremamente influente ou marcante. E, pensamos, é um excelente antídoto para ultrapassar toda uma série de primeiras impressões sobre aquele país, ainda sob o signo de Pratt, Manara, ou outros “clássicos”, que não ficaram sozinhos.
Atomic Comics. Cartoonists Confront the Nuclear World. Ferenc Morton Szasz (University of Nevada Press). Este livro foi escrito por um professor e investigador que se especializou na história intelectual e cultural norte-americana, antes de morrer, e parece que a “cultura atómica” era um dos seus temas favoritos e ponto de especialização. Esta cultura não deve ser entendida de um modo superficial - temas ou objectos de representação recorrentes - mas sim enquanto constructo ideológico, que é o objecto preciso de análise do historiador, no seu cruzamento com uma cultura popular. Hoje em dia já não vivemos - em Portugal isso nunca aconteceu, pois no momento em que essa consciência, social, política, etc., surgiu, já os “medos” se haviam dispersado - sob a ameaça do poder atómico (no sentido em que isso matiza a forma de vivermos, já que ela existe), mas é preciso não esquecer que a sua existência marcou toda uma época. Em primeiro lugar, por uma espécie de promessa entusiástica da ciência, apresentada como infalível factor de avanço civilizacional e, claro está, como sinal nítido da superioridade dos princípios das sociedades ocidentais, rapidamente entendidos como “universais” e desejados por todos. Mas depois, com a sua entrada dramática de sinal mortífero e de destruição com os bombardeamentos - escusados?, pragmáticos? - de Hiroshima e Nagasaki, fundar-se-iam medos, ansiedades e paranóias nas décadas seguintes.
O autor parte de uma pressuposição que tem tanto de contestável como de evidente: “Os artistas de banda desenhada [cartoonists] têm uma coisa em comum: com umas pinceladas, simplificam questões complexas para o leitor médio” (pg. 4). Ora, uma vez que Szasz se concentra sobretudo num determinado tipo de banda desenhada (tiras, comic books, cartoons, etc.) que se compreende entre os anos 1930 imediatos ao pós-Guerra (as referências a obras contemporâneas são mais pontuais e breves), está a referir-se a um tipo de produção deveras mais simples do que aquele tipo de produções a que os últimos 20 anos nos tem habituado, e sobretudo a obras que tentavam abordar a “questão atómica” de uma forma compreensível, entre o entretenimento simplista e a pedagogia calmante. De resto, o tom do livro é sobretudo o de uma grande legibilidade e de instrumento propedêutico em várias questões, e não enquanto tomo de redefinição dos seus próprios pressupostos metodológicos.
Seja como for, este tal poder incrível e mortífero era assim domesticado através de ficções formulaicas, ao ponto de formar o que o autor chama de “banalidade atómica” (5). O livro segue uma organização cronológica num arco perfeitamente claro. Em três partes, com cada parte sub-dividindo-se em dois capítulos cada, vamos atravessando uma paisagem cambiante que acompanha, e até mesmo forma, o modo de entendimento dos tópicos das energia e armas atómicas. Se numa primeira fase encontraremos fórmulas relativamente expectáveis de ficção e aventura com personagens tais como Flash Gordon, onde se nota uma certa confiança na ciência, após a exposição aos perigos desta forma energética e o seu uso militar o caso muda de figura. Um ponto em que a ansiedade tanto é explorada pela fantasia (pense-se na quantidade de super-heróis da Marvel dos anos 1960 que tem uma origem “radioactiva”) como pela banda desenhada de crime e espionagem, e que teria repercussões políticas. É não só interessante aprender sobre a intervenção do governo na forma como essas discussões do “atómico” eram feitas na esfera pública, curiosamente permitindo-se que na banda desenhada houvesse uma maior “liberdade” de especulação e divulgação, mas sobretudo sobre a caricata paranóia de que os comunistas poderiam descobrir segredos militares norte-americanos através da leitura de títulos populares… Entre as décadas de 1960 e 1980 operar-se-ia uma mudança radical de atitude, pelo envolvimento com a “verdade documental” dos factos históricos e científicos. É assim que os underground comix, aliados ao cartoon editorial e a muita mangá anti-atómica (de Gen a Akira, os dois exemplos mais famosos, o que demonstra alguma capacidade do autor em fundar linhas de investigação internacionais que poderiam ter sido continuadas), são os primeiros a entregar-se a uma crítica das opções atómicas, arrolando nesse combate um posicionamento político contra a crescente hegemonia governamental.
O autor debate obras conhecidas e “clássicas” tal como inclui títulos obscuros e por vezes disparatados (“Atomic Rabbit”, “Dr. Radium”, etc.), arrola títulos de entretenimento aparentemente inócuo (“Atom Ant”), a personagens aparentemente positivas (“Spider-man”), passando por paródias (“The Simpsons”) a dramas humanos (“Mother Sarah”) e abertas e pedagógicas críticas (“All-Atomic Comics” de Leonard Rifas). Essa variedade, se não permite uma análise mais ancorada e profunda das implicações e contornos individuais, faz-se porém para, por um lado, abrir uma grande transversalidade do tópico sobre a cultura em geral e, por outro, para sublinhar a ambivalência dessa mesma recepção.
Graphic Novels and Comics in the Classroom. Essays on the Educational Power of Sequential Art. Carrye Kay Syma e Robert G. Weiner, eds. (McFarland). Desta
pequena lista de publicações, este é talvez a mais pedagógica de todas,
e que se vem juntar a outros projectos já abordados no nosso espaço,
como Histórias em Quadrinhos ou Critical Approaches to Comics,
no sentido em se tratarem de livros que abertamente são dirigidos
àqueles que devem ou podem preparar programas de educação que contemplam
a abordagem da banda desenhada, ora enquanto objecto principal ora
enquanto um dos textos e/ou materiais de uma determinada matéria e/ou
disciplina. Este tipo de projectos junta muitos nomes novos, e com uma
grande diversidade de objectos e focos disciplinares, estando
organizados por temas históricos, pelo seu uso enquanto textos primários
na academia, como plataformas interdisciplinares, como introduções
pedagógicas e como nexos de compreensão cultural no seu sentido mais
alargado (abrindo-se à consciência global, multicultural, feminista,
etc.). havendo uma expectável maior concentração em obras de língua
inglesa, há ainda assim uma forte presença de obras internacionais
traduzidas, textos intermediáticos, e de campos intertextuais.
Aquilo
que une todos os ensaios são as experiências efectivas de uso na sala
de aula (nos mais diversos contextos e níveis escolares, desde a escola
primária à universidade), logo, no que diz respeito a uma sua muito
específica recepção, quer com contornos mais imediatamente
pragmáticos quer no que diz respeito a abordagens teóricas,
influenciados por perspectivas historicistas a questões de género e
ética, há menos um interesse por uma mera instrumentalização dos textos
de banda desenhada do que a sua transformação em ferramentas,
plataformas ou nexos de “entrega activa” junto aos seus leitores
conduzidos. Seja para consulta parcial e aplicabilidade imediata, ou
leitura cabal e compreensão genérica das potencialidades da banda
desenhada na(s) sala(s) de aula, Classroom poderá ser, em si mesmo, um excelente instrumento neste capítulo dos Comic Studies.
Nota final: agradecimentos a cada uma das editoras ou mesmo autores respectivos, pela oferta dos livros, ou projectos em pdf.
7 de novembro de 2013
Mais alguns títulos académicos (parte 1)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:24 da manhã
Etiquetas: Academia
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