A primeira história faz com que o caminho de uma jornalista de investigação, a britânica (de descendência paquistanesa, indiana?) Katie Shah, que procura compreender os meandros que unem os poderes políticos de um governo britânico em falência com os interesses petrolíferos da OPEC, se cruze com o de um assassino do governo, o albino Rupert “Cain”, transformado em “ponta solta” que precisa de ser eliminada. Como uma boa história mainstream, há um equilíbrio perfeito entre a conflituosa construção da relação entre estas duas personagens tão distintas e de mundos apartados, o busílis da acção centrado na teia de espionagem, corrupção política e financeira, e desejos de controlo societal, e ainda as várias dimensões possíveis de retrato, projectado e distorcido, da sociedade britânica num futuro já aqui ao virar da esquina. O surgimento de um outro assassino, uma espécie de ciborgue sem cara, vai tornar o ritmo ainda mais acelerado e a aparada mais alta, como é de esperar.
Aquele ambiente policial, político e financeiro torna Smoke (e depois Ashes) num título próximo das temáticas da distopia, projectando-se num futuro próximo as consequências do que já se verifica nos nossos dias. Se na televisão poder-se-ia falar de Black Mirror, na banda desenhada haverá toda uma série de exemplos com grandes afinidades a este duplo título, de V for Vendetta a The Adventures of Luther Arkwright, passando pela saga de Grendel, o Dan Dare de Grant Morrison, o seu The Invisibles e outros. Os autores prestam particular atenção para os pormenores que povoam a paisagem urbana, desde o modo das pessoas comunicarem, à cintura de controlo em torno da City, passando pelos graffiti (as menções a Banksy são por demais evidentes), modas, linguagem, etc. Importa, portanto, olhar todas as escalas em jogo em Smoke/Ashes.
Ashes, a segunda história, sequela, que poderia ter sido lida isoladamente, parte de uma ideia central de ficção científica: a de que uma consciência de um jovem rapaz (que descobrimos ser o ciborgue de Smoke, antes acidentalmente morto por Cain “invade” a internet e procura vingar-se através de toda uma série de acções que “desligam” serviços e equipamentos, lançando a civilização num estádio recuado e dificultoso. Há aqui uma faceta provável de crítica (“dependemos em demasia da internet”, etc. e tal), mas isso não é, felizmente, explorado de forma explícita, havendo antes uma opção em concentrarmo-nos não nessa moralidade, mas nas acções necessárias à sua correcção, que passa por Cain revisitar o seu passado, ser capturado por ele e aí encontrar alguma solução.

Alex De Campi não é uma escritora de hard sci-fi comics como um Warren Ellis ou um Masamune Shirow, por exemplo, mas não deixa de querer investigar as consequências do impacto da tecnologia, não apenas no seu fetiche imediato, mas nas implicações que terão nas redefinições permanentes dos relacionamentos sociais, dos aproveitamentos políticos, das novas sendas da economia, e por aí fora…. Tendo em conta as profissões das personagens, o jornalismo e os serviços secretos são objecto óbvio de análises, não diria continuadas e aturadas, mas pelo menos em destaque. Mas além disso, De Campi, nestes dois trabalhos, parece saber navegar com mestria o interior dos géneros. Não concordaremos com o entusiasmo com que muitos críticos recebem Smoke/Ashes como “reinventando as possibilidades da banda desenhada”, sobretudo se tomarmos em conta muitas das verdadeiras pesquisas artísticas, expressivas e ensaísticas que conhecemos deste território. Mas o maneira como esta obra é devedora, com conhecimento, respeito e saber, à tradição do melodrama de géneros (espionagem, policial, de acção, etc.), em nada faz desmerecer a nossa atenção e compreensão do seu domínio efectivo.


Se existem vários casos em que a diegese pede por esta flutuação de estilos ou registos (seja através de autores de assinaturas diferentes seja um mesmo autor a criar abordagens e pastiches diversos) - e apenas a título de exemplo, recordemos a saga de Supreme nas mãos de Alan Moore e companhia – no caso de Ashes criam-se momentos muito diferenciados, também, mas menos consonantes com o que vai sendo contado e/ou revelado. Existem momentos em que isso se torna mais claro, como no caso das alucinações “internas” quando Cain está a ser torturado – um emprego desconcertante de imagens de um livro ilustrado infantil e depois de um pastiche neo-rafaelita podem revelar receios ou traumas profundos das personagens, ou modos de negociarem com estruturas míticas transhistóricas -, mas na esmagadora maioria dos casos é só por ser uma “passagem” entre episódios ou cenas (ou, melhor dizendo, de artistas).

No cômputo final, porém, há boas razões para crer que de facto este é um projecto de Campi, mais do que uma colaboração criativa entre a escritora e a sua troupe de artistas. Sendo um título mainstream, ele é de uma qualidade que ultrapassa a maioria das produções constrangidas àquelas personagens mais famosas dos super-heróis, até mesmo no que diz respeito ao modo como exploram os aspectos do real em que se inserem. Smoke/Ashes é bem mais directo nessa relação, e mais inteligente na exploração das consequências. E sem quaisquer moralismos ou heroicidades inultrapasáveis. Se Cain, até mesmo enquanto assassino albino, parece ter todos os ingredientes para se tornar um inderrotável campeão, as suas fragilidades estão sistematicamente expostas, a sua humanidade não se oculta, e isso é demonstrado, de uma forma feérica, para não dizer maravilhosa (na acepção literária da palavra), no final da saga. Se não poderemos dizer, eventualmente, que esta é uma obra-prima, incontornável, ou um monumento aos géneros, ela é seguramente uma prova cabal da capacidade de equilíbrio de Alex De Campi em gerir todos aqueles clichés necessários à sua edificação, ao mesmo tempo que os anula e impede outros de emergirem com as suas personagens diversificadas, inteligentes. Não há quaisquer maniqueísmos claros neste texto, mas antes zonas ambivalentes e fluidas, tal como o fumo, ou restos de narrativas passadas, nas quais ainda adivinhamos a presença de algo vivo ou que pode regressar, como as cinzas.
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